Leia em 32 minutos.
Este texto foi lambido por 65 almas esse mês
excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Dos precedentes relatos sobre as festas da primavera e do verão na Europa podemos deduzir que os nossos incultos antepassados per- sonificavam os poderes da vegetação como masculinos e femininos, e tentavam, de acordo com os princípios da magia homeopática ou imitativa, apressar o crescimento das árvores e das plantas representando o casamento das divindades silvestres nas pessoas de um rei e uma rainha da primavera, de um noivo e uma noiva da festa de Pentecostes e assim por diante. Assim sendo, tais representações não constituíam simples dramas simbólicos ou alegóricos, peças pastoris destinadas a divertir ou instruir um público ignorante. Eram sortilégios destinados a fazer com que a floresta verdejasse, a relva dos pastos crescesse, o milho fosse abundante e as flores despontassem.
Na Ucrânia, no dia de São Jorge, um sacerdote paramentado, atendido pelos acólitos, sai para os campos da aldeia, onde as plantações começam a despontar do solo, e as abençoa. Depois, casais jovens se deitam sobre os campos semeados e rolam sobre eles várias vezes, na crença de que isso promoverá o crescimento das sementes ali lançadas. Da mesma forma, durante quatro dias antes de semearem, os pipiles da América Central abstinham-se de relações com suas mulheres, “para que, na noite antes do plantio, pudessem ser amantes ardentes; afirma-se mesmo que certas pessoas eram indicadas para praticar o ato sexual no momento exato em que as primeiras sementes eram lançadas ao solo”. Manter relações íntimas com as mulheres, naquele momento, era recomendado pelos sacerdotes como um dever religioso, que, se não fosse cumprido, tornava ilegítima a semeadura.
A única explicação possível para esse costume parece ser a de que os índios confundiam o processo de reprodução dos seres humanos com o processo pelo qual as plantas realizam a mesma função, e imaginavam que, recorrendo ao primeiro, estimulavam ao mesmo tempo o segundo.
Para o estudioso que se dá ao trabalho de acompanhar o curso tortuoso da mente humana na sondagem da verdade, é interessante observar que a mesma crença teórica na influência simpática dos sexos sobre a vegetação, que levou certos povos a entregar-se a suas paixões como meio de fertilizar a terra, levou outros a buscar o mesmo objetivo por meios diametralmente opostos. Desde o momento em que semeavam o milho até a época em que o colhiam, os índios da Nicarágua viviam em castidade, abstendo-se de relações com suas mulheres e dormindo longe delas. Não comiam sal e não tomavam chocolate nem chicha, a bebida fermentada feita de milho. Em suma, aquela estação era para eles, como observam os historiadores espanhóis, uma época de abstinência.
Mais uma vez, a relação simpática que se supunha existir entre o comércio dos sexos e a fertilidade da terra se evidencia na crença de que o amor ilícito tende, direta ou indiretamente, a prejudicar a fertilidade e a danificar as colheitas. Essa crença predomina, por exemplo, entre os carenes da Birmânia. Eles imaginam que o adultério ou a fornicação têm poderosa influência negativa sobre as plantações. Por isso, se estas não forem boas durante um ou dois anos, e se não caírem as chuvas, a escassez é atribuída a pecados secretos desse gênero; os camponeses dizem que o deus do céu e da terra está irritado com eles por essa razão. Unem-se todos, então, para fazer uma oferenda que o acalme. Além disso, sempre que se descobre um adultério ou fornicação, os anciãos decidem que os pecadores devem comprar um porco e matá-lo. A mulher toma então um dos pés do animal, e o homem, o outro, e enchem com sangue de porco os sulcos da terra. Em seguida, raspam o chão com as mãos e rezam: “Deus do céu e da terra, Deus das montanhas e colinas, eu destruí a produtividade do campo. Não te irrites comigo, não me odeies; tem pena de mim, apieda-te de mim. Reparo as montanhas, curo as colinas, e os rios e as terras. Que não fracassem as colheitas, que não se frustrem os trabalhos e não sejam inúteis os esforços em minha terra. Que se dissipem ao pé do horizonte. Torna fértil o arrozal, abundante o arroz. Faze com que os vegetais floresçam. Se cultivarmos pouco, ainda assim faze com que tenhamos esse pouco”. De- pois de cada um deles ter feito essa oração, retornam à casa e dizem que repararam a terra.
Os gregos e os romanos antigos alimentavam idéias semelhantes sobre o efeito devastador do incesto. No reinado do Imperador Cláudio, um patrício romano foi acusado de incesto com sua irmã. Ele se suicidou, a irmã foi banida e o imperador mandou que certas cerimônias antigas, derivadas, segundo a tradição, das leis do Rei Sérvio Túlio, fossem realizadas, e que a expiação se cumprisse, pelos pontífices, no bosque sagrado de Diana, provavelmente o famoso bosque ariciano que constituiu o ponto de partida de nossa pesquisa. Como Diana parece ter sido uma deusa da fertilidade em geral e da fertilidade das mulheres em particular, a expiação do incesto realizada em seu santuário talvez possa ser aceita como evidência de que os romanos, como outros povos, atribuíam à imoralidade sexual tendência a prejudicar os frutos, tanto da terra como do ventre. Essa dedução é fortalecida por um pre- ceito estabelecido por austeros autores romanos, segundo o qual os padeiros, cozinheiros e mordomos deviam ser rigorosamente castos, porque era extremamente importante que a co- mida e as vasilhas fossem manuseadas por pes- soas que se encontrassem na puberdade ou, pelo menos, por pessoas que raramente praticassem sexo. Por isso, se um padeiro, um cozinheiro ou um mordomo violasse essa regra de continência, tinha o dever imperioso de lavar-se num rio, ou em alguma outra água corrente, antes de voltar aos seus afazeres profissionais. Mas, para esse gênero de atividades, eram preferidos os serviços de um menino ou de uma virgem.
O casamento sagrado
No último capítulo vimos que, de acordo com uma crença generalizada que não deixa de ter alguma base nos fatos, as plantas se reproduzem pela união sexual de elementos masculinos e femininos, e que, de acordo com o princípio da magia homeopática ou imitativa, essa reprodução pode ser estimulada pelo casamento, real ou fictício, de homens e mulheres que se apresentam, naquele instante, como espíritos da vegetação. Esses dramas mágicos desempenharam um grande papel nas festas populares da Europa, e baseando-se, como se baseiam, numa concepção muito grosseira de lei natural, é evidente que devem ter vindo de uma antiguidade remota. Parece-nos, portanto, que, em certas festas dos antigos, podemos identificar equivalentes de nosso Dia da Primavera, ou 1.° de Maio, da festa de Pentecostes e de celebrações do Solstício de Verão, com a diferença de que, naqueles dias, as cerimônias ainda não se haviam reduzido a simples espetáculos e paradas, mas eram ainda ritos religiosos ou mágicos, nos quais os atores desempenhavam, conscienciosamente, os altos papéis de deuses e deusas. No primeiro capítulo deste livro, tivemos razão para acreditar que o sacerdote com o título de rei do bosque, em Nemi, tinha como companheira a deusa do bosque, a própria Diana. Não teriam sido os dois, como rei e rainha do bosque, equivalentes sérios dos alegres mascarados que representam o rei e a rainha de maio, o noivo e a noiva da festa de Pentecostes, na Europa moderna? E não terá a sua união sido celebrada anualmente numa “teogamia”, ou casamento divino? Esses casamentos dramáticos de deuses e deusas eram realizados como ritos religiosos solenes em muitas partes do mundo antigo; portanto, não há nenhuma impossibilidade intrínseca na suposição de que o bosque sagrado de Nemi possa ter sido cenário de uma cerimônia anual desse tipo. O objetivo dessa união seria o de promover a fertilidade da terra, dos animais e dos homens, e poder-se-ia pensar naturalmente que tal objetivo seria atingido com mais segurança se as núpcias sagradas fossem celebradas a cada ano, sendo os papéis da noiva e do noivo divinos representados por imagens ou por pessoas vivas. Na ausência de evidências diretas, essa teoria tem de basear-se na analogia com costumes semelhantes em outros lugares e outras épocas da história.
Na Babilônia, o imponente santuário de Bel elevava-se, como uma pirâmide, acima da cidade, com uma série de oito torres ou pavimentos plantados uns sobre os outros. Na torre mais alta, que se atingia por uma rampa que contornava todas as outras, havia um espaçoso templo, e nele uma grande cama, magnificamente estofada e forrada, tendo ao lado uma mesa dourada. Não se via no templo nenhuma imagem, e nenhum ser humano ali passava a noite, exceto uma única mulher que, de acordo com os sacerdotes caldeus, o deus escolhia entre todas da Babilônia. Diziam ainda que o próprio deus vinha ao templo, à noite, e dormia na grande cama; e a mulher, como consorte do deus, não podia ter relações sexuais com homens mortais. Como Bel, na Babilônia, foi identificado com Marduk, o principal deus da cidade, a mulher que assim partilhava de seu leito era sem dúvida uma das “mulheres de Marduk”, mencionadas no código de Hamurabi.
Em Tebas, no Egito, uma mulher dormia no templo de Amon como a esposa do deus e, como a esposa humana de Bel na Babilônia, não podia ter comércio sexual com homens. Nos textos egípcios, ela é freqüentemente mencionada como “a divina consorte”, e não era personagem menos importante do que a própria rainha do Egito. De acordo com os egípcios, seus monarcas eram na realidade gerados pelo deus Amon, que adotava para isso a forma momentânea do rei, e assim tinha relações com a rainha. A procriação divina foi entalha
da e pintada, em detalhe, nos muros dos mais antigos templos do Egito, os de Deir ei Bahari e de Luxor. As inscrições ali feitas não deixam dúvidas quanto ao significado das cenas.
O costume de casar deuses com imagens era, e ainda é, muito generalizado. Os índios de uma aldeia do Peru casavam uma bela jovem, de cerca de catorze anos, com uma pedra que tinha a forma de um ser humano e que consideravam como um deus (huaca). Todos os camponeses participavam da cerimônia nupcial, que durava três dias e era muito celebrada. A moça continuava virgem e fazia sacrifícios à pedra em favor do povo. Era tratada com a maior consideração e tida como divina.
Uma cerimônia berbere nos proporciona outro tipo de exemplo do que podemos chamar de casamento sagrado, isto é, um casamento de duas divindades, no caso representadas ambas por seres humanos vivos. Essa cerimônia ainda é realizada na primavera por alguns dos berberes do Marrocos, como, por exemplo, na pequena aldeia de Duzru, nas montanhas do Anti-Atlas, e a sua época é o retorno da primavera. Pela manhã, no alvorecer, as moças da aldeia vão para a floresta para arrancar o mato e as plantas mortas. Seu regresso é assinalado por um tiro de mosquete. Imediatamente as mulheres que ficaram na aldeia vão ao encontro delas, escoltando uma jovem chamada a noiva do bem (fiancée du bien). Esta, totalmente vestida de branco como para um casamento, monta num burro branco, segurando na mão uma galinha branca. Quando as duas procissões se encontram as moças põem de lado seus ramos e folhagens e começam a dançar, entoando canções como esta:
“Acompanharemos a noiva do bem até a mesquita da aldeia, Para que Deus proporcione aos muçulmanos saúde e abundância”.
Os rapazes, por sua vez, colhem, nos jardins, lenha que levam à mesquita. Em seguida, como fizeram suas irmãs, dirigem-se à floresta para recolher mato seco, isso depois de ter escolhido entre eles um jovem que é o noivo do bem (fiancé du bien). Vestido de branco como a noiva, ele também monta num burro branco e segura um galo de plumagem branca. Vai à frente de uma pequena procissão que se dirige aos campos, mas, a meio caminho, seus companheiros o abandonam, entregando-o aos cuidados de um único rapaz, que fica à seu lado, armado de um mosquete para protegê-lo dos maus espíritos, ou djins. Levando braçadas de mato, os rapazes voltam e retomam seus lugares em torno do noivo. Um deles amarra então os pés do burro, atando a mesma corda ao pescoço do noivo, curvado sobre a sua montaria. Nesse momento, o guardião dispara o mosquete. Esse sinal, ouvido na aldeia, provoca grande agitação. Os homens, tomando de suas armas, correm para a noiva, montada em seu burro no centro do grupo de mulheres, e a levam, numa carreira desenfreada, até o noivo amarrado ao burro. Gritam: “Agüente-se. Não caia, para que o Ano-Novo nos possa ser favorável. Não caia”. A procissão se detém perto do noivo e, sem perder um momento, a jovem corta com uma faca a corda que o amarra, exclamando: “Cortamos o pescoço da fome: que Deus ressuscite o pescoço do bem”. Acompanhada pelo jovem que escolta o noivo, a noiva volta sozinha para a aldeia e, quando retoma seu lugar entre as mulheres, seu guardião dispara novamente. É outro sinal, pois imediatamente os homens e rapazes começam a trazer, com a mesma precipitação, o noivo agora liberto das cordas. Gritam-lhe de todos os lados: “Agüente-se. Não caia, para que o Ano-Novo nos possa ser favorável”. Cantos, danças, gritos e tiros de mosquete anunciam o feliz retorno do noivo. Isso conclui a primeira parte da cerimônia. Sem dúvida o noivo, libertado de seus laços e retornando em triunfo, personifica a renovação da natureza, e a noiva, o espírito da vegetação. Espera-se que sua união influa na renovação da vida da primavera, tornando-a fértil. A noiva e o noivo, agora lado a lado, marcham à frente da procissão. Os rapazes vão atrás dele, e as moças, atrás dela, cantando, mas sem se misturarem. O grupo, contente, repete sem cessar: “Estamos trazendo de volta o bem”.
Em meio a esse curioso e pitoresco cortejo, o casal é levado à mesquita, onde, de acordo com o costume, só entram o noivo e a noiva. As duas portas fecham-se atrás deles. A multidão permanece sob os umbrais de uma delas, conservando completo silêncio; sob os da outra, um guardião severo, o mosquete carregado, monta guarda, evitando os curiosos e os indiscretos que poderiam desejar desvendar o mistério do que está ocorrendo no templo, transformado, por uma hora, em cenário da prostituição sagrada. O que acontece ali é pouco conhecido, mas diz-se que o noivo e a noiva se dirigem ao lugar chamado de “túmulo do arcanjo Gabriel”, onde ele corta a garganta do galo, que não largou durante todas as cerimônias anteriores, e faz o mesmo com a galinha branca de sua noiva. Depois de cozinhar e comer a carne das duas vítimas, ele exige os seus direitos, que a noiva não contesta, pois da consumação de sua união transitória depende a prosperidade do clã. Quando chega a noite, eles se separam, seguindo caminhos diferentes. Vem, então, o terceiro e último ato da cerimônia, um ato trágico, durante o qual a noiva deve morrer. Os noivos se separam e cada qual vai para uma porta do santuário. “Fogo!”, grita o noivo para o guardião. A esse grito, os homens correm para a porta onde ele se encontra e acendem grandes fogueiras de mato seco ali colocado, e, quando o noivo se aproxima, encontra altas chamas que tem de saltar com um único pulo, enquanto a noiva, lânguida e exausta, deixa-se cair na pequena fogueira que suas irmãs acenderam para ela, na outra porta. Diz-se ainda que os jovens da aldeia imitam o exemplo dado pelos noivos do bem, para facilitar, da mesma maneira, o retorno da vida da primavera. Encontram-se aos pares num lugar público e passam juntos, moças e rapazes, o que chamam de “a noite da felicidade”.
Em Kentung, um dos principais Estados Shan da Alta Birmânia, o espírito do lago Naung Tung é considerado como muito poderoso, e é preciso fazer-lhe oferendas no oitavo mês (julho, aproximadamente) de cada ano. Um aspecto notável do culto desse espírito está na entrega que a ele se faz de quatro virgens em casamento. O costume exige que isso ocorra a cada três anos. Foi feito, realmente, pelo finado rei ou chefe (Saubua) em 1893, mas até 1901 o rito não havia sido repetido pelo seu sucessor. As quatro moças são selecionadas entre as jovens solteiras de idade adequada e devem ser as mais bonitas. Depois de uma festa pública, são formalmente apresentadas ao espírito, juntamente com os vários sacrifícios e oferendas. São levadas em seguida à residência do chefe, onde lhes são atadas pulseiras para protegê-las contra a má sorte. Habitualmente, dormem uma ou duas noites no palácio, podendo em seguida retornar às suas casas. Não parece haver objeções a que venham a casar-se. Se nada acontecer a nenhuma das quatro, acredita-se que o espírito do lago não gostou muito delas; mas se alguma morrer logo depois da cerimônia, isso constitui prova de que foi aceita por ele. O espírito é propiciado com sacrifício de porcos, de aves e, por vezes, de um búfalo.
Nesse último costume, a morte da mulher é considerada como indício de que o deus a levou para si. Em certos casos, é evidente que não se dá ao divino noivo essa possibilidade de aceitar ou não a noiva humana; ela lhe é entregue de maneira definitiva, pela morte. Quando os árabes conquistaram o Egito, ficaram sabendo que, na ocasião da cheia anual do Nilo, uma jovem virgem era ataviada de belas e alegres roupagens e lançada no rio, como sacrifício, a fim de assegurar uma boa cheia. O general árabe aboliu esse costume bárbaro.
Os reis de Roma
Do que vimos até aqui sobre costumes e lendas, podemos deduzir que o casamento sagrado das forças da vegetação e das forças da água foi celebrado por muitos povos com o objetivo de promover a fertilidade da terra, da qual depende em última instância a vida dos animais e dos homens, e que, nesses ritos, o papel do noivo ou noiva divino é, com freqüência, desempenhado por um homem ou uma mulher. As evidências podem, portanto, dar certo peso à conjectura de que, no bosque sagrado de Nemi, onde os espíritos da vegetação e da água se manifestavam nas belas formas de árvores sombreadas, cascatas murmurantes e plácido lago, um casamento como o dos nossos rei e rainha de maio, ou da primavera, era celebrado anualmente entre o mortal rei do bosque e a imortal rainha do bosque, Diana. Em conexão com isso, uma figura importante no bosque era a ninfa aquática Egéria, adorada pelas mulheres grávidas porque, como Diana, podia assegurar-lhes um bom parto. A partir daí, parece lógico concluir que, como a de muitas outras fontes, a água de Egéria tivesse, ao que se acreditava, um poder de facilitar tanto a concepção quanto o parto. As oferendas votivas encontradas no local, e que se referem claramente à concepção de filhos, possivelmente terão sido dedicadas a Egéria, e não a Diana, ou talvez devêssemos dizer que a ninfa aquática Egéria era a representante local de Diana.
A lenda romana diz que Egéria casou-se com o rei romano e legislador Numa, a quem inspirou uma sabedoria superior à dos mortais. Quando lembramos a freqüência com que, nas sociedades antigas, o rei era considerado como responsável pelas chuvas e pela fertilidade da terra, não nos parece arriscado supor que, na lenda das núpcias de Numa e Egéria, temos a reminiscência de um casamento sagrado, que os antigos reis romanos celebravam regularmente com uma deusa da vegetação e da água, para poder desempenhar suas funções divinas ou mágicas. Nesse rito, o papel da deusa podia ser desempenhado por uma imagem ou uma mulher, e nesse último caso, provavelmente pela rainha. A lenda de Numa e Egéria fala de um bosque sagrado, e não de uma casa, como o cenário da união nupcial, que, como o casamento do rei e da rainha de maio, ou do deus da vinha e da rainha de Atenas, pode ter sido celebrado anualmente para assegurar a fertilidade, não apenas da terra, como também dos homens e animais. Ora, de acordo com certos relatos, o cenário do casamento não era outro senão o bosque sagrado de Nemi, e, por motivos totalmente independentes, somos levados a supor que, naquele mesmo lugar, o rei do bosque casara-se com Diana. A convergência de duas linhas distintas de pesquisa sugere que a união lendária do rei romano com Egéria pode ter sido um reflexo ou uma duplicação da união do rei do bosque com a mesma ninfa, ou Diana, que seria outra forma por ela tomada. Isso não significa que os reis romanos tenham jamais servido como reis do bosque no bosque de Arícia, mas apenas que podem ter sido originalmente dotados de um caráter sagrado, do mesmo tipo geral, e podem ter desempenhado as suas funções em termos semelhantes. Mais explicitamente, é possível que reinassem não por direito de nascimento, mas em virtude de sua suposta divindade como representantes ou personificações de um deus, e que como tais se consorciassem com uma deusa, devendo provar, de tempos em tempos, sua capacidade de desempenhar as funções divinas, através de uma rigorosa luta corporal que lhes pode muitas vezes ter sido fatal, cabendo a coroa ao adversário vitorioso. Nosso conhecimento do reino romano é demasiado precário para que possamos afirmar qualquer uma dessas proposições com segurança, mas há pelo menos alguns indícios dispersos, ou indicações de semelhanças, sob todos esses aspectos, entre os sacerdotes de Nemi e os reis de Roma, ou antes talvez entre seus predecessores remotos nos tempos obscuros que antecederam o alvorecer, da lenda.
Ao que parece, o rei romano personificava uma divindade que era nada menos do que o próprio Júpiter. Até os tempos imperiais, os generais vitoriosos, ao comemorar um triunfo, e os magistrados, ao presidir aos jogos no circo, usavam a roupa de Júpiter, tomada de emprés- timo, para a ocasião, do seu grande templo no Capitólio. Já foi dito, com grande margem de probabilidade, tanto pelos antigos como pelos modernos, que, ao agirem assim, copiavam as vestimentas e insígnias tradicionais dos reis ro- manos. Usavam um carro puxado por quatro cavalos coroados de louros, numa cidade em que todas as outras pessoas andavam a pé; usavam roupas purpúreas bordadas ou enfeitadas de ouro; na mão direita, levavam um ramo de louros e na esquerda, um cetro de marfim tendo no alto uma águia; um ramo de louros lhes coroava a testa, seu rosto era pintado com vermelhão, e um escravo lhes segurava, sobre a cabeça, uma pesada coroa de ouro maciço modelado em forma de folhas de carvalho. A águia era a ave de Júpiter, o carvalho, a sua árvore sagrada, e o rosto de sua imagem, no
Capitólio, que o representava de pé num carro de quatro cavalos, era igualmente pintado de vermelho por ocasião das festas. Na verdade, era considerado tão importante manter as faces divinas devidamente coradas que um dos primeiros deveres dos censores era providenciar para que isso se fizesse.
A lenda de Numa e Egéria parece encerrar uma reminiscência de uma época em que o próprio rei sacerdote desempenhava o papel de noivo divino; e como encontramos razões para supor que os reis romanos eram personificação do deus-carvalho, enquanto Plutarco afirma ser Egéria uma ninfa do carvalho, a história de sua união no bosque sagrado suscita a presunção de que, em Roma, no período dos reis, realizava-se periodicamente o casamento do soberano com a deusa do carvalho, com o objetivo de apressar o crescimento das plantas por meio da magia homeopática. Podemos admitir que os antecedentes desse rito remontam à época em que os antepassados dos romanos faziam o casamento do deus-árvore com a deusa- árvore nas grandes florestas de carvalho da Europa central e setentrional. Na Inglaterra de hoje, a maior parte das florestas desapareceu, mas, ainda assim, em muitas praças de aldeia e em muitas veredas do campo, uma pálida imagem do casamento sagrado ainda perdura nas rústicas comemorações do Dia da Primavera a 1.° de maio.
O culto do carvalho
Foram mencionadas razões para se acreditar que os primeiros reis latinos faziam-se passar por representantes de Júpiter, o deus do carvalho, do céu, da chuva e do trovão, e que, como tais, pretendiam exercer as funções fer-tilizadoras ao deus atribuídas. A probabilidade dessa interpretação se fortalecerá se pudermos provar que o mesmo deus era adorado, sob outros nomes, por outros ramos da raça ariana na Europa, e que os reis latinos não eram os únicos a se arrogarem tais poderes e atributos. Vamos, neste capítulo, reunir rapidamente alguns dos fatos principais que apontam para essa conclusão. Muito antes do alvorecer da história, a Europa era coberta de enormes florestas primevas, que devem ter exercido profunda influência sobre o pensamento, bem como sobre a vida, de nossos rudes antepassados, que viviam dispersos sob a sombra escura ou nas áreas menos densas e nas clareiras das florestas. Ora, de todas as árvores que formavam essas florestas, o carvalho parece ter sido a mais comum e a mais útil. A prova disso nos é proporcionada, em parte, pelas afirmações dos autores clássicos, em parte pelas ruínas de aldeias antigas, construídas sobre estacas em lagos e pântanos, e também pelas florestas de carvalho encontradas sob espessas turfeiras.
Essas turfeiras, que se desenvolveram prin- cipalmente no norte da Europa, mas são en- contradas também nas áreas centrais e meridionais do continente europeu, preservaram, como num museu, as árvores e plantas que cresciam e floresciam ao fim da Era Glacial. A grande turfeira da Irlanda mostra que houve uma época em que vastas florestas de carvalhos e teixos cobriam a região; os carvalhos cresciam nas elevações até uma altura aproximada de cento e vinte metros acima do nível do mar, ao passo que, em altitudes maiores, o pinho ou o abeto eram as madeiras predominantes. Descobriram-se com freqüência restos humanos nessas turfeiras irlandesas, e antigas veredas feitas de carvalhos também foram ali encontradas. Na turfeira situada nas proximi- dades de Abbville, no vale do Somme, foram desenterrados troncos de carvalho de quatro metros, diâmetro raramente encontrado fora dos trópicos no Velho Continente.
Prova inequívoca do predomínio do carvalho e de sua utilidade para o homem nos tempos primitivos nos é proporcionada pelos remanescentes de aldeias de palafitas em muitos lagos da Europa. Nas ilhas Britânicas, na Europa central e no vale do Pó, as plataformas e palafitas sobre as quais essas habitações lacustres, ou crannogs, repousavam parecem ter sido feitas quase sempre de carvalho, embora o abeto e a bétula, bem como outras árvores, tenham sido por vezes usados na sua construção. Além disso, a velha tradição clás- sica de que os homens se alimentaram de glandes (bolotas) antes de aprenderem a cultivar a terra bem pode ter base na realidade. Na verdade, as glandes eram ainda usadas como parte da dieta em certas regiões do sul da Europa em tempos históricos. Falando da prosperidade dos justos, Hesíodo declara que, para eles, a terra encerra muitos alimentos, e o carvalho nas montanhas produz glandes. De acordo com Estrabão, os montanheses da Espanha viviam de pão de glande durante dois terços do ano, e, naquele país, as glandes eram servidas como segundo prato até mesmo nas refeições das pessoas ricas. Nas mesmas regiões, idêntica prática sobreviveu até os tempos modernos. O mais comum, e melhor, carvalho da Grécia moderna é o Quercus aegilops, de bela copa; os camponeses comem-lhe as glandes tanto assadas como cruas. As glandes, mais doces, do Quercus ballota servem de comida aos camponeses gregos, especialmente na Arcádia. Na Espanha, comem-se as glandes do carvalho de folhas persistentes (Quercus ilex), conhecidas como bellotas e tidas como muito maiores e mais suculentas do que as produzidas pelo carvalho inglês. A duquesa, em Dom Quixote, escreve à mulher de Sancho que lhe mande algumas. Mas hoje os carvalhos são pouco numerosos e muito esparsos na Mancha.
Podemos concluir, assim, que os primitivos árias da Europa viviam entre florestas de carvalho, usavam gravetos de carvalho para acender suas fogueiras e madeira do carvalho para construir suas aldeias, suas estradas e suas canoas; que alimentavam os porcos com glandes, e eles próprios, em parte, sobreviviam da mesma dieta simples. Não é de surpreender, portanto, que a árvore de que recebiam tantos benefícios tivesse um papel importante em sua religião e fosse revestida de um caráter sagrado. Vimos que esse culto era observado em toda parte, e que, tendo início com a simples reverência e medo da árvore animada por um espírito poderoso, aos poucos se transformou num culto de deuses e deusas que, com o progresso do pensamento, se foram desligando cada vez mais de suas antigas moradas nas árvores e adotaram o caráter de divindades silvestres e espíritos da fertilidade em geral, para os quais os camponeses se voltavam não só para conseguir a prosperidade de suas plantações, como também a fecundidade dos animais e das mulheres. Mas devemos lembrar que, enquanto todos os carvalhos eram provavelmente objeto de temor supersticioso, a tal ponto que a derrubada de um deles para ser usado como madeira de construção ou lenha era cercada de cerimônias destinadas a apaziguar o espírito da árvore, apenas certos bosques específicos ou determinados carvalhos recebiam aquele grau de homenagem a que damos o nome de adoração. As razões que levaram os homens a venerar algumas árvores mais do que outras podem ser várias. Sabemos, por exemplo, que, para os druidas, o crescimento do visco num carvalho era sinal de que a árvore era especialmente sagrada; e a raridade desse fato — o visco não cresce habitualmente em carvalhos — reforçava o caráter sagrado e o mistério da árvore, pois são o estranho, o maravilhoso, o raro, e não o familiar e o conhecido, que despertam as emoções religiosas da humanidade.
O culto da natureza: a água
A água e as fontes estão entre os muitos aspectos da natureza que inspiraram veneração religiosa. NO ALTO. As qualidades medicinais das fontes de Bath eram conhecidas na época dos romanos. Cabeça de Górgona do templo de Sulis Minerva, divindade das fontes quentes de Bath. Roman Museum, Bath. ACIMA. Bath era ainda uma estação de águas muito conhecida no século XVIII, embora suas fontes já não fossem reverenciadas como manifestações divinas. Uma visão satírica dos pacientes em Bath. Victoria Art Gallery. Fotos: Bath City Council.
O culto do carvalho, ou do deus do carvalho, parece ter sido partilhado por todos os ramos da raça ariana na Europa. Gregos e italianos associavam a árvore com o seu deus supremo, Zeus, ou Júpiter, a divindade do céu, da chuva e do trovão. Zeus era o deus ao qual os gregos oravam regularmente para ter chuva. Nada mais natural, pois com freqüência, embora nem sempre, ele habitava as montanhas onde as nuvens se juntam e o carvalho cresce. Na Acrópole, em Atenas, havia uma imagem da Terra orando a Zeus para que chovesse. E, em tempos de seca, os próprios atenienses imploravam: “Chuva, chuva, ó caro Zeus, sobre as plantações de cereais dos atenienses e sobre as planícies”. Na Itália antiga, todo carvalho era dedicado a Júpiter, a versão italiana de Zeus, e, no Capitólio romano, o deus era adorado não apenas como a divindade do carvalho, mas também da chuva e do trovão.
Ao passarmos do sul para o centro da Europa, continuamos a encontrar o grande deus do carvalho e do trovão entre os árias bárbaros que viviam nas florestas primevas. Assim, entre os celtas da Gália, nada havia de mais sagrado para os druidas do que o visco e o carvalho no qual este crescia: escolhiam os bosques dessa árvore como cenário de suas celebrações solenes e nenhum dos ritos era celebrado sem as suas folhas. “Os celtas”, diz um autor grego, “adoram Zeus, e a imagem celta de Zeus é um alto carvalho.”
Na religião dos antigos germanos, a veneração pelos bosques sagrados parece ter ocupado lugar de destaque, e, de acordo com Grimm, a principal das árvores sacras para os germanos era o carvalho, que teria sido dedicado principalmente ao deus do trovão, Dônar ou Thunar, o equivalente do escandinavo Tor: um carvalho sagrado próximo de Geismar, em Hesse, que Bonifácio cortou no século VIII, era conhecido entre os pagãos pelo nome de carvalho de Júpiter (Robur Jovis), que em alemão antigo seria Donares Eih, “o carvalho de Dônar”. O fato de que o deus teutónico do trovão, Dônar, Thunar ou Tor se identificava com o deus italiano do trovão, Júpiter, evidencia-se pela palavra inglesa thursday, dia de Thunar (Thunar’s doy), que é simplesmente uma forma do latim dies Jovis. Assim, entre os antigos teutões, como entre os gregos e italianos, o deus do carvalho era também o deus do trovão. Além disso, era considerado como a grande força fertilizadora, que mandava a chuva e fazia com que a terra desse frutos. Adão de Bremen nos diz que “Tor preside no ar, é ele quem governa o trovão e o raio, o vento e as chuvas, o bom tempo e as colheitas”. Sob tais aspectos, portanto, o deus teutónico do trovão assemelhava-se às suas contrapartidas meridionais de Zeus e Júpiter. E, como estes, Tor parece ter sido o principal deus do panteão, pois, no grande templo de Uppsala, sua imagem ocupa- va lugar intermediário entre as imagens de Odin e Freyr, e, nos juramentos feitos em nome desta ou de outras trindades escandinavas, Tor era sempre a principal divindade a ser invocada.
Como se poderia esperar, o velho culto do carvalho na Europa deixou sua marca no costume e na superstição populares até os tempos modernos. Assim, no departamento francês do Maine, acredita-se que os carvalhos solitários nos campos ainda são cultuados, embora os padres tenham procurado dar a esse culto um colorido cristão, pendurando imagens de santos nas árvores. Em várias partes da Baixa Saxônia e da Vestefália ainda sobreviviam, na primeira metade do século XIX, vestígios da santidade de certos carvalhos, aos quais o povo dedicava um culto semipagão e semicristão. No regato Micksy, entre as províncias de Pskov e da Livônia, na Rússia, havia um carvalho enfezado e murcho, mas sagrado, que recebeu as homenagens dos camponeses da vizinhança até pelo menos 1874. Uma testemunha ocular descreveu essas solenidades. Ela encontrou uma grande multidão constituída principalmente de estonianos da Igreja Ortodoxa, reunidos com suas famílias nas proximidades da árvore, todos com as suas roupas domingueiras. Alguns haviam levado velas de cera e as amarravam pelo tronco e ramos. Pouco depois chegava o padre e, tendo vestido as roupas sacras, passou a entoar um cântico, como se faz habitualmente na Igreja Ortodoxa, em honra dos santos. Mas, em lugar de dizer, como é comum:
“Venerável santo, ora ao Senhor por nós”, dizia: “Venerável carvalho, aleluia, ora por nós”. Em seguida, espalhava incenso à volta da árvore. Durante o serviço, eram acesas as velas pen- duradas no carvalho, e as pessoas, lançando-se ao chão, adoravam a árvore sagrada. Mesmo depois que o padre se retirava, os fiéis continuavam até tarde da noite, comendo, bebendo, dançando e acendendo novas velas no carvalho, até que todos ficavam bêbados e a cerimônia terminava numa orgia. Concluímos assim que um deus do carvalho, do trovão e da chuva era adorado antigamente por todos os principais ramos da raça ariana na Europa e constituía, na verdade, a principal divindade de seu panteão.
Podemos agora aplicar os resultados de nossa pesquisa ao sacerdote de Nemi, o rei do bosque. No período clássico da Antiguidade grega e latina, a existência de reis era, quase sempre, coisa do passado; não obstante, as histórias de suas linhagens, títulos e pretensões bastam para provar que também os reis gregos e latinos se haviam arrogado o direito divino de governar e exercer poderes sobrenaturais. Podemos, portanto, sem temeridade, supor que o rei do bosque em Nemi, embora privado em tempos mais recentes de sua glória e reduzido a dias negros, representava uma longa linha de reis sagrados que haviam, em certo momento, recebido não só a homenagem, mas também a adoração de seus súditos em troca das muitas bênçãos que, segundo se supunha, podiam conceder. O pouco que sabemos das funções de Diana no bosque de Arícia parece provar que era considerada como uma deusa da fertilidade, e especialmente como uma divindade do parto. É razoável, portanto, supor que, no desempenho dessas importantes funções, fosse assistida pelo seu sacerdote, figurando ambos como o rei e a rainha do bosque num casamento solene, que visava a tornar alegres, a terra, com as florações da primavera e os frutos do outono, e os corações dos homens e das mulheres, com filhos sadios.
Resta-nos indagar se o sacerdote de Nemi era não apenas um rei, mas também um deus do bosque. Que divindade em particular representava ele? A resposta dada pela Antiguidade é a de que ele representava Vírbio, o consorte ou amante de Diana. Mas isso não tem, para nós, maior utilidade, pois de Vírbio pouco mais sabemos do que o nome. Uma chave do mistério talvez nos seja proporcionada pelo fogo das vestais que ardia no bosque, já que os fogos sagrados perpétuos dos arianos na Europa parecem ter sido acendidos e alimentados, habitualmente, com lenha de carva- lho, e na própria Roma, não muito distante de Nemi, o combustível do fogo das vestais era constituído de gravetos ou lenha que as virgens sagradas sem dúvida recolhiam, ou cortavam, das copas dos carvalhos que então cobriam as Sete Colinas. O ritual das várias cidades latinas parece ter sido marcado por uma grande uniformidade, daí ser razoável concluir que, sempre que se mantinha no Lácio um fogo sagrado, ele era alimentado, como em Roma, com lenha da árvore sagrada. Se assim era em Nemi, torna-se provável que o bosque que cercava o santuário fosse constituído de carvalhos e que, portanto, a árvore vigiada pelo rei do bosque, com risco da própria vida, fosse um carvalho. Na verdade, foi de um carvalho de folhas persistentes, segundo Virgílio, que Enéias arrancou o ramo de ouro. Ora, o car- valho era a árvore sagrada de Júpiter, o deus supremo dos latinos. Conclui-se, portanto, que o rei do bosque, cuja vida estava de certo modo ligada ao carvalho, representava nada menos do que o próprio Júpiter. Pelo menos as evidências, embora precárias, parecem indicar isso. Vírbio, com quem a lenda identificava o sacerdote, seria então uma forma local de Júpiter, deus do céu, do trovão e do carvalho. Se nossa análise dessa grande divindade está correta, o elemento original de sua natureza compósita é o carvalho. Era adequado, portanto, que seu representante em Nemi residisse, como temos razão para acreditar, num bosque de carvalhos. Seu título de rei do bosque indica claramente o caráter silvestre da divindade a que servia; e, como ele só podia ser atacado por quem tivesse arrancado o ramo de uma certa árvore do bosque, pode-se dizer que a sua vida estava ligada à daquela árvore sagrada. Assim, ele não só servia como também personificava o grande deus ariano do carvalho. E como deus do carvalho, ele se unia à se aglomerassem, o trovão ribombasse e a chuva caísse no devido tempo para que os campos e pomares pudessem dar frutos e os pastos se cobrissem de relva luxuriante.
O reputado possuidor de poderes tão exaltados deve ter sido uma personagem muito importante, e as ruínas das edificações e as oferendas votivas encontradas no sítio do santuário de Nemi combinam com o testemunho dos autores clássicos para provar que, em épocas posteriores, esse foi um dos maiores e mais populares santuários da Itália.
O culto da natureza: o fogo
Em muitas culturas, o fogo é símbolo do sagrado e do poder espiritual. Frazer acreditava que a veneração pelo fogo era condicionada por uma crença nas suas propriedades fecundantes e purificadoras. Essa idéia foi por ele associada à sacralidade do carvalho, que era a principal fonte de madeira para fazer fogo em toda a Europa pré- histórica. NO ALTO. Os zoroastrianos ainda consideram o fogo como a principal manifestação do bem, e o poder vitalizador que lhe atribuem reflete-se no ritual e no tabu. Antigos altares do fogo, Naksh-i-Rustam, Irã. Foto: Robert Harding Associates, Londres. ACIMA. Na Índia, o fogo estava associado à força espiritual. Essa pintura jainista do século XV mostra o ritual da “penitência das cinco fogueiras”: o crente senta-se entre quatro fogueiras, pois o sol é a quinta, e absorve suas energias espirituais. Cortesia do Museum of Fine Arts. Boston.
Mesmo em dias mais recuados, quando os campos à sua volta ainda estavam divididos entre pequenas tribos que compunham a Liga Latina, o bosque sagrado já constituía um objeto de adoração e cuidado comuns. E tal como os reis do Camboja costumavam mandar oferendas aos reis místicos do fogo e da água, perdidos nas sombrias profundezas da floresta tropical, assim, também, podemos acreditar que, de todos os cantos da ampla planície latina, os olhos e os passos dos peregrinos italianos se voltassem para o lugar onde, destacando-se contra a linha azul-clara dos Apeninos ou o azul mais escuro do mar distante, elevavam-se à sua frente os montes Albanos, mo- rada do misterioso sacerdote de Nemi, o rei do bosque. Ali, em meio à verde floresta e ao lado de águas tranqüilas que desciam de montes solitários, o velho culto ariano do deus do carvalho, do trovão e do céu que dá as chuvas, perdurava em sua forma antiga, quase druídica, muito depois de uma grande revolução política e intelectual ter transferido a capital da religião latina da floresta para a cidade, de Nemi para Roma.
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.