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ADOLF GUGGENBÜHL-CRAIG
Uma das grandes tarefas do processo de individuação é experimentar o lado escuro e destrutivo. Isso pode ocorrer por meio da sexualidade, que é um dos muitos palcos possíveis para essa experiência. É claro que não estamos dizendo que a pessoa precisa deixar-se inundar por fantasias de um Marquês de Sade, nem que ela deva viver essas fantasias. Significa, antes, que as fantasias desse tipo podem ser entendidas como a expressão simbólica de um processo de individuação que está se desdobrando no território dos deuses sexuais.
Certa vez, tive como paciente uma mulher masoquista, uma autoflageladora, a quem tentei ajudar a normalizar-se. Cheguei a ter algum sucesso: suas atividades masoquistas cessaram e ela suprimiu suas fantasias masoquistas. Mas começou a sofrer de uma inexplicável dor de cabeça que lhe causava grandes problemas na vida profissional. Numa experiência visionária — ela era uma negra africana, e no seu ambiente essas coisas não eram incomuns — Moisés lhe apareceu e instruiu-a a continuar com as flagelações pois, se não o fizesse, os egípcios a matariam. Com base nessa visão, ela desenvolveu uma teoria complexa (parcialmente fundada nos rituais de flagelação dos cristãos mexicanos) que sustentava que só através do masoquismo poderia enfrentar e harmonizar o sofrimento do mundo. Ela deixou-se dominar mais uma vez pelas fantasias masoquistas; ao fazê-lo, suas dores de cabeça desapareceram e seu desenvolvimento psicológico prosseguiu bastante bem. Esse exemplo destina-se a servir apenas como ilustração, não como recomendação.
O fenômeno do sadomasoquismo sempre estimulou a curiosidade dos psicólogos. Como podem a dor e o prazer coincidir? O masoquismo parece ser um tanto contraditório para muitos psicólogos e psicanalistas. Alguns deles chegam a sustentar que o masoquista vive suas fantasias com grande riqueza de detalhes e muita teatralidade mas, ao encontrar o sofrimento real, imediatamente abandona esse comportamento. No entanto, isso não é de todo correto e, além disso, relaciona-se em parte com certos desvios sexuais. E raro que a vida sexual real esteja plenamente de acordo com as fantasias sexuais. Sabemos que existem muitos masoquistas que não apenas buscam formas degradantes de dor como também as experimentam com prazer.
O masoquismo desempenhou um papel importante na Idade Média, quando grupos de flageladores percorriam cidades e aldeias. Muitos santos dedicavam grande parte de seu tempo a açoitar-se. Monges e freiras consideravam uma prática rotineira infligir dor e humilhação a si mesmos. A tentativa da moderna psiquiatria de entender todo esse fenômeno coletivo como uma expressão de sexualidade perversa e neurótica não me parece satisfatória. Aproximamo- nos mais do fenômeno com o conceito de individuação. Pois não é o sofrimento da nossa vida, e da vida em geral, uma das coisas mais difíceis de aceitar? O mundo está tão cheio de sofrimento, e todos nós sofremos tanto no corpo e no espírito, que mesmo os santos têm dificuldade para compreendê-lo. Uma das mais difíceis tarefas do processo de individuação é aceitar a tristeza e a alegria, a dor e o prazer, a ira de Deus e a graça de Deus. Os opostos sofrimento e alegria, dor e prazer — estão unidos, de modo simbólico, no masoquismo. Assim a vida pode ser verdadeiramente aceita e até mesmo a dor pode ser experimentada com alegria. O masoquista, de um modo assombroso e fantástico. enfrenta e harmoniza os maiores opostos da nossa existência
O sadismo pode ser parcialmente entendido como uma expressão do lado destrutivo do ser humano: uma expressão do âmago, da sombra, do assassino dentro de nós. É um traço específico do ser humano encontrar a alegria na destruição. Este ensaio não é o lugar para considerarmos se a destrutividade pertence à natureza humana ou se é produto de um desenvolvimento falho, embora eu acredite que a primeira opção é verdadeira. Em todo caso, a destrutividade é um fenômeno psicológico com o qual todo ser humano precisa chegar a um acordo. A alegria de destruir, de obliterar, de torturar, etc. também é experimentada no meio sexual.
O prazer de destruir os outros está relacionado com a autodestrutividade. Por isso não causa surpresa que o sadismo e o masoquismo apareçam juntos; o matador autodestrutivo está no centro da sombra arquetípica, o centro de irredutível destrutividade no ser humano.
Outro componente do sadismo é a intoxicação com o poder. Causa prazer sexual dominar por completo o parceiro, brincar com ele como o gato brinca com o rato.
Ainda um outro aspecto do sadismo é degradar o parceiro à condição de puro objeto. Nas fantasias sádicas, amarrar o parceiro e observar “friamente” suas reações desempenha um papel importante. O parceiro torna-se uma simples coisa com cujas reações o sádico brinca.
Durante muito tempo, os teólogos cristãos só reconheciam a sexualidade quando ligada à reprodução. Percebiam o erotismo como algo demoníaco e sobrenatural, algo que precisava ser combatido ou neutralizado. Acredito que todos esses teólogos medievais eram pessoas inteligentes e sensatas, numa busca honesta da verdade e da compreensão. Não podemos, portanto, descartar com facilidade o fato de que eles percebiam a sexualidade como demoníaca. Eles estavam expressando algo muito verdadeiro.
A sexualidade ainda é “demonizada” nos nossos dias. Fracassaram todas as tentativas de tomá-la totalmente inofensiva e de apresentá-la como algo “completamente natural”. Para o homem moderno, algumas formas de sexualidade continuam a ter aspecto mau, pecador e sinistro.
Alguns movimentos de liberação feminina tentam entender a sexualidade como uma arma política usada pelos homens para oprimir as mulheres. Com isso, essas mulheres “demonizam” a sexualidade e, ao mesmo tempo, deixam implícito que a sexualidade poderia tornar-se inofensiva através da reversão dos papéis masculino e feminino.
Como outro exemplo de “demonização”, eu gostaria de citar o suposto efeito da chamada cena primai. Os seguidores de Freud (e grande parte da opinião oficial sob a sua influência) sustentam que podemos esperar sérias seqüelas psicológicas na criança que tenha acidentalmente presenciado o contato sexual de seus pais. Muitos desenvolvimentos neuróticos são atribuídos a essas experiências de infância.
Uma exibição explícita das atividades sexuais paternas superestimula, na criança os desejos incestuosos e o ciúme com eles relacionados. Com isso intensifica-se de modo perturbador a situação edipiana. Felizmente, é impossível para muitos pais exibir sua sexualidade aos filhos de modo aberto e desinibido. Isso também está relacionado com o tabu do incesto. Os pais se defendem, instintivamente, contra a superestimulação de suas próprias fantasias e tendências incestuosas. Reprimir um tabu talvez cause mais danos psicológicos do que reconhecê-lo com respeito. Alguns dos grandes tabus, como o do incesto, existem mais para nos proteger do que para nos reprimir.
Encontramos outro exemplo contemporâneo da sexualidade encarada como coisa sinistra no rígido controle e na exclusão da sexualidade em quase todos os nossos hospitais. As pessoas acreditam, de um modo obscuro e misterioso, que a atividade sexual poderia prejudicar os pacientes. Mas por que elas acreditam nisso? Quais são as razões para que não seja permitido aos pacientes de um hospício, por exemplo, ter contato sexual dentro da instituição?
E ainda um outro exemplo de como algumas pessoas se convencem de que a sexualidade é algo sinistro. Na Suíça, manter relações sexuais com deficientes mentais é considerado um ato criminoso. A intenção dessa lei era proteger o deficiente mental contra abusos, mas seu efeito básico foi tornar impossível ao deficiente mental ter uma vida sexual. Que essa lei desumana não encontre resistência popular demonstra, mais uma vez, que um poder quase mágico é atribuído à sexualidade.
Um último exemplo. Os atletas — os participantes de uma Olimpíada, por exemplo — geralmente são estritamente proibidos pelos seus treinadores de envolver-se em qualquer atividade sexual durante o período das competições. Já aconteceu de atletas olímpicos terem sido mandados de volta para casa por envolver-se em aventuras sexuais sub-reptícias. Mas sabemos que, para alguns atletas, é benéfico manter atividade sexual antes de empreender grandes esforços físicos.
O que está agindo aqui são antigos preconceitos. Entre certos povos primitivos, os homens não ousavam ter contato sexual com as mulheres antes de seguir para a batalha.
O elemento demoníaco da sexualidade talvez também se mostre no fato de que é muito difícil experimentar e aceitar a atividade sexual apenas como “prazer” ou como uma experiência agradável. Poucas pessoas conseguem “simplesmente desfrutar” a sexualidade, como desfrutariam uma boa refeição. A “teoria do copo d’água” — a experiência sexual seria o equivalente a saciar a sede — encontra muitos defensores, mas raras são as pessoas que a praticam por tempo mais longo.
E o que poderia significar para a psicologia que a sexualidade sempre tenha algo sinistro em si, mesmo hoje, quando acreditamos já ter-nos libertado dessa atitude? O sinistro é sempre o ininteligível, o impressionante, o numinoso. Onde quer que algo divino apareça, começamos a sentir medo. O processo de individuação, que tem um caráter fortemente religioso, é experimentado como numinoso em muitos aspectos. Tudo aquilo que se relaciona com a salvação tem, entre outras coisas, um caráter não-familiar; sempre inclui o supra-humano.
A “demonização” da sexualidade talvez seja compreensível, dado seu caráter individuacional. Ela não é apenas uma inofensiva atividade biológica, mas um símbolo de algo que se relaciona com o significado da nossa vida, com a nossa busca e anseio pelo divino.
A sexualidade oferece-nos símbolos para todos os aspectos da individuação. O confronto com as figuras dos pais é experimentado no drama do incesto. O confronto com a sombra leva aos destrutivos componentes sadomasoquistas do erotismo. O confronto com a nossa própria alma, com a anima e o animus, com o feminino e o masculino, pode ter uma forma sexual.O amor por si mesmo e o amor pelos outros são experimentados corporalmente na sexualidade, seja através de fantasias ou de atividades. Em nenhum outro lugar a união de todos os opostos, a unio mystica, o mysterium coniunctionis, expressa-se de modo mais impressionante que na linguagem do erotismo.
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