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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Chegamos ao final de nossa pesquisa, mas, como muitas vezes acontece na busca da verdade, se respondemos a uma pergunta, levantamos muitas outras indagações. E, se trilhamos um caminho de retorno ao nosso ponto de partida, tivemos de deixar de lado muitos outros que se abriram à nossa frente e levavam, ou pareciam levar, a outras direções que não o bosque sagrado de Nemi. Alguns desses caminhos foram percorridos em parte de sua extensão; outros, se a fortuna nos sorrir, o autor e o leitor poderão percorrer juntos algum dia. Pelo momento, já viajamos bastante longe juntos, e é tempo de nos separarmos. Antes disso, porém, bem podemos nos perguntar se não haverá alguma conclusão mais geral, alguma lição, se possível, de esperança e encorajamento, a ser aprendida com a melancólica história de erros e loucuras humanos que prendeu a nossa atenção.
Se, portanto, considerarmos, de um lado, a semelhança essencial das principais necessidades do homem, em toda parte e em todas as épocas, e, do outro, as grandes diferenças entre os meios por ele usados para satisfazer a tais necessidades nas diferentes épocas, talvez sejamos levados a concluir que o movimento do pensamento superior, até o ponto em que podemos acompanhá-lo, processou-se, em geral, a partir da magia, passando pela religião e chegando à ciência. Na magia, o homem depende de sua própria força para enfrentar as dificuldades e os perigos que o cercam por todos os lados. Ele acredita numa certa ordem estabelecida da natureza com a qual pode contar seguramente e que pode manipular para seus próprios fins. Ao descobrir seu erro, ao reconhecer tristemente que tanto a ordem da natureza que havia suposto existir quanto o controle que acreditara exercer sobre ela eram puramente imaginários, ele deixa de confiar em sua própria inteligência e em seus esforços isolados para colocar-se humildemente à mercê de certos grandes seres invisíveis que existem por trás do véu da natureza e aos quais passa a atribuir os poderes de longo alcance que antes se arrogara. Assim, nos espíritos mais atilados a magia é gradualmente substituída pela religião, que explica ser a sucessão de fenômenos naturais regulada pela vontade, pela paixão ou pelo capricho de seres espirituais semelhantes, em gênero, ao homem, embora a ele muito superiores em poder.
Mas, com o passar do tempo, também essa explicação se mostra insatisfatória. Ela supõe que a sucessão dos acontecimentos naturais não é determinada por leis imutáveis, mas que é, até certo ponto, variável e irregular, e tal suposição não é confirmada pela observação mais detida. Pelo contrário, quanto mais examinamos aquela sucessão, mais somos surpreendidos pela uniformidade rígida, pela precisão pontual com a qual, sempre que as podemos seguir, as operações da natureza são realizadas. Todo grande avanço do conhecimento ampliou a esfera de ordem e, correspondentemente, limitou a esfera de desordem aparente do mundo, até estarmos preparados para prever que, mesmo nas áreas onde o acaso e a confusão ainda parecem reinar, um conhecimento mais completo reduziria o caos aparente ao cosmos. Assim, os espíritos mais lúcidos, ainda empenhados em encontrar uma solução mais profunda para os mistérios do universo, passam a rejeitar a teoria religiosa da natureza como inadequada, e voltam, de certa maneira, ao velho ponto de vista da magia, postulando explicitamente aquilo que ela havia suposto apenas implicitamente, isto é, uma regularidade inflexível na ordem dos acontecimentos naturais que, se cuidadosamente observada, nos permite prever seu curso com segurança e agir de acordo com essa previsão. Em suma, a religião, considerada como uma explicação da natureza, é substituída pela ciência. Embora a ciência tenha com a magia o aspecto comum de se basearem ambas na fé em uma ordem como princípio subjacente de todas as coisas, os leitores não precisam ser lembrados de que a ordem pressuposta pela magia difere muito da que constitui a base da ciência. A diferença deriva naturalmente dos modos diversos pelos quais se chega a tais ordens. Enquanto a ordem da magia é apenas uma extensão, por uma falsa analogia, da ordem na qual as idéias se apresentam aos nossos espíritos, a ordem estabelecida pela ciência vem da observação paciente e precisa dos próprios fenômenos. A abundância, a solidez e o esplendor dos resultados já alcançados pela ciência podem inspirar-nos confiança na solidez de seu método. Finalmente, depois de tatear nas trevas por séculos incontáveis, o homem conseguiu uma chave para o labirinto, uma chave de ouro que abre muitas das portas do tesouro da natureza. Não será, provavelmente, exagero dizer que a esperança de progresso — moral e intelectual, bem como material — no futuro está ligada ao destino da ciência, e que todo o obstáculo colocado no caminho da descoberta científica é um mal causado à humanidade.
Não obstante, a história do pensamento nos adverte contra a conclusão de que, por ser a teoria científica do mundo a melhor já formulada, seja necessariamente completa e conclusiva. Devemos lembrar-nos de que, no fundo, as generalizações da ciência ou, em linguagem comum, as leis da natureza, são apenas hipóteses que se destinam a essa sempre inconstante fantasmagoria do pensamento que dignificamos com os altissonantes nomes de mundo e de universo. Em última análise, a magia, a religião e a ciência são apenas teorias de pensamento; e, assim como a ciência suplantou as suas predecessoras, também pode ser substituída por uma hipótese mais perfeita, talvez por um modo totalmente diferente de ver os fenômenos — de registrar as sombras na tela — de que nós, nesta geração, sequer podemos fazer idéia. O avanço do conhecimento é uma progressão infinita na direção de uma meta que nunca se alcança. E não precisamos repetir, com relação a essa busca interminável, que:
“Fatti non foste a viver come bruti Ma per seguir virtute e conoscenza”.
Grandes coisas resultarão dessa busca, embora não nos seja dado desfrutá-las. Estrelas mais brilhantes reluzirão para algum viajante do futuro, algum grande Ulisses dos reinos do pensamento, do que as estrelas que brilham para nós. Os sonhos da magia podem tornarse, um dia, as realidades concretas da ciência. Mas uma nuvem escura se forma ao longe, no ponto extremo dessa bela perspectiva. Por maior que seja o crescimento do conhecimento e do poder que o futuro reserva para o homem, dificilmente poderemos ter esperanças de conter o avanço daquelas grandes forças que parecem trabalhar em silêncio, mas de maneira incansável, pela destruição de todo esse universo estrelado no qual paira a nossa Terra como uma pequena mancha ou um grão de poeira. Nas eras futuras, o homem pode tornar-se capaz de prever e até mesmo de controlar os cursos inconstantes dos ventos e das nuvens, mas dificilmente suas insignificantes mãos terão a força necessária Jjara dar novo impulso à órbita decrescente de nosso planeta ou para reacender o fogo agonizante do Sol. Não obstante, o filósofo que treme à idéia dessas catástrofes distantes pode consolar-se constatando que essas sombrias apreensões, como a própria Terra e o próprio Sol, são apenas partes daquele mundo insubstancial que o pensamento constituiu a partir do nada, e que os fantasmas que a sutil feiticeira hoje evo- cou, ela bem poderá banir amanhã. Também eles, como tanta coisa que, aos olhos comuns, parece sólida, podem evolar-se no ar, tênue ar.
Sem procurar penetrar tão longe no futuro, podemos ilustrar o curso que o pensamento seguiu até aqui comparando-o a uma teia tecida de três fios diferentes — o fio negro da magia, o fio vermelho da religião e o fio branco da ciência, se, sob o nome de ciência, considerarmos as verdades simples, frutos da observação da natureza, que constituíram sempre uma reserva do homem em todas as épocas. Se pudéssemos acompanhar a teia do pensamento desde o seu início, provavelmente veríamos que ela foi, a princípio, um entrelaçamento de preto e branco, uma trama de noções verdadeiras e falsas, pouco colorida ainda pelo fio vermelho da religião. Mas, se seguirmos com os olhos um pouco mais adiante essa urdidura, veremos que, embora a trama branca e preta ainda perdure, há, nas partes medianas da teia onde a religião penetrou mais fundamente a textura, uma densa mancha vermelha, que esmaece insensivelmente em tons mais leves à medida em que o branco da ciência impregna cada vez mais o tecido. A uma teia assim urdida e colorida, assim matizada de tonalidades diversas, mas cuja coloração se vai transformando gradualmente à medida em que a trama vai sendo desdobrada, podemos comparar o estado do pensamento moderno, com todos os seus objetivos divergentes e suas tendências conflitantes. Terá prosseguimento, no futuro próximo, o grande movimento que durante séculos vem modificando lentamente a estrutura do pensamento? Ou terá início uma reação que poderá conter o progresso e mesmo desfazer grande parte do que foi feito? Continuando com a nossa parábola, que cor terá a teia que os fados estarão hoje tecendo no tear do futuro? Será branca ou vermelha? Não sabemos. Uma tênue luz bruxuleante ilumina a última parte da teia. Nuvens e trevas espessas escondem o outro extremo.
Nossa longa viagem de descobrimentos terminou e nosso barco baixou suas cansadas velas num porto, finalmente. Mais uma vez, tomamos a estrada para Nemi. Anoitece, e, enquanto vamos subindo a longa encosta da Via Ápia até os monte Albanos, voltamos para trás o olhar e vemos o céu em fogo com o poente, cuja glória dourada paira como a auréola de um santo agonizante sobre Roma e põe uma crista de fogo sobre a cúpula de
São Pedro. É um espetáculo que não se pode esquecer, mas dele afastamos a vista e pros- seguimos em nosso caminho pela montanha, avançando nas trevas até chegarmos a Nemi e olharmos lá embaixo o lago imerso nas pro- fundezas e que vai desaparecendo rapidamente entre as sombras da noite. A paisagem pouco se modificou desde que Diana ali recebia as homenagens de seus adoradores no bosque sagrado. O templo da deusa Silvana já não existe, é certo, e o rei do bosque já não monta guarda ao ramo de ouro. Mas as árvores de Nemi ainda são verdes, e, como o poente se vai desvanecendo sobre elas no oeste, chega até nós, trazido em ondas do vento, o som dos sinos das igrejas de Roma que tocam o ângelus. Ave Maria! Doces e solenes plangem os sinos da cidade distante, e seus sons se prolongam e se perdem pelos vastos pântanos da Campânia. Le roi est morí, vive le roi! Ave Maria!
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