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Poucas bandas na historiografia do Heavy Metal gozaram duma existência tão efêmera unida a uma influência tão profunda e duradoura na formação de um gênero como o “Hellhammer” em relação ao Black Metal. Mas, antes de compreender-se sob quais aspectos poder-se-ia dispor o conjunto, oriundo da improvável e insípida Suiça,à guisa dum dos criadores do Black Metal como hoje se configura,dever-se-á expor um tanto da história da horda.
Começo da década de 1980 e um jovem de dezessete anos, chamado Thomas Gabriel Fischer, organiza, junto com um amigo de meros quinze anos, uma viagem à Inglaterra para obter discos dum estilo musical por ele há pouco descoberto e de todo obscuro em sua nativa Suiça:O Heavy Metal. A curta viagem, permite que o rapazola obtenha uma grande quantidade de “bolachas” e,dentre elas,uma boa parcela de álbuns ligados a NWOBHM [New Wave of British Heavy Metal]. Em meio a pérolas de formações como “Diamond Head”, “Jaguar” e “Angel Witch”, Thomas depara-se, atônito, com algo até então muito mais maligno,violento e obscuro que todo o resto – “Venom”.
Apesar de extremamente impressionado por aquele disco da tríade satânica inglesa, T.Fischer acredita que aquela sonoridade macabra pode assumir contornos ainda mais funestos e pesados. Para tanto, realiza uma experiência inusual: Decide tocar o vinil do “Venom” de 45 rpm numa vitrola adaptada para reproduzir em apenas 33 rpm. O resultado do experimento deixa o mancebo impressionado e estimulado a criar uma banda capaz de reproduzir aquele ambiente denso, funéreo e vanguardista o qual viu desvelar -se diante de seus olhos mediante a experimentação dita.O primeiro passo para o nascimento do “Hellhammer” estava dado.
Após uma série de experimentos com músicos de pouca seriedade e sob a égide de diferentes nomes,como,por exemplo, um risível “Hammerhead”, Thomas consegue estabilizar uma formação no estilo trio pouco após decidir assumir os encargos vocais e guitarrísticos da sua banda. A formação, já com a alcunha de “Hellhammer”, assume nomes macabros e os contornos seguintes:
- “Satanic Slaughter” (Thomas Gabriel Fischer): Guitarra & Vocais.
- “Savage Damage” (Urs Sprenger): Baixo & Vocais.
- “Bloodhunter” (Jörg Neubart): Bateria.
Esta formação inicial de muito ímpeto, idéias sinistramente inovadoras e baixíssimos recursos financeiros, contratou um amador engenheiro-de-som com seu tosco equipamento para tão-só uma noite de gravação. Naquela funérea ocasião em 1983,dezessete músicas foram gravadas. Canções que serviriam para compor uma demo-tape inicialmente batizada e criada como “Death Fiend”,mas que a posteriori findar-se-ia remodelada e reimpressa com a graça de “Triumph of Death”.
As soluções únicas encontradas para manufatura da demo-tape final nomeada “Triumph of Death”, e o seu ulterior processo de distribuição levado à cabo pelo próprio “Hellhammer”,o qual remeteria através do Correio sua fita para os quatro cantos do Mundo,acabaram de certo modo criando um modus operandi que por si só já bastaria para tornar o recém-criado grupo um aspirante ao futuro rótulo de cult. Contudo, mais do que garantir à horda um cult status,a atitude independente e apta a pôr os próprios músicos como a força-motriz organizadora e divulgadora de seu material criou um modelo que se tornaria típico do nascente estilo blackster.
Selos independentes como o “Deathlike Silence Productions” criado pelo finado ícone Black Metal, “Euronymous”, devem ao “Hellhammer” boa parte de seu impulso e discernimento em colocar nas mãos dos músicos per se,e de amantes da Música Extrema,o processo produtivo e distributivo em suas totalidades. O “Hellhammer”, dentro do encerro do Heavy Metal, quiçá tenha significado uma das primeiras e mais expressivas ações de satânica autonomia que não mais se vê capaz de depender de estruturas industriais-fonográficas de considerável grau de complexidade e tirânicas em seu domínio nos quesitos produtivo,artístico e distributivo das bandas com as quais assinam contratos.
Respostas positivas à DT “Triumph of Death” resultaram num contacto da modesta gravadora alemã Modern Music que,entonces,lançara um sub-selo nomeado Noise.O sub-selo,apesar de interessado em arriscar o lançar do material nefasto do “Hellhammer”, demandou,antes de tudo,uma outra DT de melhor qualidade para ajuizar com mais profundidade o som da banda. A partir disto uma guinada considerável deu-se no grupo.
Martin Eric Stricker,amigo cada mais próximo de Thomas Fischer, presença marcante nos ensaios do “Hellhammer” e estudioso leigo de diversos temas ligados ao Ocultismo em seus meandros mais sombrios, faz-se convocado para integrar a banda no lugar de Urs Sprenger (o qual abandonara em bons termos o front). Assumindo os deveres do baixo-elétrico e engajado em dar um novo tratamento às letras da banda (as quais, até então,assumiam contornos de meros simulacros daquelas do “Venom”), Martin, rebatizado “Slayed Necros”, fornece o acabamento do qual o “Hellhammer” precisava.
No aziago dezembro de 1983 o “Hellhammer” grava a lendária DT “Satanic Rites” com um cuidado melhor na produção e perfilada de músicas inéditas conjuntas a outras a priori gravadas,mas de todo remodeladas para a presente demo.A melhora qualitativa do “Hellhammer” para este lançamento é sensível,principalmente nas letras e vocais(dessa feita,feitos só por “Satanic Slaughter” que antes os dividia com “Savage Damage”). Banindo os espectros da influência do “Venom”, as letras do “Hellhammer” doravante exploram mais uma estetização do “satanismo mosaico”,“feitiçaria literária” e temas apocalíptico-niilistas,tombando amiúde numa poética que se preocupa tão-só com as “superfícies plásticas” dos temas demoníacos e funestos:
“ See the dead of the sun – christian love in vain
Father killed by son, mother raped in pain.
In a world of steel, made from stone
Only death is real – world war…III ! ” (“Messiah”)
“Vede a morte solar – amor cristão em vão
Pai morto pelo filho,dorida mãe violada.
Num mundo de aço,da rocha construído
Só a morte é real – terceira guerra mundial!”
(tradução nossa)
*Os erros gramático-ortográficos das letras originais foram mantidos e marcados em itálico.
O afastamento das preocupações mais ligadas a uma desconstrução da ética cristã e egoicamente auto-afirmativas do “Venom” por parte do “Hellhammer”, desvelou-se no criar de uma lírica mais apensada às imagens grotescas, niilistas por assim dizer. Em certa medida, isto significou o trazer dum quinhão de doutrina apocalíptica,profética e “literário-mágica” cristã,porém o refinamento na “rima macabra” e o explorar do monstruoso aspecto presente nos medos metafísicos mais intrínsecos do Homem,marca de forma indelével o Metal e a reflexão estética a ele articulada.Incontáveis bandas do já maduro estilo blackster tenderão a repetir esta proposta temática do “Hellhammer” como, por exemplo,o norueguês “Mayhem” na sua primeira DT (“Pure Fucking Armageddon”) de 1986 ou o sueco “Marduk” da demo “Fuck me Jesus”(1991).
Os responsáveis pelo sub-selo Noise gostaram deveras do resultado de “Satanic Rites”, portanto concordaram em lançar duas músicas do grupo numa compilação de bandas germânicas underground e mais quatro num ep tão-só dedicado ao conjunto. Abandonando a escola para dedicar-se integralmente à banda, Tom, junto com Martin e Jörg, gravam, durante os macabros dias de 2/03 a 7/03 de 1984,um total de seis músicas.A estréia profissional do “Hellhammer”, e paradoxalmente seus únicos lançamentos, vieram por fim à luz para marcar de modo indelével o nascente Black Metal.
O ep, nomeado “Apocalyptic Raids”(1984), apresentou algumas músicas anteriores re-gravadas conjunta com outras recém-saídas do infernal forno da horda. Elementos de forte teor “satânico-mosaico” e de “feitiçaria literária” cederam lugar integral a um fatalismo apocalíptico, niilismo funesto sem qualquer redenção, como vê-se nos seguintes versos da música que inicia o ep “The Third of the Storms (Evoked Damnation)”.:
“Go out and see,the omens are here
A church is red,like blood of an angel
The rich and the poor,both will fall
Into the flames of malice.”
“Sai e vê,as profecias estão presentes
Uma igreja está rubra,como o sangue dum anjo
O rico e o pobre,ambos tombarão
Nas malignas flamas.”
(tradução nossa)
Os vocais de “Satanic Slaughter” neste ep,prosseguiram tão desesperadores quanto nas anteriores demos do grupo (só que desta feita,mais audíveis devido a qualidade de gravação superior). Em pérolas macambúzias como “Triumph of Death”, sua voz soa abafada,quase como se tentasse vociferar seus versos desesperados em meio ao miasma e sufocamento sepulcrais.Apesar de não apresentar as naturais e excessivas distorções que posteriormente tornar-ser-iam lugar-comum nas bandas blacksters,esta aproximação da macabra ação lírica com a interpretação vocal,amiúde significando uma desconstrução tonal dos padrões melódico-musicais comuns, seria uma influência inapagável em intérpretes consagrados da Música Extrema, como, por exemplo, o suicida vocalista “Dead” do “Mayhem” em suas aparições ao vivo.
Ainda acerca dos vocais de Tom Fischer naquelas gravações de março de 1984,não se poderá olvidar de mencionar a “poética do urro” nelas presentes. Apesar de não significar uma receita de todo original interpor glossolalias e onomatopéias (Artistas do acústico blues pré-Guerra como,por exemplo, Charley Patton já faziam isto meio século antes…)nas partes vocais,o modo animalesco e súbito com o qual Fischer utilizava esse recurso tornou-se não só uma marca registrada sua,a qual continuaria presente em seus outros projetos musicais,bem como significaria toda uma abordagem cênico-musical cujo fascínio perpetua-se até os dias atuais.Pode-se até mesmo inferir a existência de uma velada comunicação entre os fãs de Música Extrema,devido a este “urro repentino” numa cantiga:Sua ocorrência numa banda traduz para seus ouvintes que a mesma presta tributo a “Satanic Slaughter”,dele retirando influências.
A timbragem das guitarras,unidas com a marcação simples e martelante da “cozinha”(baixo-elétrico e bateria), geraram em canções como “Revelations of Doom” diversos momentos sorumbáticos e sombrios que o som, indubitavelmente mais thrasher, do “Venom” nunca apresentara.A sucessão hipnótica de riffs das músicas do “Hellhammer”, terminou engendrando um efeito hipnótico e extático aonde o mínimo na abordagem instrumental/compositiva atinge o máximo de expressividade.Essa redução no menos que o mínimo e mais do que o máximo,findou por tornar-se, por muitos anos porvir,numa sorte de apanágio de inúmeras bandas seminais no Black Metal como, por exemplo, o afamado “Darkthrone” dos anos de 1993-1995.
A própria construção de algumas músicas de “Apocalyptic Raids” com seus solos de guitarra beirando a atonalidade e assaz voláteis desfraldados numa composição que alterna humores,possibilidades e arranjos antitéticos entre si como,por exemplo,“Triumph of Death”,arranja-se um experimentalismo e extremismo inauditos nos meios rockers de entonces.Naquele momento deu-se o passo primordial à gênese de uma musicalidade atmosférica,luctífera e trágica como protagonista,elemento nuclear na estrutura musical metálica. A atmosfera tétrica não mais como mera introdução instrumental,tema desenvolvido somente de modo lírico ou elemento dos longes sonoro,mas aquilo que se consagra como a música em-si-mesma.Tamanha força atmosférica buscando sua plena manifestação a olhos vistos,representou um ponto-marcante impressionante para a construção estética e musical do Black Metal como gênero autônomo,dotado de características singulares e atináveis.
Tamanho vanguardismo resultou numa aura extemporânea entorno do “Hellhammer”. Aura que a despeito de abraçada com afã febril por diversos headbangers e amantes dos tons agourentos do Existir,não pôde ser de todo aceita por uma mídia musical apegada a fórmulas fáceis e, larga medida, maviosas aos ouvidos. Desta forma, com raras exceções, o “Hellhammer” ganhou,graças a mídia especializada em Heavy Metal e rock, o injusto título da “pior banda de todos os tempos”.
A despeito de suas origens marginais e disposições pouco comerciais,o impacto desta crítica por conta dos “especialistas” foi negativo em Thomas Gabriel.Incapaz de lidar com tais críticas despropositadas,Tom enterrou o “Hellhammer” com as seguintes palavras sofísticas e finais veiculadas aos sete ventos pelo underground e revistas dedicadas ao Heavy Metal:
“O material no ‘Apocalyptic Raids’ era ainda mais sombrio e radical do que em nossa última demo,’Satanic Rites’ .Todavia este extremismo fez-nos sentirmo-nos presos.Nós mal tínhamos começado,e a música e o conceito do Hellhammer já tinha atingido seus limites.”
E assim terminou um dos mais influentes e seminais capítulos na lúgubre historiografia do Black Metal.Um efêmero,mas,decerto,inapagável momento o qual ressoa hoje ainda,à guisa de fantasma a assombrar e roçar om suas gélidas garras todos os que ousam articular-se ao “Metal Negro”…
Lição de Casa
Apreciar a discografia recomendada antes da próxima aula. Deixe nos comentários desta página suas percepções sobre estas obras:
1990 – “Apocalyptic Raids 1990 A.D.” – Relançamento do ep “Apocalyptic Raids” (1984) conjunto com as duas músicas da banda que integraram a compilação “Death Metal”(1984) do sub-selo Noise.
2008 – “Demon Entrails”. – Relançamento remasterizado das três demo-tapes de 1983 do grupo :“Death Fiend”, “Triumph of Death” e “Satanic Rites”.
Autor:R.C.Zarco – Escola de Black Metal
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