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Bruxaria e Paganismo

A arte da magia e a evolução dos reis

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

Quem não conhece o quadro de Turner sobre o ramo de ouro? A cena, banhada do brilho dourado da imaginação com que Turner impregnava e transfigurava até mesmo a mais bela paisagem natural, é uma visão onírica do lago silvestre de Nerrii — “Espelho de Diana”, como era chamado pelos antigos. Quem tenha visto aquela água calma ao fundo de uma depressão verdejante dos montes Albanos, jamais poderá esquecê-la. As duas aldeias caracteristicamente italianas que dormem às suas margens, e o palácio igualmente italiano cujos jardins aterraçados descem em declive acentuado até o lago, não chegam a perturbar a tranqüilidade, a solidão mesmo, desse cenário. A própria Diana ainda poderia vagar por essas margens solitárias, caçar ainda nessas florestas.

Aqui, no próprio coração dos montes verdejantes, sob o declive abrupto hoje coroado pela aldeia de Nemi, a deusa silvestre Diana tinha um antigo e famoso santuário, freqüentado por peregrinos de todas as partes do Lácio. Era conhecido como o bosque sagrado de Diana Nemorensis, ou seja, Diana dos Bosques. Lago e bosque eram por vezes chamados de Arícia, nome da cidade mais próxima. Mas esta, a Arícia moderna, está a cerca de cinco quilômetros de distância, ao pé dos montes, separada do lago por um longo e acentuado declive. O santuário estava situado num espaçoso terraço, ou plataforma, limitado ao norte e a leste por grandes muros de sustentação que penetravam nos flancos do monte e os firma- vam. Nichos semicirculares cavados nesses muros, com colunas à sua frente, formavam uma série de capelas que, nos tempos modernos, produziram uma rica seara de oferendas votivas. Do lado do lago, o terraço repousava sobre forte muralha, com mais de duzentos metros de comprimento e nove metros de altura, construída sobre botaréus triangulares, como os que vemos diante dos pilares das pontes e que se destinam a romper o gelo flutuante. Nos dias de hoje, muro e terraço ficam a algumas centenas de metros do lago; outrora, seus botaréus podem ter sido banhados pelas águas. Se comparado com as proporções do sítio sagrado que o rodeava, o templo em si não era grande, mas suas ruínas mostram que era de construção limpa e sólida, de blocos maciços de peperino e adornada de colunas dóricas do mesmo material. Complicadas cornijas de mármore e frisos de terracota contribuíam para o esplendor externo do edifício, que parece ter sido ainda mais ressaltado por telhas de bronze dourado.

Uma grande quantidade de estatuetas de Diana, devidamente vestida com a túnica curta e os altos coturnos de caçadora, a aljava pendente do ombro, foi encontrada no local. Algumas delas representam a deusa com o arco nas mãos ou um cão de caça ao lado. Lanças de bronze e de ferro e imagens de veados e corças encontradas ao redor do santuário podem ter sido oferendas de caçadores à sua deusa, destinadas a propiciar o êxito na caça. Da mesma forma, tridentes de bronze, também encontrados em Nemi, talvez tenham sido levados por pescadores do lago, ou mesmo por caçadores que haviam lanceado javalis nos bosques, pois esse animal foi caçado na Itália até o fim do século primeiro da nossa era:

A senhora dos animais

O culto da deusa alada que segura leões foi trazido do Oriente Próximo para a Itália no início dos tempos históricos. Na Grécia e em Roma, essa antiga divindade da floresta foi adorada como Diana, a protetora dos caçadores.

Plínio, o Jovem, com a sua habitual e encantadora afetação, nos conta como estava sentado junto às redes, meditando e lendo, quando três javalis foram por elas colhidos. E mesmo mil e quatrocentos anos depois, esse gênero de caça era ainda passatempo favorito do Papa Leão X. Um friso de terracota com relevos pintados encontrado no santuário de Nemi, e que pode ter adornado o Templo de Diana, retrata a deusa sob a forma conhecida como Ártemis Asiática, com asas que lhe saem da cintura e um leão com as patas pousadas em seus ombros. Algumas toscas imagens de vacas, touros, cavalos e porcos, desenterradas no local, talvez indiquem ter sido Diana ali adorada também como protetora dos animais domésticos, além dos animais selvagens do bosque.

Até o declínio de Roma, observou-se em Nemi um costume que nos parece remontar imediatamente da civilização para a barbárie. Havia no bosque sagrado uma certa árvore, em torno da qual, a qualquer hora do dia e provavelmente até tarde da noite, uma figura sombria podia ser vista rondando de guarda. Levava na mão uma espada nua e todo o tempo olhava cautelosamente à volta, como se esperasse ser atacada a qualquer momento por um inimigo. Era sacerdote e assassino, e o homem a quem espreitava iria matá-lo, mais cedo ou mais tarde, para ocupar seu lugar como sacerdote. Era essa a regra do santuário. O candidato ao ofício sacerdotal só poderia ascender a ele matando o sacerdote e, concluído o assassinato, ocupava o

posto até chegar a sua vez de ser morto por alguém mais forte ou mais hábil. É verdade que esse posto, em que ele se instalava tão precariamente, conferia o título de rei: mas certamente nenhuma cabeça coroada jamais esteve tão pouco segura sobre os ombros, ou foi visitada por piores sonhos, do que a sua. Ano após ano, no verão ou no inverno, com bom ou mau tempo, o rei do bosque tinha de manter sua solitária vigilância e, toda vez que se arriscava a um cochilo agitado, fazia-o com perigo de vida.

A estranha regra desse sacerdócio não tem paralelo na Antiguidade clássica, que não a explica. Para compreendê-la teremos de nos aventurar mais longe. Ninguém negará, prova- velmente, que esse costume tem o sabor de uma idade bárbara e, tendo sobrevivido até os tempos imperiais, contrasta, por seu notável isolamento, com a refinada sociedade italiana da época, como uma rocha primeva que se erguesse num terreno perfeitamente aplainado. É a própria crueza e barbárie do costume que nos permite a esperança de encontrar a sua explicação. Pesquisas recentes sobre a história remota do homem revelaram uma similaridade essencial subjacente às muitas diferenças superficiais na forma pela qual a mente humana elaborou a sua primeira e imperfeita filosofia de vida. Assim sendo, se pudermos mostrar que um costume bárbaro, como o do culto de Nemi, existiu em outros lugares; se pudermos perceber os motivos que levaram à sua instituição; se pudermos provar que esses motivos existiram de  maneira  geral,  talvez  universalmente,  na

 

sociedade humana, produzindo, em circunstâncias variadas, numerosas instituições especificamente diferentes, mas genericamente semelhantes; se pudermos mostrar, finalmente, que esses mesmos motivos, com algumas das instituições deles derivadas, existiram efetivamente na Antiguidade clássica, então poderemos deduzir, com justeza, que numa época mais remota deram origem à regra de acesso ao sacerdócio de Nemi. Essa dedução, à falta de evidências diretas de como esse sacerdócio na verdade apareceu, jamais poderá ter pretensões à comprovação. Será, porém, mais ou menos provável dependendo das proporções em que satisfaça às condições que indicamos. O objetivo deste livro é, atendendo a essas condições, oferecer uma explicação provável do sacerdócio de Nemi.

Começamos expondo os poucos fatos e lendas que chegaram até nós relacionados com o assunto. De acordo com um dos relatos existentes, o culto de Diana em Nemi foi instituído por Orestes, que, depois de matar Toante, rei do Quersoneso Táurico (a Criméia), fugiu com sua irmã Ifigênia para a Itália, levando a imagem de Diana Táurica escondida num feixe de gravetos. Quando morreu, seus ossos foram levados de Arícia para Roma e enterrados diante do Templo de Saturno, no monte Capitólio, ao lado do Templo da Concórdia. O ritual sangrento, atribuído pela lenda a Diana Táurica, é conhecido dos leitores dos clássicos: todo estrangeiro que desembarcava nas praias da Táurida era sacrificado em seu altar. Transportado para a Itália, porém, o rito assumiu forma mais moderada. Dentro do santuário de Nemi crescia uma certa árvore da qual não se podia cortar nenhum galho. Só a um escravo fugido era permitido  arrancar  um  de  seus  ramos,  se  o pudesse fazer. O êxito nessa tentativa dava-lhe o direito de lutar com o sacerdote em combate singular, e se o vencesse, passaria a reinar em seu lugar, com o título de rei do bosque (rex nemorensis). Segundo a opinião geral dos antigos, o ramo fatídico era aquele ramo de ouro que, por instruções da Sibila, Enéias arrancou antes de iniciar sua perigosa jornada ao mundo dos mortos. Dizia-se que a fuga do escravo representava a fuga de Crestes; seu combate com o sacerdote era uma reminiscência dos sacrifícios humanos outrora oferecidos a Diana Táurica. Essa regra de sucessão pela espada foi observada até os tempos imperiais, pois, entre suas outras loucuras, Calígula, achando que o sacerdote de Nemi já vinha ocupando o cargo há muito tempo, contratou um rufião mais forte para matá-lo; e um viajante grego que visitou a Itália na época dos Antoninos observa que a dignidade sacerdotal ainda era o prêmio da vitória em combate singular.

Há ainda outros traços marcantes que podem ser identificados no culto de Diana em Nemi. Evidencia-se, pelas oferendas votivas encontradas no local, que ela era considerada especialmente como uma caçadora e, em seguida, como propiciadora de fertilidade para homens e mulheres, proporcionando a estas últimas um parto fácil. Também o fogo parece ter desem- penhado um papel destacado no seu ritual, pois durante sua festa anual, realizada a 13 de agosto, na época mais quente do ano, em seu bosque luziam inúmeras tochas, cujo brilho avermelhado se refletia no lago. E por todo o território da Itália essa data era comemorada com ritos sagrados em cada lar. Estatuetas de bronze encontradas no local do templo representam a própria deusa com uma tocha na mão direita erguida, e as mulheres a cujas preces dera ouvidos vinham coroadas de grinaldas e conduzindo tochas acesas até o santuário em cumprimento de suas promessas. Um anônimo dedicou à deusa uma chama perene, numa pequena ermida em Nemi, pela segurança do Imperador Cláudio e de sua família. As lanter- nas de terracota encontradas no bosque talvez tenham servido a fins semelhantes, para pessoas mais modestas. Se assim foi, a analogia com o costume católico de acender velas bentas nas igrejas será óbvia. Além disso, o título de Vesta, usado por Diana em Nemi, indica claramente a manutenção de um fogo sagrado perpétuo em seu santuário.

Em sua festa anual, comemorada em toda a Itália a 13 de agosto, os cães de caça eram coroados e os animais selvagens não eram molestados; os jovens se submetiam a cerimônias purificadoras em sua honra. Bebia-se vinho e comiam-se carne de cabrito, bolos servidos bem quentes em pratos de folhas e maçãs ainda pendentes dos ramos. A Igreja Católica parece ter Diana homenageada na vindima santificado essa grande festa da deusa virgem, transformando-a de maneira engenhosa na festa católica da Assunção de Nossa Senhora, a 15 de agosto.

 

A diferença de dois dias entre as datas não é um argumento decisivo contra sua identidade, pois um deslocamento semelhante de dois dias ocorre no caso da festa de São Jorge, a 23 de abril, que é provavelmente idêntica à antiga festa romana das Parílias, comemorada a 21 de abril. Sobre as razões que levaram a essa transformação da festa da virgem Diana na festa da Virgem Maria há luzes num trecho do texto siríaco intitulado A partida de Nossa Senhora Maria deste mundo, e que diz o seguinte: “E os apóstolos ordenaram também que houvesse uma comemoração da Bem-Aventurada a 13 de ab [isto é, de agosto], porque as vinhas trazem cachos [de uvas] e porque as árvores dão frutos e para que as nuvens de granizo, com as pedras do ódio, não possam vir, e as árvores não sejam quebradas, e seus frutos e as vinhas com seus cachos”. Diz-se nesse trecho, claramente, que a festa da Assunção da Virgem foi fixada a 13 ou 15 de agosto para proteger as vinhas que amadureciam e outros frutos. Até hoje, na Grécia, a 15 de agosto, as uvas maduras e outras frutas são levadas às igrejas para serem abençoadas pelos   padres.  Ora, ouvimos            falar  de            vinhas e plantações dedicadas a Ártemis, de frutos a ela oferecidos, e de seu templo em meio a um pomar. Podemos                conjeturar,  portanto,  que    sua          irmã italiana  Diana              também       era    reverenciada         como protetora das vinhas e das árvores frutíferas e que, a 13 de agosto, os donos de vinhedos e pomares lhe prestavam homenagem em Nemi, juntamente com outros membros da comunidade. Diana não reinava sozinha em seu bosque de Nemi. Duas divindades menores partilhavam do seu          santuário  silvestre.   Uma                       delas       era   Egéria, ninfa das águas cristalinas que, nascendo da rocha basáltica, caíam em graciosas cascatas até o lago, no   lugar       chamado      Le          Mole,      porque    ali   foram instalados os moinhos da aldeia moderna de Nemi. As    mulheres  grávidas  geralmente  ofereciam sacrifícios a Egéria por acreditarem que ela, como Diana, lhes poderia proporcionar um bom parto. Dizia a tradição que a ninfa havia sido esposa ou amante do sábio Rei Numa, que se unira no recesso do bosque sagrado, e que as leis que ele deu aos romanos haviam sido inspiradas pela comunhão com  a  divindade.  Plutarco  compara  essa  lenda com outras, dos amores de deusas por mortais, como o amor de Cibele e da Lua pelos belos jovens Átis e Endimião. Podemos supor que a fonte que desaguava no lago de Nemi era a verdadeira Egéria original e que, quando os primeiros habitantes desceram dos montes Albanos para as margens do Tibre, levaram com eles a ninfa e deram-lhe uma nova morada no bosque, fora dos muros. As ruínas dos banhos descobertas perto do templo, juntamente com muitos modelos de várias partes do corpo humano em terracota, sugerem que as águas de Egéria eram usadas para curar enfermos, que teriam expressado suas espe- ranças, ou testemunhado sua gratidão, oferecendo reproduções dos membros doentes à deusa, de acordo com um costume ainda observado em muitas partes da Europa. A fonte parece conservar, até hoje, as suas propriedades medicinais.

A outra divindade menor de Nemi era Vír-bio. A lenda afirma que Vírbio era o jovem herói grego Hipólito, casto e belo, que aprendera a arte da caça com o centauro Quíron e passava seus dias na floresta caçando animais selvagens, tendo a virgem caçadora Ártemis (a versão grega de Diana) como única companhia. Orgulhoso dessa sociedade divina, desprezou o amor das mulheres, e foi o que o perdeu. Ferida pela sua indiferença, Afrodite inspirou a Fedra, madrasta de Hipólito, um incontrolável amor pelo enteado. Quando Hipólito rejeitou as criminosas pretensões amorosas de Fedra, esta levantou contra ele falsas acusações junto a Teseu, pai de Hipólito e seu marido. A calúnia surtiu efeito, e Teseu pediu ao seu deus, Posêidon, que vingasse a suposta afronta. Assim, quando Hipólito passava de carro às margens do golfo Sarônico, o deus do mar fez sair das ondas um touro feroz e lançou-o contra o jovem. Os cavalos, aterrorizados, empinaram, lançando Hipólito ao chão e pisoteando-o até a morte. Mas Diana, pelo amor que votava a Hipólito, persuadiu o médico Esculápio a trazer de novo à vida o seu jovem e belo caçador, levando-o em seguida para longe, para as valeiras de Nemi, onde o confiou à ninfa Egéria, para que ele ali vivesse, desco- nhecido e solitário, sob o nome de Vírbio, nas profundezas da floresta italiana. Ali reinou Hipólito, onde dedicou um templo a Diana. Vírbio era adorado como deus não só em Nemi, mas também em outros lugares: havia na Campânia um sacerdote especialmente dedicado ao seu serviço. Os cavalos estavam excluídos do bosque e do santuário ariciano porque haviam matado Hipólito. Era proibido tocar sua imagem. Houve quem o considerasse como o sol. “Mas a verdade”, diz Sérvio, “é que ele é uma divindade ligada a Diana, como Átis está ligado à mãe dos deuses, Erecteu a Minerva e Adônis a Vênus.”

Não será necessária uma argumentação muito cerrada para nos convencer de que as lendas contadas para explicar o culto de Diana em Nemi nada têm de históricas. A incongruência desses mitos de Nemi é evidente, já que a fundação do culto é atribuída ora a Orestes ora a Hipólito conforme se queira explicar este ou aquele aspecto  do  ritual.  O  verdadeiro  valor  desses relatos está em que servem para ilustrar a natureza do culto, fornecendo um elemento de comparação, e, sobretudo, para, indiretamente, dar testemunho da sua venerável idade, mostrando que a sua verdadeira origem perdeu-se nas brumas da Antiguidade lendária.

Ártemis e Hipólito

As lendas aricianas de Orestes e Hipólito, embora nenhum valor possuam como história, têm uma certa importância por nos ajudar a melhor compreender o culto de Nemi, comparando-o com os rituais e os mitos de outros santuários. Por que o autor dessas lendas recorreu a Orestes e a Hipólito para explicar Vírbio e o rei do bosque? Em relação ao primeiro, a resposta é óbvia: Orestes e a imagem da Diana Táurica, que só se apaziguava com sangue humano, foram lembrados para tornar inteligível a regra assassina da sucessão, ao sacerdócio ariciano. Com relação a Hipólito, porém, o caso não é tão simples. O modo como morreu sugere uma evidente razão para a exclusão dos cavalos do bosque; mas isso, em si, dificilmente poderia explicar a identificação. Devemos ir mais fundo, examinando o culto e a lenda ou mito de Hipólito.

Hipólito tinha um santuário famoso em Trezena, sua localidade de origem, situada à beira de uma bela baía quase separada do mar. Em meio às águas azuis e tranqüilas da baía de Trezena, e abrigando-a do mar aberto, eleva-se a ilha sagrada de Posêidon, cujo ponto culminante é velado pelo verde sombrio dos pinheiros. Dentro do santuário de Hipólito havia um templo com uma imagem antiga. O serviço estava a cargo de um sacerdote vitalício: realizavam-se, todos os anos, festas em sua honra, e sua morte prematura era chorada anualmente, com cantos plangentes e melancólicos, por donzelas que ofereciam mechas dos próprios cabelos ao templo antes de se casarem. Existia um túmulo de Hipólito em Trezena, que não era. mostrado a ninguém. Já se disse, com certa plausibilidade, que no belo Hipólito, amado de Ártemis, desaparecido em plena juventude e anualmente chorado por donzelas, temos um daqueles amantes mortais de uma deusa tão freqüentes na religião antiga e dos quais Adônis é o mais conhecido. Alguns pretendem que a rivalidade entre Ártemis e Fedra pelo amor de Hipólito reproduz, sob diferentes nomes, a rivalidade entre Afrodite e Prosérpina pelo amor de Adônis, pois Fedra é apenas outra versão de Afrodite. Sem dúvida, no Hipólito, de Eurípides, a tragédia da morte do herói é atribuída diretamente à ira de Afrodite e ao desprezo de Hipólito pelo seu poder, sendo Fedra apenas um instrumento da deusa. Além disso, no local do santuário de Hipólito em Trezena havia um templo de Afrodite, a que espreita, assim chamado, ao que se diz, porque desse lugar a apaixonada Fedra costumava observar Hipólito quando este praticava seus esportes masculinos. É claro que o nome seria ainda mais adequado se a observadora tivesse sido a própria Afrodite. Ao lado desse templo de Afrodite havia um pé de murta de folhas perfuradas, que a infeliz Fedra, em seu sofrimento de amor, havia atormentado com seu punhal. Ora, a murta, com suas folhas brilhantes e sempre verdes, suas flores vermelhas e brancas e seu intenso perfume, era a árvore da própria Afrodite, e a lenda a associava ao nascimento de Adônis. Também em Atenas, Hipólito era estreitamente ligado a Afrodite, pois no lado sul da Acrópole, voltado para Trezena, via-se um sepulcro em sua memória, ao lado do qual estava um templo de Afrodite que teria sido fundado por Fedra e tinha o nome de templo de Afrodite e Hipólito. A conjunção, tanto em Trezena como em Atenas, do túmulo de Hipólito com um templo da deusa do amor é significativa.

Se essa versão das relações entre Hipólito, Ártemis e Afrodite é correta, é notável o fato de que ambas as divinas enamoradas de Hipólito pareçam estar associadas, em Trezena, a carvalhos. Afrodite era ali cultuada sob o nome de Ascraia, que significa “a do carvalho sem frutos”; e Hipólito teria encontrado a morte nas proximidades de um santuário de Ártemis Saroniana, isto é, Ártemis do carvalho oco, pois ali se podia ver a oliveira silvestre em que as rédeas de seu carro se haviam embaraçado, provocando com isso a sua queda.

Outro aspecto do mito de Hipólito que merece atenção é a presença constante de cavalos. O nome Hipólito significa “liberto pelo cavalo” ou “libertador de cavalos”. Ele consagrou vinte cavalos a Esculápio no Epidauro, foi morto por cavalos, a Fonte do Cavalo corria provavelmente não muito distante do templo por ele construído para Ártemis Loba, e os cavalos eram sagrados para o seu deus, Posêidon, que possuía um antigo santuário na ilha coberta de bosques da baía de Trezena, cujas ruínas ainda podem ser vistas entre os pinheiros. Finalmente, afirma-se que o santuário de Hipólito em Trezena teria sido fundado por Diomedes, cuja ligação mítica com cavalos e lobos é comprovada. Assim, Hipólito estava associado ao cavalo de muitas maneiras, e tal associação pode ter sido usada para explicar outras características do ritual ariciano, além da simples exclusão desse animal do bosque sagrado. O costume observado pelas jovens de Trezena, que ofereciam tranças de seus cabelos a Hipólito antes do casamento, coloca-o em relação com o matrimônio, o que, à primeira vista, parece estar em desacordo com a sua reputação de celibatário convicto. Segundo Luciano de Samósata, tanto os rapazes quanto as donzelas de Trezena estavam proibidos de casar até terem cortado seu cabelo em honra de Hipólito, e deduzimos, pelo contexto, que era sua a primeira barba que os jovens cortavam. Qualquer que seja a sua explicação, um costume como esse parece ter existido, de forma generalizada, tanto na Grécia como no Oriente. Plutarco nos conta que, antigamente, era hábito dos rapazes, na puberdade, ir a Delfos para oferecer seu cabelo a Apolo. Teseu, pai de Hipólito, seguiu o hábito, que perdurou até os tempos históricos. As jovens de Argos, quando se tornavam mulheres, dedicavam suas tranças a Atena antes de se casarem. À entrada do templo de Ártemis em Delos havia um túmulo de duas jovens sob uma oliveira. Dizia-se que, havia muito tempo, elas ali tinham chegado como peregrinas, vindas de uma distante terra setentrional, com oferendas para Apolo; tendo morrido no bosque sagrado, nele foram enterradas. As virgens delias, antes de se casarem, costumavam cortar uma mecha de cabelos, enrolá-la num fuso e depositá- lo sobre o túmulo daquelas virgens. Os rapazes faziam o mesmo, com a diferença apenas de que torciam a ponta de sua primeira barba em torno de folhas de grama ou de um broto verde.

No santuário da grande deusa fenícia Astarte, em Biblos, durante o luto anual pela morte de Adônis, as mulheres tinham de raspar os cabelos, e as que se recusassem a isso eram obrigadas a se prostituir aos estrangeiros e a sacrificar à deusa com os ganhos de sua vergonha. Embora Luciano, que menciona o costume, não o afirme, há motivos para se acreditar que as mulheres em questão eram geralmente virgens, das quais se exigia esse ato de devoção como preliminar ao casamento. De qualquer modo, é evidente que a deusa aceitava o sacrifício da castidade em substituição ao sacrifício dos cabelos. O significado dessa oferenda era o de que as mulheres davam parte de sua fecundidade à deusa, quer o fizessem na forma de cabelos ou de castidade. Mas podemos indagar por que deveriam fazer tal oferenda a Astarte, que era a grande deusa do amor e da fertilidade? Que necessidade tinha ela de receber a fecundidade dos seus fiéis? Não caberia antes a ela proporcionar-lhes essa fecundidade? Assim formulada, a pergunta ignora um aspecto importante do politeísmo ou, talvez possamos dizê-lo, da religião antiga em geral. Os deuses necessitavam tanto de seus fiéis quanto estes necessitavam dos deuses. Os benefícios conferidos eram mútuos. Se os deuses faziam a terra produzir com abundância, proliferarem os rebanhos e multiplicar-se a raça humana, esperavam que uma parte de sua prodigalidade a eles retornasse na forma de dízimo ou de tributo. Na realidade, viviam desse dízimo, e sem ele teriam morrido à míngua. Seus divinos estômagos tinham de ser satisfeitos, suas divinas energias reprodutivas tinham de ser restauradas — por isso, os homens lhes deviam dar aquilo que comiam e bebiam e sacrificar-lhes o que havia de mais másculo nos homens e de mais feminino nas mulheres. Estes últimos sacrifícios têm sido, com demasiada freqüência, esquecidos ou mal compreendidos pelos historiadores da religião. Outros exemplos do gênero serão apresentados no decorrer de nossa pesquisa. Ao mesmo tempo, bem pode ter acontecido que as mulheres que ofereciam seus cabelos a Astarte tivessem esperança de se beneficiar da conexão simpática que assim estabeleciam com a deusa. Talvez elas esperassem, na realidade, fecundar-se a si mesmas pelo contato com a fonte divina de fecundidade. É provável que um motivo seme- lhante determinasse tanto o sacrifício da castidade quanto o sacrifício dos cabelos.

Se o sacrifício dos cabelos, especialmente na puberdade, visa por vezes a fortalecer os seres divinos aos quais é dedicado, alimentando-os ou fertilizando-os,  então  podemos  compreender melhor não só a prática habitual de oferecê-los às sombras dos mortos, como também o costume grego de raspá-los para os rios, como faziam os rapazes arcadianos de Figália em honra da torrente que corre nas profundezas do estreito e vertiginoso vale situado pouco abaixo da sua cidade. Isso porque, depois da chuva e do sol, nada contribui de maneira tão óbvia para a fertilidade da terra quanto os rios.

Mais uma vez, essa interpretação pode colocar sob uma luz mais clara o costume dos jovens délios de ambos os sexos, que ofertavam seus cabelos ao túmulo das donzelas sob a oliveira. Em Delos, como em Delfos, uma das muitas funções de Apolo era fazer com que as plantações prosperassem e enchessem os celeiros das famílias; por isso, na época das colheitas, as oferendas de dízimos choviam sobre ele, de todas as partes, na forma de feixes de cereais maduros ou, o que provavelmente era mais aceitável, de modelos desses feixes em ouro, que recebiam o nome de “verão dourado”. As festas nas quais esses primeiros frutos eram oferecidos podem ter caído nos dias 6 e 7 de targélion, o mês de colheita, correspondendo a 24 e 25 de maio, pois eram essas as datas dos aniversários de Ártemis e Apolo, respectivamente. Na época de Hesíodo, a colheita dos cereais começava com o apareci- mento matutino das plêiades, que correspondia então ao nosso 9 de maio; na Grécia, o trigo ainda hoje amadurece nessa época do ano. Em troca dessas oferendas, o deus enviava um novo fogo sagrado de seus grandes santuários de Delos e de Delfos, irradiando assim, a partir deles, como de sóis centrais, as divinas bênçãos do calor e da luz. Um navio levava o novo fogo, a cada ano, de Delos para Lemnos, a ilha sagrada do deus do fogo Hefaísto, onde todos os outros fogos eram apagados antes de sua chegada, para serem novamente acesos com a chama pura. O transporte do novo fogo de Delfos para Atenas parece ter sido uma cerimônia de grande solenidade e pompa.

Ora, as moças sobre cujo túmulo as donzelas e os rapazes délios depositavam seus cabelos cortados antes do casamento teriam morrido na ilha depois de levar a oferenda da colheita, envolta em palha de trigo, da terra dos hiperbóreos, no longínquo norte. Eram assim, segundo a opinião popular, representantes míticos dos grupos de fiéis que levavam a Delos, ano após ano, os feixes amarelos, em meio a danças e cantos. Mas, na verdade, elas haviam sido, outrora, muito mais do que isso. O exame de seus nomes, citados habitualmente como Hecaerge e Öpis, levou os modernos estudiosos a concluir, com toda a aparência de probabilidade, que essas virgens eram originalmente simples duplicatas da própria Ártemis. Talvez possamos mesmo dar um passo além, pois por vezes uma dessas jovens hiperbóreas é apresentada como homem, e não como mulher, sob o nome de Arqueiro Possante (Hekaergos), epíteto comum de Apolo. Isso sugere que as duas moças eram originalmente os próprios gêmeos celestiais, Apolo e Ártemis, e que os dois túmulos existentes em Delos, um na frente e outro atrás do santuário daquela deusa, podem ter sido, a princípio, as tumbas dessas grandes divindades, cujos restos mortais tiveram descanso, dessa forma, no lugar onde haviam nascido. Enquanto um dos túmulos recebia as oferendas de cabelos, o outro recebia as cinzas das vítimas queimadas no altar. Ambos os sacrifícios, se estamos certos, destinavam-se a fortalecer e fecundar as duas potências divinas que faziam a terra ondular com a seara dourada e cujos restos mortais, como os ossos milagrosos dos santos na Idade Média, traziam riqueza aos seus afortunados possuidores. A piedade antiga não se chocava à vista do túmulo de um deus morto.

Mas podemos indagar como tudo isso se aplica a Hipólito. Por que tentar fertilizar a sepultura de um celibatário que concentrou todas as suas devoções em uma virgem estéril? Que semente podia deitar raízes e crescer em solo tão árido? Essa pergunta tem implícita em sua formulação a idéia popular moderna de Diana, ou Ártemis, como uma puritana com um gosto pela caça. Nenhuma idéia poderia estar mais distante da verdade. Para os antigos, Ártemis era, pelo contrário, o ideal e a personificação da vida selvagem da natureza — a vida das plantas, dos animais e dos homens — em toda a sua exuberante fertilidade e profusão. A palavra “parthenos” aplicada a Ártemis, e comumente traduzida como “virgem”, significa apenas uma mulher solteira, e nos dias antigos as duas coisas não eram absolutamente coincidentes. Com o florescimento de uma moralidade mais pura entre os homens, um código de ética mais rigoroso é imposto por eles aos seus deuses: as lendas da crueldade, engano e lubricidade desses seres divi- nos são rapidamente comentadas ou totalmente rejeitadas como blasfêmias, e os velhos rufiões são encarregados de fazer respeitar as leis que antes violavam. Com relação a Ártemis, até mesmo a ambígua denominação de parthenos parece ter sido simplesmente um epíteto popular e não um título oficial.

Não havia culto público de Ártemis, a casta; a relação que seus títulos sagrados têm com o sexo mostra, pelo contrário, que ela, como Diana na Itália, estava particularmente voltada para a perda da virgindade e o nascimento dos filhos, e que não só ajudava como também estimulava as mulheres a serem férteis e a multiplicarem a espécie. Na verdade, se a palavra de Eurípides tem valor, em sua qualidade de parteira ela nem mesmo falava com as mulheres sem filhos. Além disso, é altamente significativo que, embora seus títulos e as alusões às suas funções a caracterizem claramente como a protetora do parto, nenhum deles a identifica de modo marcante com a divindade do matrimônio. Nada, porém, expõe o verdadeiro caráter de Ártemis como deusa da fecundidade, embora não do casamento, a uma luz mais clara do que a sua constante identificação com as deusas asiáticas do amor e da fertilidade, solteiras mas não castas, e que eram veneradas com ritos de notória devassidão em seus san- tuários populares. Em Éfeso, o mais celebrado entre os locais de seu rito, sua maternidade universal era apresentada de maneira inequívoca na sua imagem sagrada.

Voltando a Trezena, provavelmente não estamos sendo injustos para com Hipólito ou Ártemis se supusermos que a relação entre eles foi, em certo momento, mais terna e íntima do que a literatura clássica indica. Podemos conjeturar que, se ele rejeitava o amor das mulheres, era por ter o amor de uma deusa. De acordo com os princípios das religiões antigas, aquela que fertiliza a natureza deve ser, ela própria, fértil, e para tanto deve ter, necessariamente, um consorte masculino. Se estamos certos, Hipólito era o consorte de Ártemis em Trezena, e as madeixas de cabelos que lhe eram oferecidas pelos rapazes e moças antes do casamento destinavam-se a fortalecer sua união com a deusa e promover a fecundidade da terra, do gado e dos homens. Mas não era apenas em Trezena que um mortal e uma deusa se mostravam como amantes, e as lendas que falam do sangue do consorte humano vertido na púrpura florescência da violeta, na mancha escarlate da anémona ou no rubor carmesim da rosa, não eram ociosos emblemas poéticos da juventude e da beleza que passam como as flores estivais. Essas fábulas encerram uma filosofia mais profunda da relação da vida do homem com a vida da natureza

— uma filosofia triste, que deu origem a uma prática trágica. O que eram essa filosofia e essa prática, veremos mais adiante.

Recapitulação

Talvez possamos agora compreender por que os antigos identificavam Hipólito, o consorte de Ártemis, com Vírbio, que, segundo Sérvio, estava para Diana como Adônis para Vénus, ou Átis para a mãe dos deuses. Diana, como Ártemis, era uma deusa da fertilidade em geral e do parto em particular. Nessa qualidade, tal como a sua versão grega, ela precisava de um parceiro masculino. Esse parceiro, se Sérvio está certo, era Vírbio. Como fundador do culto do bosque sagrado e primeiro rei de Nemi, Vírbio é, claramente, o predecessor mítico ou arquétipo de uma linha de sacerdotes que serviram Diana sob o título de reis do bosque e que, como ele, tiveram, um após outro, uma morte violenta. É, portanto, natural conjeturar que eles tinham com a deusa do bosque a mesma relação que Vírbio: em suma, que o rei do bosque mortal tinha como rainha a própria Diana dos bosques. Se a árvore sagrada que ele guardava com a própria vida era, como parece provável, a própria materialização da deusa, o seu sacerdote pode não só tê-la adorado como tal, mas também acariciado como sua mulher. Não há nada de absurdo nessa suposição, pois, ainda na época de Plínio, um nobre romano tratava dessa maneira uma bela faia, em outro bosque sagrado de Diana, nos montes Albanos. Ele a abraçava, beijava-a, deitava-se à sua sombra, derramava vinho em seu tronco. Ao que tudo indica, con- siderava a árvore como sendo a deusa. O costume de casar, fisicamente, homens e mulheres com árvores ainda é praticado na Índia e em outras partes do Oriente. Por que não teria existido no antigo Lácio?

Revendo as evidências como um todo, podemos concluir que o culto de Diana em seu bosque sagrado de Nemi foi de grande importância e antiguidade imemorial; que ela era venerada como a deusa das florestas e dos animais selvagens, e provavelmente também dos animais domésticos e dos frutos da terra; que se acreditava que ela abençoava homens e mulheres com filhos e ajudava as mães na hora do parto; que seu fogo sagrado, servido por virgens castas, ardia permanentemente num templo circular dentro do santuário; que tinha por companheira urna ninfa das águas, Egéria, que se incumbia de uma das funções da própria Diana, socorrendo as mulheres em trabalho de parto e a quem a crença popular atribuía um consórcio com um antigo rei romano no bosque sagrado; e, ainda, que Diana dos bosques tinha, também ela, um companheiro masculino, cujo nome era Vírbio e com o qual manteve uma relação idêntica à de Adônis e Vénus e à de Átis e Cibele; e que, finalmente, esse Vírbio mítico foi representado, nos tempos históricos, por uma série de sacerdotes conhecidos como reis do bosque, que pereciam regularmente nas mãos de seus sucessores; e cujas vidas estavam ligadas a uma certa árvore do bosque porque, enquanto essa árvore estivesse intacta, eles estariam a salvo.

Por si mesmas essas conclusões não bastam, evidentemente, para explicar a peculiar regra de sucessão do ofício sacerdotal. Mas talvez a pesquisa de um campo mais amplo nos possa levar a pensar que encerram o germe da solução do problema.

 

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