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Sar Naquista
‘Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” – Mateus 6:6
Gostaria de iniciar este pequeno tratado sobre Oração Martinista com as palavras de Honoré de Balzac, retiradas de sua obras Serafita:
“O Poeta fala; o Pensador medita; o Justo age; mas aquele que está nas fronteiras do o Mundo Divino reza; e sua oração é palavra, pensamento, ação, em um! Sim, a oração inclui tudo, contém tudo; ele completa a natureza, pois revela a você a mente dentro dele e sua progressão.
Virgem branca e brilhante de todas as virtudes humanas, arca da aliança entre a terra e o céu, companheira terna e forte participando do leão e do cordeiro, Oração! A oração lhe dará a chave do céu!
Ousada e pura como a inocência, forte como tudo o que é único e simples, esta gloriosa e invencível Rainha repousa, no entanto, no mundo material; ela toma posse dele; como o sol, ela o envolve em um círculo de luz.
O universo pertence a quem quer rezar, quem sabe rezar e a quem reza; mas ele deve querer, ele deve saber, ele deve orar; em uma palavra, ele deve possuir força, sabedoria e fé. Portanto, a Oração, surgindo de tantas provações, é a consumação de todas as verdades, todos os poderes, todos os sentimentos. Fruto do laborioso, progressivo e contínuo desenvolvimento das propriedades e faculdades naturais vitalizadas novamente pelo sopro divino da Palavra, a Oração tem poder oculto de atividade; é a adoração final – não a adoração material de imagens, nem a adoração espiritual de fórmulas, mas a adoração do Mundo Divino”
Balzac foi um leitor assíduo de Saint-Martin e foi um dos muitos influenciados por sua forma de orar. Ele é um dos grandes justamente por ser uma exceção entre tantos místicos e esotéricosqie se tornam tão entusiasmados com a profundidade do conhecimento que encontram que muitas vezes priorizam o estudo intelectual em detrimento da prática espiritual. Estas pessoas estão em erro e só perdem para aqueles que, no extremo oposto não lêem nada. Como bem disse Jean-Baptiste Willermoz “estudar sem orar é um verdadeiro ateísmo; orar sem estudar é uma vã presunção.”
Eis o grande lema da alquimia: Ora et Labora. Por esta razão a prática da oração sempre foi muito valorizada por alquimistas, rosacruzes e martinistas. Mesmo Papus, tão conhecido por sua curiosidade intelectual e domínio dos mais cerimoniais tipos de teurgia concluiu ao final de sua vida que apenas a prece nos capacita a receber as influências mais elevadas como uma chave que abrimos por dentro e que permite uma conexão com o plano divino.
Uma forma de descobrir o poder da oração é pela prática constante da Liturgia da Horas, também chamado Ofício Divino, que nada mais é do que dar as preces a mesma importância que damos a higiene e alimentação. Nela orações são feitas de forma sistemática e rotineira de três a cinco vezes por dia. Esta é uma prática comum entre judeus, cristãos e muçulmanos. As orações diárias judaicas são consideradas uma importante obrigação religiosa e são realizadas três vezes ao dia: pela manhã (Shacharit), à tarde (Mincha) e à noite (Ma’ariv). Da mesma forma mulçulmanos realizam cinco orações diárias voltados para Mekka em horarios pré-determinados.
Martines de Pasqually também seguinte Liturgia das Oras aos seus alunos:
- A Oração das Seis Horas (ou seja as 6h, 12h 18h e 24h) na qual eram lidos Salmos e Passagens do Novo Testamento.
- O “Saltério da penitência” (Salmos 6, 32, 39, 51, 102, 130 e 143) feito a cada Luna Nova.
- Os Miserere, toda as quintas-feira. Primeiro o salmo 51 para o Oriente e depois, com o rosto em contato com a terra, o salmo 130 voltado ao Oriente.
Do ponto de vista martinista existem três graus na prece: a prece dos lábios, a prece da mente e a prece do coração.
- Prece dos Lábios: Este é o primeiro nível de prece e é caracterizada por ser oral e externa. Consiste em recitar palavras ou textos sagrados, ou até mesmo em fazer evocações de entidades divinas. Não há problema algum em usar orações prontas como o Pai Nosso ou os Salmos. Muitas vezes não saber o que dizer pode nos afastar da prática e acabamos por não dizer nada. Porque não então usar as palavras deixadas pelos santos, profetas e pelo próprio Cristo? Em algumas tradições, a prece dos lábios é realizada em uma postura específica, como ajoelhado, prostrado ou na posição de lótus. O objetivo desta prática é aprofundar a conexão com o divino, expressando de forma verbal a fé, a gratidão, o pedido de ajuda, a adoração e a reverência aos seres divinos.
- Prece da Alma: prece dos lábios pode se tornar mecânica e vazia de significado, quando a pessoa repete palavras sem compreender o seu real sentido ou sem sentir verdadeiramente a presença divina. Por isso, é importante que a prece dos lábios seja acompanhada por um estado de consciência concentrado e elevado, a fim de que as palavras ditas possam atuar como um canal para a energia espiritual. A transição da prece dos lábios para a prece mental é um passo importante na busca pela comunhão espiritual. Nessa fase, é necessário se concentrar plenamente no significado das palavras proferidas e, aos poucos, abandonar a necessidade de expressar a prece de forma oral. A prece mental consiste em manter o diálogo com o divino apenas no plano do pensamento, o que requer um elevado grau de concentração e disciplina interior.
- Prece do Coração: A prece mental é importante, mas não é suficiente para uma experiência espiritual completa. Para alcançar a plenitude da prece, é preciso transcender o plano mental e chegar ao coração da prece, onde uma conexão profunda com o divino pode ser estabelecida. No entanto, para chegar a esse estágio de contemplação, é necessário um longo aprendizado e esforço constante. É preciso silenciar a mente e controlar as emoções para que o coração possa se abrir para a presença divina. Essa jornada requer perseverança, paciência e humildade, mas pode levar a experiências profundas de amor e paz interior.
Embora a Prece do Coração no arrebate algumas veze, tê-la atingido não significa que se deve abandonar totalmente as Preces de Alma e dos Lábios. Como está naquele que foi considerado pelo Mestre o maior dos mandamentos:
“Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças. “
Orando conforme a tradição martinista
Não tente pular etapas. Se você ainda não tem uma pratica real e constante de oração, considere um sucesso adquirir regularidade na Prece dos Lábios. Para lhe ajudar nisso considere organizar cada momento de oração em quatro etapas: Purificação, Gratidão, Comunhão e Ação.
Importante dizer que estes métodos não estão sendo dados aqui para substituir suas práticas espirituais caso você já tenha alguma, contudo elas ressoam perfeitamente com a tradição martinista e na medida do possível poderá colaborar com sua comunhão com o divino seja qual for sua religião.
- Purificação: Lavar o rosto, fazer uma refeição leve e silenciosa jejuar ou beber um pouco de água fresca são atos de purificação que podem fazer toda diferença na sua experiência na medida que avisam seu corpo, mente e alma de que algo especial se aproxima. Assim dizia Louis-Claude de Saint-Martin: “Purifique teu corpo e em seguida apresente-se à prece; o resto acontece sozinho, está ai todo o segredo.” Alguns atos externos podem ajudar nessa purificação interna como diminuir a luz e acender uma vela, retirar-se para um lugar isolado (como Cristo fazia), prostar-se, colocar-se de joelhos ou sentado ereto, ouvir uma música suave ou ler um texto sagrado. O importante é, como ensinou o Filosofo Desconhecido, purificar seu coração para que ele possa servir de espelho à Divindade, porque então a própria Divindade será um espelho para eles.
- Gratidão: O papel da oração e da própria Via Cardíaca, segundo Luis-Claude de Saint-Martin é fazer Deus entrar em nosso coração. Por isso o sentimento de Gratidão é uma grande chave para tornar perfeita a Prece dos Lábios ou mesmo levá-lo prontamente a Prece do Coração. Nossa oração deve ser sempre uma Ação de Graças, não preocupada em pedir vantagens ou benesses mas sim nos colcoar em concordância com as vontades de Deus lembrando de sua misericordia ao “enumerar todos males dos quais não sofremos”, como ensinou Saint-Martin.
- Comunhão: Esta predisposição a Pureza e a Gratidão nos coloca em condições de entrar em comunhão com os influxos divinos e ao trabalho espiritual. Esta comunhão é difícil de descrever em palavras mas quando ela ocorre a alma se cala. Como disse Louis-Claude de Saint-Martin, “quem não sentiu este sopro doce da sabedoria descer sobre si e fazer cair por terra todas as matérias estranhas que obstruíam esse fogo ainda não conheceu o verdadeiro caminho.” O fruto da Comunhão não é outro senão a sabedoria, como disse o monge Évagrio Pónlico: “O estado de oração é um hábito imperturbável que, por um amor supremo, desperta, acima dos cumes intelectuais, a inteligência repleta de sabedoria.”
- Ação: A comunhão é seguida de uma vontade clara em compartilhar esta experiência com todos os outros seres da Criação. Historicamente o ser humanos sempre cometeu o erro grosseiro de fazer este compartilhamento pelo proselitismo da própria fé em uma tentativa infrutífera de fazer as outras pessoas melhores. Na realidade a melhor ação que se pode fazer para o restante da criação é a própria melhora pessoal. Para ser aquilo que o Filósofo Desconhecido chamou de “divulgadores ambulantes de Deus no mundo” nossa primeira e mais urgente medida é a nossa própria regeneração.
Ao incluir em sua rotina uma Liturgia das Horas, seguindo as informações acima e sem pressa de alcançar resultados espetaculares o estudante martinista saberá em primeira pessoa porque a oração é considerada tão importante na tradição. Ela é a grande ferramenta da alquimia interior que nos permite comungar com o Divino e expandir sua Luz para todos os seres.
A Prece do Coração
A chamada ‘Prece do Coração’ é historicamente atribuída aos anacoretas egípcios que se estabeleceram no Monte Sinai e atingiu seu ápice entre os Hesicasmos, um movimento espiritual bizantino do século XIV. Estas e outras práticas foram reunidas no século XVIII em uma coleção chamada Filocalia (Amor a Beleza) de onde provavelmente chegou até Louis-Claude de Saint-Martin e dele para todos os martinistas.
A Prece do Coração tem como objetivo atingir o estado de Hesychia, um termo grego que significa “quietude” ou “paz interior” no qual ocorre a união com Deus. Ela consiste em dois alicerces:
- Repetir continuamente um nome divino a respiração controlada.
- Fazer essa invocação ‘de todo coração” a fim de situá-la verdadeiramente no plano da alma.
Todos os místicos de todos as épocas sempre fizeram algo parecido. No Hinduismo temos as práticas mântricas dabhakti-yoga. No Budismo da Terra Pura é o nome de Buda Amitada que é repetido e no lslã temos o Dhikr no qual os nomes de Allah são entoados sem parar. Seja como for se busca aqui interiorizar profundamente a repetição do nome divino em busca da plenitude do êxtase místico.
A tradição cristã também realiza esta prática usando a fórmula grega ‘Kyrie Eleison’, que significa ‘Senhor, tende piedade’, o nome de Santos ou do Pai (Abba), mas como martinistas trabalhamos sempre “em Nome e para a Glória de Ieschouah, Grande Arquiteto do Universo”. Como vimos no artigo Cristologia Martinista o nome ‘Ieschouah’ tem uma importância insuperável pois representa tanto a encarnação do Cristo para regenerar a humanidade como a mais poderosa Força Espiritual atuante na Criação. É um nome onde Sabedoria, a Força e a Beleza se encontram em seu grau máximo que assim como se fizeram presente no templo universal também se doam para ornar nosso templo interior.
Contudo se o uso deste nome for uma barreira para você, devido a sua história pessoal ou a forma como Ieschouah foi apresentado em sua vida não deixe isso te parar. Busque em sua alma o nome que melhor ressoa as qualidades divinas que você quer internalizar faça ela ou não parte do repertório tradicional martinista ou de qualquer outra via espiritual.
O nome deve ser repetido mentalmente (Prece da Alma) mas se sentir necessidade faça-a como uma Prece dos Lábios para começar. Aos poucos você deve migrar para uma devoção silenciosa repetindo mentalmente o nome Ieschouah, sem pressa de chegar a qualquer estado místico mas desfrutando a companhia do Cristo. A melhor forma de fazer isso é seguindo o ritmo de respirações profundas, inspiramos profundamente pelo nariz e internalizando a palavra ‘Ieschouah” enquanto expiramos pelo tempo que desejarmos. Aos pouquinhos busque respirar num ritmo o mais lento possível mas sem desconforto.
Outra forma de fazer isso é usando seu ritmo cardíaco. E você pode usar seus próprio ritmo cardíaco para isso. Se nos colocarmos em uma quietude boa o bastante para sentir a pulsação em nossos dedos nossa respiração vai desacelerar e acalmar naturalmente. Nesse estado poderá então repetir “Ischouah” enquanto mantem a atenção nas batidas do seu próprio coração.
Quando sentir necessidade ou oportunidade pare de repetir o nome e permaneça em silêncio apenas respirando. Se pensamentos dispersivos surgirem, retome a repetição do nome. Manter esse silêncio interior pode ser desafiador mas em vez de tentar lutar contra eles é melhor deixá-los passar sem lhes dar atenção. Essa atitude favorece seu desaparecimento progressivo de toda poluição mental e entendimento que tentar se impor. Como diz em Filipenses 4:7, “E a paz de Deus, que excede todo entendimento, guardará o coração e a mente de vocês em Cristo Jesus.”
À medida que elevamos nosso estado de consciência e permitimos que a paz divina invada nossos corações, podemos desacelerar o ritmo das repetições espaçando cada vez mais o nome ‘Ieschouah’ e no intervalo entre os nomes encontrar a quietude perfeita e o sentimento da Presença Divina que os antigos cristãos chamavam de Hesychia. Assim como diz em Salmos 46:10, “Estejam quietos e saibam que eu sou Deus”
Vou enfatizar novamente a questão de abandonar qualquer pressa. Considere um sucesso primeiras seções de cinco dez minutos e então aumente-as conforme for possível. É importante que você entenda que a própria oração é um fim, pois com ela você está – percebendo ou não – se aproximando da divindade. A Presença Divina ocorre sempre, somos nós que estamos ou não abertos, tenha gratidão por isso e “certeza nas coisas que não se vê.” (Hebreus 11:1)
Encerre cada seção com uma oração tradicional uma invocação feita de coração ou uma leitura edificante de textos martinistas ou do seu devocional favorito. Este tratado se encerra com algumas orações deixadas por Louis-Claude de Saint-Martin que são muito apropriadas.
O Oratório Martnista
A ausência de um oratório martinista não deve ser um impeditivo para início de uma vida devocional, mas a presença de um pode ser ser uma ferramenta poderosa para ajudá-lo em sua prática espiritual. Não se preocupe se você não tiver tudo o que parece importante. Que seja simples para que seja útil. Escolha um espaço tranquilo e silencioso, onde você possa se concentrar sem ser interrompido, se você não dispuser de um espaço dedicado para esse propósito, é possível utilizar um equipamento mínimo que pode ser instalado em um armário ou até mesmo em uma caixa.
Assim como o alta no Templo Martinista este oratóriodeve possuir três velas que manifestam as Três Potências Martinistas: Sabedoria, a Força e a Beleza, os atributos divinos do Grande Arquiteto do Universo. Estas mais belas aspirações serão também representadas por um incensário que leva ao alto os perfumes como nossa oração se eleva em nós. O oratório deve conter uma Bíblia Sagrada que quando não estiver sendo usada é mantida aberta na primeira parte do Evangelho de São João. Por fim ele pode ser decorado para criar uma atmosfera adequada com o uso de flores e símbolos sagrados. Dentre estes símbolos os mais tradicionais e importantes para o martnista são o nome de Ieschouah de e o selo martinista:
יהשוה
Há outros itens de grande que podem ser acrescentados, como a Máscara e a Espada, mas este é o assunto para outro momento e não devem ser impeditivos para o início de uma prática sólida de meditação.
Algumas orações de Louis-Claude de Saint-Martin
Fonte eterna de tudo o que é, tu, que envias aos prevaricadores espíritos de erro e de trevas que os separam de teu amor, envia àquele que te busca um espírito de verdade que o aproxime de ti para sempre. Que o fogo desse espírito consuma em mim até os menores traços do velho homem, e que após havê-lo consumido, ele faça nascer desse monte de cinzas um novo homem sobre quem tua mão sagrada não desdenhe mais oferecer a santa unção. Que esteja aí o termo dos longos trabalhos da penitência e que tua vida universalmente una transforme todo o meu ser na unidade de tua imagem, meu coração na unidade de teu amor, minha ação numa unidade de obras de justiça, e meu pensamento numa unidade de luzes. Tu só impões ao homem grandes sacrifícios para forçá-lo a buscar em ti todas as suas riquezas e todas as suas alegrias, e tu só o forças a buscar em ti todos esses tesouros, por saberes que são os únicos que poderão fazê-lo feliz, e por seres o único a possuí-los, a engendrá-los e a criá-los. Sim, Deus de minha vida, é apenas em ti que posso encontrar a existência e o sentimento de meu ser; disseste também que seria somente no coração do homem que poderiass encontrar teu repouso; não interrompas um instante sequer tua ação sobre mim, para que eu possa viver, e ao mesmo tempo para que teu nome possa ser conhecido pelas nações: teus profetas nos ensinaram que os mortos não podiam louvar-te; não permite, pois, nunca, que a morte se aproxime de mim: porque ardo por tornar imortal tua louvação, ardo do desejo que o sol eterno da verdade não possa censurar o coração do homem de ter trazido a menor nuvem e causado a menor interrupção na plenitude de teu esplendor. Deus de minha vida, tu que, ao pronunciar, tudo se opera, concede ao meu ser o que deste em sua origem, e manifestarei teu nome às nações, e elas reaprenderão que somente tu és seu Deus e a vida essencial, bem como o móvel e o movimento de todos os seres. Semeia teus desejos no coração do homem, nesse campo que é teu domínio e que ninguém pode te contestar, pois que foste tu que lhe deste seu ser e sua existência. Semeia nele teus desejos, a fim de que as forças do teu amor o arranquem inteiramente dos abismos que o retêm e que gostariam de tragá-lo com eles para sempre.Abole para mim a religião das imagens; dissipa essas barreiras fantásticas que interpõem um imenso intervalo e uma espessa escuridão entre tua viva luz e eu, e que me obscurecem com suas trevas. Aproxima de mim o caráter sagrado e o selo divino dos quais és o depositário, e transmite até o seio de minha alma o fogo que te queima, a fim de que ela arda contigo e que sinta o que são tua inefável vida e as inesgotáveis delícias de tua eterna existência. Demasiadamente fraco para suportar o peso de teu nome, transfiro a ti o cuidado de erigir inteiramente o edifício, e de nele colocares tu mesmo os primeiros fundamentos no centro desta alma que me deste para ser como o candelabro que leva a luz às nações, a fim de que elas não permaneçam nas trevas. Graças te sejam rendidas, Deus de paz e de amor! Graças te sejam rendidas por te lembrares de mim e por não quereres deixar minha alma definhar na penúria! Teus inimigos diriam que tu és um pai que esquece seus filhos e que não os pode libertar.
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Irei para ti, Deus de meu ser; irei para ti, todo corrompido como sou; irei apresentar-me diante de ti com confiança. Irei apresentar-me em nome de tua eterna existência, em nome de minha vida, em nome de tua santa aliança com o homem; e esta tripla oferenda será para ti um holocausto de agradável odor, sobre o qual teu espírito fará descer seu fogo divino para consumi-lo e retornar em seguida à tua santa morada, carregada e toda plena dos desejos de uma alma indigente que só suspira por ti. Senhor, Senhor, quando ouvirei pronunciar, no fundo de minha alma, esta palavra consoladora e viva com a qual tu chamas o homem por seu nome, para anunciar-lhe estar ele inscrito na milícia santa e que queres admiti-lo na fileira de teus servidores? Pelo poder desta palavra santa, encontrar-me-ei logo cercado pelas memórias eternas de tua força e de teu amor, com as quais marcharei corajosamente contra teus inimigos, e eles partirão diante dos formidáveis trovões que sairão de tua palavra vitoriosa. Ai de mim, Senhor, cabe ao homem de miséria e de trevas formular semelhantes votos e conceber tão soberbas esperanças? Ao invés de poder golpear o inimigo, não seria necessário que ele almejasse, ele mesmo, evitar seus golpes? Ao invés de parecer, como outrora, coberto de armas gloriosas, não está ele reduzido, como um objeto de opróbrio, a verter prantos de vergonha e de ignomínia nas profundezas de seu retiro, não ousando sequer mostrar-se à luz do dia? Ao invés destes cantos de triunfo que outrora o deviam seguir e acompanhar suas conquistas, não está ele condenado a fazer-se escutar através de suspiros e soluços? Concede-me ao menos, Senhor, uma graça: que todas as vezes que sondares meu coração e meus rins, não os encontres jamais vazios de teus louvores e de teu amor. Sinto, e não gostaria jamais de deixar de sentir, que nunca há bastante tempo para louvar-te; e que, para que esta santa obra seja realizada de uma maneira que seja digna de ti, faz-se mister que todo o meu ser esteja tomado e dirigido por tua eternidade. Permite, pois, ó Deus de toda vida e de todo amor, permite à minha alma buscar fortalecer sua fraqueza no teu poder; permite-lhe formar contigo uma linha santa que me torne invencível aos olhos dos meus inimigos e que me ligue de tal forma a ti pelos votos de meu coração e do teu, que me encontres sempre tão ardoroso e tão dedicado ao teu serviço e à tua glória, tanto quanto o és à minha libertação e à minha felicidade.
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Esposo de minha alma, tu por quem ela concebeu o santo desejo da sabedoria, vem ajudar-me tu mesmo a dar nascimento a esse filho bem-amado que eu não poderia jamais estimar o bastante. Tão logo ele tenha visto o dia, mergulha-o nas águas puras do batismo do teu espírito vivificante, a fim de que ele seja inscrito no livro da vida, e que seja para sempre reconhecido como um dos fiéis membros da Igreja do Altíssimo. Aguardando que seus fracos pés tenham a força para sustentá-lo, toma-o nos teus braços como a mais terna mãe, e preserva-o de tudo o que poderia prejudicá-lo. Esposo de minha alma – tu que não se conhece jamais, se não se for humilde – reverencio o teu poder e quero confiar apenas às tuas mãos esse filho do amor que me deste. Sustenta-o tu mesmo até quando ele comece a ensaiar seus primeiros passos. E quando estiver em uma idade mais avançada e susceptível de lhe escutar, instrui-o na honra que ele deve ao seu pai, para que tenha longos dias sobre a terra; inspira-lhe o respeito e o amor pelo poder e pelas virtudes daquele que lhe deu o ser. Esposo de minha alma, inspira-me primeiro a mim a alimentar continuamente esse filho querido desse leite espiritual que tu mesmo formas em meu seio; que eu não cesse de contemplar em meu filho a imagem de seu pai, e em seu pai a imagem de meu filho, e de todos os que possas em mim engendrar no curso ininterrupto de todas as eternidades. Esposo de minh’alma, tu que não se conhece jamais, se não se for santificado, serve ao mesmo tempo de mentor e de modelo a esse filho do teu espírito, a fim de que, em todos os tempos e em todos os lugares, suas obras e seus exemplos anunciem e manifestem sua origem celeste; em seguida pousarás tu mesmo sobre sua cabeça a coroa da glória, e ele será para os povos um monumento eterno da majestade do teu nome. Esposo de minha alma, tais são as delícias que tu preparas para aqueles que te amam e que buscam unir-se a ti. Pereça para sempre aquele que me vier pressionar a romper nossa santa aliança! Pereça para sempre aquele que quiser incitar-me a preterir-te por um outro esposo! Esposo de minha alma, toma-me tu mesmo como teu próprio filho; pois que ele e eu não somos senão um aos teus olhos, e derrama abundantemente sobre um e outro as graças que somente do teu amor nós dois podemos receber. Não posso mais viver, se não concedes à voz de meu filho e à minha unirem-se juntas para cantar eternamente teus louvores, e para que nossos cânticos sejam como rios inesgotáveis, engendrados incessantemente pelo sentimento das tuas maravilhas e do teu inefável poder.
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Escuta minha alma, escuta e consola-te em tua angústia: há um Deus poderoso que quer se encarregar da tarefa de curar todas as feridas. Ele é o único, sim, ele é o único que tem este supremo poder, e ele só o exerce para com aqueles que o reconhecem como o possuidor e o zeloso administrador. Nunca vá a ele com um disfarce, como a mulher de Jerobão, que o profeta Akia cobriu de censuras; vai, antes, com a humildade e a confiança que te deve dar o sentimento de teus apavorantes males, e do poder universal daquele que não quer a morte do pecador, pois foi ele quem criou as almas. Deixa o tempo cumprir sua lei sobre ti, em tudo o que diz respeito ao tempo; não aceleres mais sua obra por tuas desordens; não a retardes mais por teus falsos desejos e tuas vãs especulações que são o quinhão do insensato. Mas ocupa-te unicamente com tua cura interior e tua libertação espiritual, reúne cuidadosamente o pouco de forças que cada grau do tempo desenvolve em ti; serve-te daqueles movimentos secretos da vida, para aproximar-te cada dia mais daquele que já gostaria de possuir-te em seu seio, e de fazer-te compartilhar com ele a doce liberdade de um ser que desfruta plenamente do uso de todas as suas faculdades, sem jamais conhecer qualquer obstáculo. Nos momentos em que esses felizes impulsos se apoderarem de ti, ergue-te de teu leito de dores, diz a este Deus de misericórdia e todo-poderoso: Até quando, Senhor, deixareis enlanguescer, na escravidão e no opróbrio, esta antiga imagem de vós mesmo, que os séculos puderam enterrar sob seus escombros, mas que jamais conseguiram apagar? Ela ousou desconhecer- vos naqueles tempos em que habitava no esplendor de vossa glória; e vós, vós não tivestes outra coisa a fazer senão fechar sobre ela o olho de vossa eternidade; e desde então ela encontrou-se mergulhada nas trevas, como num abismo. Desde essa lamentável queda ela tornou-se cotidianamente o motivo de riso de todos os seus inimigos; eles não se contentam em cobri-la com seus escárnios; eles a infestam com seus venenos; eles a prendem em correntes, para que ela não se possa defender, e para que tenham mais facilidade para dirigir sobre ela suas flechas envenenadas. Senhor, Senhor, esta longa e humilhante prova não é suficiente para que o homem reconheça tua justiça e preste homenagem ao teu poder? Esse monte infecto dos desdéns e dos desprezos de seu inimigo, não permaneceu ele por tempo longo bastante sobre esta imagem de ti mesmo, para descerrar-lhe os olhos e convencê-la de suas ilusões? Não temes que, no fim, estas substâncias corrosivas apaguem inteiramente sua marca e a tornem absolutamente irreconhecível? Os inimigos de tua luz e de tua sabedoria não deixariam de confundir esta longa cadeia dos meus opróbrios com a tua própria eternidade; eles acreditariam que seu reino de horror e desordem é a única e real morada da verdade; acreditariam ter triunfado sobre ti e ter-se apoderado do teu reino. Não permite, pois, oh Deus de zelo e de ciúme, que tua imagem seja profanada por muito tempo. Tua própria glória toca-me ainda mais que minha própria felicidade, que não estaria fundada sobre tua própria glória. Ergue-te de teu trono imortal, desse trono onde repousa tua sabedoria, e que é todo resplandecente das maravilhas de teu poder; entra um instante na vinha santa que plantaste por toda a eternidade; toma um único grão desta uva vivificante que ela não cessa de produzir; espreme-a com a tua mão divina e faz correr sobre meus lábios o suco sagrado e regenerador, o único capaz de reparar minhas forças; ele irá umedecer minha língua ressecada; descerá até meu coração; e trará até ele a alegria com a vida; ele penetrará todos os meus membros; irá torná-los sãos e robustos, e parecerei vivo, ágil e vigoroso, como era no primeiro dia que saí de tuas mãos. É então que teus inimigos, decepcionados em suas esperanças, rugirão de vergonha, e tremerão de pavor e de raiva, ao ver que seus esforços contra ti terão sido vãos, e que meu sublime destino terá atingido sua realização, apesar de suas audaciosas e obstinadas investidas. Escuta, pois, oh minha alma, escuta e consola-te em tua aflição: há um Deus poderoso que quer se encarrega da tarefa de curar todas as feridas à sua imagem e semelhança e que, apesar de todos os esforços e triunfos do inferno, soube reabilitá-lo em seu esplendor, em sua sabedoria e nas felicidades de sua origem. Amém.
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Senhor, como nos seria possível cantar aqui embaixo os cânticos da Cidade Santa? É em meio a torrentes de lágrimas que nós podemos escutar os cânticos de alegria e de júbilo? Se eu abro a minha boca para começar os primeiros sons, os soluços me oprimem e não posso deixar escapar senão suspiros e tons de dor; e frequentemente mesmo estes soluços sufocam dentro do meu seio, e nehuma orelha caridosa está próxima de mim para lhes escutar e me trazer alívio. Eu me sinto oprimir pela extensão e pela duração de meus sofrimentos, e meu crime não cessa de se apresentar diante de mim, para me anunciar que, a qualquer instante, a morte vai surgir e gelar todo o meu ser com a frieza de seus venenos; ela já capturou todos os meus membros, e já toco o momento de ser deixado como o cadáver que acaba de expirar e que os servos abandonam à putrefação. Todavia, Senhor, pois tu és a fonte universal de tudo aquilo que existe, tu és também o manancial da esperança; e se esse raio de luz ainda não foi extinto em meu coração, eu ainda me agarro a ti, eu ainda sou ligado a tua vida divina por esta esperança imortal que escorre continuamente de seu trono. Da profundidade de meu abismo eu ouso te implorar: eu ouso chamar em meu socorro a tua mão benfazeja para que ela se digne a realizar minha cura. Como são efetuadas as curas do Senhor? São pela doce submissão aos sábios conselhos deste médico divino. É necessário que eu tome, com reconhecimento e com um desejo ardente, a bebida amarga que sua mão me apresenta; é preciso que minha vontade se junte àquele que a anima para mim; é preciso que a duração e os sofrimentos do tratamento não me façam rejeitar o bem que me quer fazer este supremo autor de todo bem; ele é penetrado com o sentimento de minhas dores, e eu não tenho outra coisa a fazer senão me deixar penetrar pelo sentimento de seu caridoso interesse por mim; é através disso que o cálice da salvação me será benéfico; é então que minha língua recuperará sua força, e eu cantarei os cânticos da Cidade Santa. Senhor, qual será meu primeiro cântico? Ele será inteiramente à honra e à glória daquele que me concedeu a saúde e que operou minha libertação. Eu lhe cantarei este cântico desde o nascer até o pôr do sol; eu o cantarei por toda a terra, não apenas para celebrar o poder e o amor de meu libertador, mas para comunicar a todas as almas de desejo e a toda a família humana, o meio certo e eficaz de recuperar para sempre a saúde e a vida. Eu os ensinarei que, assim, o espírito de sabedoria e de verdade repousará sobre seus próprios corações e lhes guiará por todos os caminhos. Amém.
Alimente sua alma com mais:
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