Leia em 19 minutos.
Este texto foi lambido por 223 almas esse mês
Introdução
As formas de religiosidade alternativas tornaram-se um tema recorrente no estudo da religião, nos últimos anos. Diversas crenças têm conquistado um espaço cada vez maior na sociedade, criando um amplo campo para pesquisas e um problema potencial para os educadores que precisam lidar com a perspectiva de um ensino religioso multifacetado e includente.
Temos concentrado nossos esforços na pesquisa de uma vertente específica dessas novas formas religiosas, agrupadas sobre a denominação genérica de neopaganismo. No Brasil, em especial, essa vertente possui todas as características de uma religião da modernidade, por tentar romper com conceitos estabelecidos da religiosidade ocidental, basicamente cristã, por ter crescido de forma notável nos últimos dez anos e, ainda, por ter a Internet como uma de suas principais vias de propagação.
O neopaganismo surgiu, na realidade, na virada do século XIX para ao século XX, na Europa. Em voga entre setores da aristocracia inglesa, em especial com um caráter hedonista, transformou-se, ao longo das primeiras décadas do século XX, em uma série de seitas e sociedades herméticas, nos moldes maçônicos e rosacrucianos, como a Ordo Templi Orientis, de Aleisteir Crowley. Em meados da década de 1950, entretanto, surge na Inglaterra, a partir da obra do folclorista amador Gerald B. Gardner, a vertente do neopaganismo que vai alcançar maior popularidade e ganhar verdadeiros contornos de religião: a Wicca.
A Wicca, comumente chamada de “bruxaria moderna”, parte do pressuposto da existência de uma “antiga religião” praticada na Europa pré-cristã, de caráter fortemente matrifocal, e que teria sido conservada através da tradição oral pelos seus praticantes até os dias atuais. Nessa perspectiva, advoga-se que as pessoas perseguidas e mortas pela Santa Inquisição como bruxas, entre os séculos XV e XVII, seriam sacerdotes e praticantes dessa antiga religião pagã. São os elementos dessa antiga religião que ela busca, portanto, resgatar.
Essas alegações baseiam-se amplamente em obras antropológicas ou folclóricas do final do século XIX e início do século XX, como Aradia, gospel of the witches (1899), de Charles G. Leland, The Golden Bough (1922), de Sir James Frazer e, principalmente, The witch cult in western europe (1921), de Margareth Murray. Embora a idéia da sobrevivência de um culto pagão através dos tempos, da forma expressa nesses livros e em outros semelhantes, já estivesse amplamente ultrapassada nos meios acadêmicos, no período de surgimento da Wicca, o apelo popular de uma “religião pagã da deusa”, em contraponto à “religião cristã do deus” foi decisivo para a multiplicação dos seus seguidores, que logo se contavam aos milhares, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos.
A partir do início da década de 1970, as idéias da Wicca receberam acréscimos em especial do movimento feminista e da new-age, chegando assim a uma razoável definição do que seria a nova religião. Principalmente nos Estados Unidos, começaram a surgir tentativas de sistematização, através de associações e conselhos de “bruxos”, e foram fundadas as primeiras igrejas propriamente ditas.
A Wicca chega ao Brasil, de forma ainda tímida, provavelmente em meados da década de 1980. Somente a partir do início da década seguinte, no entanto, é que surgem no mercado brasileiro os primeiros livros sobre o assunto, traduções de obras populares nos Estados Unidos, de autores como Lois Bourne, Scott Cunningham e Laurie Cabot. Apenas a partir de 1998 é que se nota uma multiplicação de títulos e uma grande difusão da sua doutrina como religião alternativa. Essa propagação é um fenômeno típico da classe média, e se dá principalmente através da Internet, onde o número de referências e sites sobre o assunto, de modestas duas dúzias em 1998, ultrapassa hoje a casa dos 50 mil, apenas no Brasil (DUARTE, 2003). Hoje em dia, em nosso país, existe pelo menos uma associação registrada – a Abrawicca – com ramificações na maioria dos estados brasileiros, e uma igreja registrada em Minas Gerais.
Essa característica de profunda difusão através da Internet é de sumo interesse. A quantidade de informações disponíveis e a rapidez da comunicação, aliadas a um caráter tipicamente não dogmático da Wicca, criam uma diversidade de opiniões e um constante debate. Na verdade, torna-se possível acompanhar – talvez pela primeira vez de forma ampla e aberta – a formação das bases e crenças de uma religião nascente, e o desenvolvimento ainda incipiente de uma teologia específica.
Problematização e metodologia
Partindo dos princípios expostos, buscamos diagnosticar em que consiste o conjunto de crenças dos adeptos da Wicca, hoje, no Brasil. A idéia era poder determinar um certo conjunto de crenças comuns para a maioria desses adeptos, que pudesse ser tido como consenso, e compará-lo com a literatura específica sobre o assunto, a fim de determinar aproximações ou desvios. Como forma de controle, buscamos igualmente a opinião de pessoas pertencentes a outras religiões sobre aquilo que elas acreditam ser as crenças da Wicca.
Deve-se levar em consideração alguns fatores específicos. Em primeiro lugar, não existe nenhum tipo de “livro sagrado” ou “revelação” na Wicca. Dessa maneira, as fontes que fundamentam a crença e a prática são, exclusivamente, a literatura sobre o assunto, que consiste basicamente em obras (na sua maior parte estrangeiras) de sacerdotes renomados. A Wicca não possui, igualmente, uma cosmogonia ou uma mitologia próprias, tendendo antes a interpretar de uma forma particular as diversas cosmogonias e mitologias pagãs. Embora pela sua própria origem anglo-irlandesa exista uma tendência a privilegiar mitos e tradições célticas e germânicas, a única coisa que pode ser apontada como uma fundamentação mitológica para a Wicca é a própria alegação de ser a continuidade ou o resgate de uma antiga religião pré-cristã.
Consideramos, então, que aquilo que pode caracterizar e definir uma determinada religião, bem como distingui-la de outras, é: a) sua visão específica de uma divindade ou de um conjunto de divindades, ou mesmo a inexistência dessa visão; b) os fundamentos histórico-mitológicos em que a crença se baseia, e que lhe conferem um caráter de validade ou autenticidade, baseados na tradição; c) a existência de uma prática comum, seja ela de caráter ritualístico ou não, e d) a existência de princípios éticos ou morais, que devam ser seguidos por todos os fiéis ou adeptos.
No item existência de uma prática comum, no entanto, abandonamos a idéia de determinar simplesmente uma forma ritual específica da Wicca, uma vez que a literatura sobre o assunto é consensual a respeito das celebrações, suas formas e simbolismos, e ainda porque essas celebrações, sendo baseadas em festivais sazonais, não diferem essencialmente de celebrações semelhantes encontradas em outras religiões. Dessa forma, com exceção de uma breve alusão que explicitaremos adiante, preferimos nos concentrar em outro aspecto da prática, de caráter mais polêmico: a utilização e a crença na efetividade da magia.
Para atingir nosso objetivo, disponibilizamos na Internet um questionário composto de 17 afirmações, as quais os respondentes deveriam classificar como falsas ou verdadeiras, de acordo com os seus conhecimentos sobre a Wicca. Ao responder o questionário, o respondente deveria informar sua faixa etária, sua escolaridade e sua religião, sendo que 40% dos respondentes declararam-se wiccanos.
As afirmações propostas no questionário foram, em parte, retiradas de livros consagrados sobre o assunto e, outras, feitas de acordo com os conhecimentos mais atuais sobre antropologia, mitologia comparada e história das religiões. Os dados obtidos foram tabulados e comparados por computador, através de um programa feito especialmente para esse fim.
A caracterização da divindade
A literatura específica consagrou a Wicca como uma “religião da Deusa”. Isso significa que existiria uma divindade arquetípica primordial de caráter feminino, chamada simplesmente de “Deusa” ou, mais raramente, de “Deusa-Mãe”. A Deusa gera o Deus-Consorte, que a fecunda e é sacrificado, ao final de cada ciclo, para renascer no início do ciclo seguinte. Tais temas – a hierogamia divina e o sacrifício do deus – são comuns a quase todas as civilizações agrícolas, representando o ciclo anual de plantio e colheita.
Uma figura recorrente encontrada na literatura é, igualmente, a afirmação que “todas as deusas são a Deusa e todos os deuses são o Deus”, significando um panteísmo que admite, a princípio, que os inúmeros deuses e deusas dos diversos panteões podem ser encarados como visões particulares da divindade arquetípica, onde determinados atributos são particularizados. Apesar disso, muitos livros sobre o assunto admitem a existência real e individual das divindades, baseando-se principalmente na noção ocultista de “egrégora” ou “formas de pensamento”.
A parte do questionário que buscava caracterizar o pensamento da Wicca a respeito da existência e do caráter da divindade, ou das divindades, em que se baseia o culto, constava de seis afirmações, a saber:
a) A Wicca é uma religião centrada no culto a uma divindade superior feminina, a Deusa.
b) A Deusa é a divindade criadora de todas as coisas. c) Embora criado pela Deusa, o Deus-Consorte é equivalente a ela em importância. d) A Deusa e seu consorte, o Deus, são apenas alegorias ou mitos ligados a fertilidade da natureza. e) Os diversos deuses e deusas são apenas manifestações da divindade criadora. f) Os diversos deuses e deusas possuem existência real e independente.
Considerando-se as respostas daqueles que declararam sua religião como sendo a Wicca, nota-se alguma indefinição apenas em relação à afirmação ligada a idéia de criacionismo. Mesmo assim, há uma predominância daqueles que aceitam a idéia de uma divindade criadora, em consonância com a idéia expressa na literatura, mesmo que de forma metafórica. Os itens c e d foram também respondidos de acordo com o esperado, se nos basearmos na literatura sobre o assunto, estabelecendo uma equivalência entre as duas figuras divinas centrais do culto e negando seu caráter alegórico ou arquetípico de representações de fenômenos naturais.
Já a porcentagem de respostas ao item a desvia-se de forma pronunciada ao senso comum em relação à crença da Wicca, negando ser esta uma religião centrada no culto a uma divindade superior feminina. De certa forma, pode-se interpretar esta resposta como complementar àquela que admite a importância equivalente entre Deusa e Deus. Inconsistentes com a literatura são também as respostas aos dois últimos itens. Nega-se a máxima citada anteriormente, que descreve os diversos deuses como aspectos da divindade (ou das divindades) primordial e, ainda, não se reconhece a individualidade dessas divindades.
Cotejando-se esses resultados com aqueles apresentados pelo grupo que se declarou pertencente a outras religiões (incluindo agnósticos e ateus), não se percebe uma diferença marcante entre a auto-concepção dos wiccanos e a imagem que o grupo diversificado faz desta religião. A única exceção digna de nota refere-se, como era de se esperar, ao fato de que este último grupo considera a Wicca uma religião centrada no culto a uma Deusa.
Observa-se, portanto, que a crença da Wicca considera a existência de duas divindades opostas e complementares, equivalentes em importância. Tais divindades não são encaradas como mitos ou alegorias que representam o caráter cíclico das estações mas, de toda maneira, não existe um consenso quanto a existência efetiva de deuses ou deusas, como entidades conscientes ou independentes.
Tanto no grupo dos wiccanos quanto no grupo de controle, esse resultado não é significativamente afetado pela idade dos respondentes, mas nota-se uma tendência a considerar as divindades de forma mais simbólica, conforme aumenta a escolaridade.
Fundamentação histórico-mitológica da crença
Como indicamos anteriormente, a principal fundamentação histórica contida na Wicca refere-se a uma pretensa continuidade. Todos os livros sobre o assunto baseiam suas argumentações na inquestionável existência de uma religião pré-cristã matrifocal que seria praticada na Europa Ocidental desde tempos neolíticos, religião esta que seria uma forma ancestral da Wicca. Estes argumentos, logicamente, não encontram nenhum respaldo nos atuais conhecimentos da antropologia ou da história, principalmente por partirem de uma generalização ou uniformização de crenças em um período em que isso seria incabível. Da mesma forma, levando-se em consideração a cristianização da Europa a partir da Idade Média, pode-se quando muito falar em sobrevivências de costumes pagãos na cultura popular ou absorvidos e integrados à crença cristã, mas não de uma sobrevivência do paganismo, muito menos como religião organizada.
É importante ressaltar que nenhum livro sobre o assunto apresenta a figura de Gerald B. Gardner como criador da Wicca, mas quando muito como sistematizador. O próprio Gardner, em suas obras, afirma estar apenas repassando conhecimentos que teria obtido de pessoas que o haviam iniciado nos “antigos segredos”.
No entanto, não é do escopo desta pesquisa questionar tais premissas. Qualquer religião possui uma pretensa historicidade, normalmente remontando a períodos muito recuados no tempo, e sobre os quais poucas afirmações seguras podem ser feitas. Buscamos apenas detectar o nível de credibilidade dessa historização entre os praticantes e até que ponto ela pertence ao imaginário dos não-praticantes em relação à Wicca.
As afirmações referentes à fundamentação histórica foram as seguintes:
a) A Wicca é a “Velha Religião” que já era praticada na Europa Ocidental pré-cristã. b) A Wicca foi criada na década de 1950 por Gerald B. Gardner. c) As pessoas mortas pela Inquisição, entre os séculos XV e XVII, eram praticantes da “Antiga Religião” resgatada pela Wicca. d) As bruxas atuais são herdeiras espirituais daquelas bruxas mortas pela Inquisição.
A característica principal que se nota ao examinar as respostas é a indefinição, com resultados oscilando cerca de 3 pontos percentuais acima ou abaixo da média. Dessa maneira, pode-se dizer que não há um consenso sobre os temas tratados, embora a tendência geral tenha sido acompanhar aquilo que é preconizado pela história e pela antropologia e descartar a idéia de continuidade contida nos livros sobre o assunto.
Vale dizer que esse resultado mostra uma significativa mudança em relação a uma pesquisa semelhante realizada por nós há dois anos, quando a grande maioria dos respondentes tendia a considerar a Wicca uma continuidade de antigas tradições e a aceitar a idéia de que a perseguição à bruxaria européia estava relacionada a uma tentativa da Igreja Católica de combater a persistência de uma religião organizada do paganismo (DUARTE, 2003). De forma até certo ponto surpreendente, a afirmativa d foi a mais rejeitada (74,8%), justamente a que relaciona diretamente os atuais praticantes da Wicca às pessoas mortas pela Inquisição.
Ao mesmo tempo foi igualmente rejeitada, embora com menor ênfase, a idéia de que a Wicca tenha sido criada na década de 1950 por Gardner. Aparentemente esses resultados mostram uma conscientização dos praticantes da Wicca a respeito das origens de suas crenças, provavelmente devido a multiplicação dos debates sobre o assunto nos últimos anos, muito embora ainda persista a noção de sobrevivência ou resgate de crenças pagãs, negando-se a contemporaneidade do surgimento da religião.
Deve-se ainda levar em consideração que apenas entre os praticantes mais velhos surge a predominância da idéia que a Wicca é a “Velha Religião” (52,2%), e que apenas entre os mais jovens predomina a idéia de que as pessoas mortas pela Inquisição seriam antigos praticantes da Wicca (54,3%). Embora, como já apontado, as diferenças percentuais não sejam concludentes, essas pequenas variações parecem apontar uma ligeira tendência ao conservadorismo entre os mais velhos e a adesão à idéias “românticas” entre os mais jovens, o que seria de se esperar.
Não há divergência nos resultados do grupo de controle, formado por praticantes de outras religiões, embora neste grupo as diferenças percentuais sejam mais expressivas. Isso parece indicar que há uma progressiva aproximação entre as crenças da Wicca e aquilo que é comumente aceito sobre elas.
Ritos e práticas
Como exposto na metodologia desse trabalho, ao abordar o tema ritos e práticas da Wicca, não nos prendemos àqueles conceitos ligados unicamente aos ritos sazonais que fazem parte de um calendário de celebrações wiccanianas, visto estes terem um caráter mais operacional do que propriamente ligado ao sistema de crenças, objetivo último dessa pesquisa. Todavia, interessa-nos as questões relativas à origem desses ritos, por estarem relacionadas com o arcabouço histórico-mitológico da crença.
De uma forma geral, a literatura específica sobre o assunto, seguindo a idéia de continuidade de tradições européias pré-cristãs descreve o calendário de celebrações wiccanianas como sendo originário das celebrações sazonais dos celtas. Ou seja, a literatura aponta as atuais celebrações como reproduções de ritos celtas, apesar de toda a incerteza que a arqueologia e a história possam ter sobre a maior parte desses ritos. Além disso, tais celebrações recebem o nome de sabás, numa alusão direta a denominação medievo-moderna das reuniões de bruxas, consagrada pela Inquisição.
Outro aspecto preponderante na literatura wiccaniana é a magia, sendo poucos os livros que não consagram capítulos inteiros ao tema e havendo diversos que dedicam-se exclusivamente a ele. A leitura de tais livros leva a crer, na verdade, que pelo menos algum tipo de “pensamento mágico” é indissociável da prática da Wicca. A crença na efetividade da magia, baseada na eficácia de determinadas substâncias, de certos objetos e do “poder pessoal” do praticante, surge como atributo distintivo do bruxo moderno. Há, todavia, um afastamento sistemático dos conceitos explorados pela Magia Cerimonial, tradicionalmente ligada aos conceitos cristãos da possibilidade de manipulação de seres angélicos ou demoníacos. Nesse item, duas afirmações referiam-se à historicidade dos rituais da Wicca, e três outras à prática da magia. Eram elas3:
a) Os rituais da Wicca reproduzem os antigos rituais celtas. b) Os rituais da Wicca são frutos da mistura de técnicas de magia cerimonial e ritos sazonais, muitos dos quais presentes em várias outras religiões, inclusive o cristianismo. c) A prática da Wicca é indissociável da prática da magia. d) A magia funciona pela ação conjunta do poder do praticante, da interferência das divindades e/ou elementais e dos objetos utilizados (ervas, velas, incensos, etc.). e) A magia é uma forma de sugestão, apenas, do praticante ou de terceiros.
Em relação às afirmações que se referem aos rituais da Wicca, as respostas indicam novamente uma aproximação do conhecimento histórico e, consequentemente, um repúdio ao que é consagrado pela literatura específica. Em proporções praticamente idênticas, tanto wiccanos quanto praticantes de outras religiões admitem que a celebração de ritos sazonais, diretamente ligados ao ciclo de plantio e colheita, como é o caso dos rituais da Wicca, são basicamente universais, e não característicos ou exclusivos de um determinado povo. Como era esperado, esta tendência acentua-se entre praticantes e não-praticantes de maior nível de escolaridade.
Por outro lado, as afirmações relativas à magia constituíram-se nas maiores unanimidades da pesquisa, independentemente de idade, escolaridade ou crença. Porcentagens sempre maiores do que 65% e por vezes superiores a 90%, dependendo da faixa enfocada, rejeitaram a idéia de magia como uma forma de sugestão ou auto-sugestão, e a atribuíram à ação conjunta de objetos, seres sobrenaturais e do praticante. Depreende-se deste resultado uma crença generalizada na existência e eficácia da magia como realidade que transcende os limites psicológicos do ser humano, assentando-se numa supranormalidade que extrapola as explicações científicas.
Sintomático, ainda, é verificar que a associação entre prática da Wicca e prática da magia foi veementemente rejeitada, exceto entre os respondentes mais velhos e com maior nível de escolaridade. Tal resultado, por si só surpreendente, carece de uma análise mais profunda, que não pode ser convenientemente embasada pelos dados obtidos nessa pesquisa. Apenas a título de conjectura, no entanto, poderíamos arriscar a hipótese de que, entre pessoas mais velhas e com maior acesso à informação, os desafios característicos da sociedade contemporânea levam à busca de religiosidades alternativas que ofereçam algo de “mágico”, como uma válvula de escape às pressões do cotidiano4.
Princípios éticos e morais
A existência de princípios éticos e princípios morais que regulam o comportamento dos fiéis é uma característica presente na maior parte das religiões, sendo preponderante no cristianismo, judaísmo e islamismo e desempenhando um importante papel em várias religiões orientais. Na Wicca, tais preceitos reguladores de conduta estão praticamente ausentes. Na verdade, as maiores preocupações nesse sentido encontrados na literatura específica dizem respeito à observação de uma “ética mágica”, intrinsecamente ligada à crença na possibilidade e na efetividade da magia.
Pode-se dizer, portanto, que os únicos preceitos wiccanos que se referem diretamente à regras de comportamento ético ou moral reduzem-se a dois. Um deles, geralmente conhecido como wiccan rede – conselho wiccano – traduz-se pela sentença “faz o que tu queres, desde que a ninguém prejudiques”. O outro, conhecido como Lei Tríplice, ou Lei do Triplo Retorno, afirma que “tudo que fizeres a alguém voltará a ti triplicado”. A primeira afirmativa é, obviamente, uma adaptação da máxima ocultista enunciada por Alesteir Crowley, “faz o que tu queres é o todo da lei”, presente nos seus “Livros Sagrados” que datam do início do século XX (CROWLEY, 1998). A outra não difere de diversas leis de retorno dos atos praticados, encontradas em quase todas as religiões.
As afirmativas utilizadas na pesquisa, portanto, reproduzem essas duas máximas. Foram elas:
a) Todos os praticantes da Wicca devem seguir a máxima “faz o que tu queres, sem a ninguém prejudicar”. b) A Lei Tríplice, que diz que tudo que uma pessoa fizer voltará à ela triplicado, é algo a que todos os praticantes da Wicca estão sujeitos.
Os resultados, nesse item, foram concludentes. Em média, 81,6% dos wiccanos assinalaram tais afirmativas como verdadeiras, e novamente observou-se um aumento dessa porcentagem nos grupos de respondentes com mais idade ou maior escolaridade, chegando a um máximo de 92,3% nesse último. No grupo dos praticantes de outras religiões, houve também uma acentuada tendência de considerar verdadeiras as afirmativas acima.
Considerações finais
Pelos resultados colhidos na presente pesquisa, cremos ser seguro afirmar que a Wicca, no Brasil, é uma religião em desenvolvimento, que começa a estabelecer (ou a reformular) as suas bases doutrinárias a partir da própria opinião dos seus praticantes, deixando paulatinamente de lado conceitos expressos nos livros de autores consagrados, porém leigos, e acomodando-se a conceitos que a adequam à pesquisa histórica.
Essa conclusão parece ser válida principalmente a partir de um progressivo, mas ainda indefinido, abandono de idéias romantizadas sobre a “Antiga Religião” pré-cristã e sobre a ligação da bruxaria medieval com a moderna, bem como o abandono da excessiva ênfase nas mitologias européias. Parece estar surgindo entre os praticantes a idéia de que seus ritos e crenças podem conter elementos, e mesmo resgatar elementos, do paganismo típico dos povos agrícolas, mas não são uma expressão preservada através dos tempos desses ritos e crenças.
Na questão da divindade, a crença wiccana ainda surge nebulosa. Não parece haver entre os praticantes (e na verdade nem entre os autores) um consenso sobre o que representam, efetivamente, a figura da Deusa e do Deus-Consorte. A tendência é atribuir-lhes uma transcendência ou mesmo uma concepção figurativa, mas ainda rejeita-se a idéia de retratá-los como simples representações dos ciclos naturais. A noção da existência concreta da divindade, e mesmo de sua intervenção direta e particular na vida humana, típica da cultura judaico-cristã, está ainda fortemente presente nesse ponto particular.
Por fim, a questão da magia surge como preponderante. Ela é não apenas uma crença generalizada como, ainda, está relacionada diretamente aos princípios éticos e morais aceitos como norteadores de conduta, na religião. Seria, talvez, o caso de considerar a Wicca quase como uma “religião da magia”, o que acabaria por diferenciá-la notadamente do cristianismo, e em especial do catolicismo, que vem deixando cada vez mais de lado seus aspectos místicos ou misteriosos. Dessa forma, talvez possamos encontrar aqui um dos atrativos principais dessa nova religião, uma vez que nossos resultados apontam para uma crença disseminada na magia, independentemente da religião.
Disseminada através da Internet, de inúmeros títulos nas livrarias e mesmo de publicações populares nas bancas de jornais, trazendo no conjunto das suas crenças uma reaproximação com a natureza e com as formas mais instintivas da religiosidade e, além disso, demonstrando a capacidade de se reavaliar e de adaptar sua doutrina a novos tempos e novos pensamentos, a Wicca vem ganhando um sólido espaço entre as múltiplas religiões presentes no Brasil. Embora ainda carente de algumas definições e bastante associada ao esoterismo, ela constitui para o pesquisador uma rara oportunidade: assistir o nascimento e o desenvolvimento de uma religião.
Bibliografia:
BOURNE, Lois. Autobiografia de uma feiticeira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
CABOT, Laurie. O poder da bruxa. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
CROWLEY, Aleister. Os livros sagrados da Thelema. São Paulo: Madras, 1998.
DUARTE, Janluis. As bruxas da Internet. In: www.mitoemagia.com.br, 2003.
ELIADE, Mircea. História das Crenças e Idéias Religiosas. Rio de Janeiro. Zahar 1978.
FARRAR, Janet e Stewart. Oito sabás para bruxas. São Paulo: Anúbis, 1999.
GARDNER, Gerald B. A bruxaria hoje. São Paulo: Madras, 2003.
_________. O significado da bruxaria. São Paulo: Madras, 2004.
MURRAY, Margareth A. O culto das bruxas na Europa Ocidental. São Paulo: Madras, 2003.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário, 1995.
RAVENWOLF, Silver. To Ride a Silver Broomstick. St.Paul: Llewellyn, 1993.
RUSSELL, Jefrey B. História da feitiçaria. Rio de Janeiro: Campus, 1993.
Colaborou por e-mail Mertiades de Azevedo
Por Jan Duarte
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.