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Kaio Felipe Cabrera[1]
Há um conceito na psicanálise muito provocativo para nós, da comunidade mágica. É o conceito de “demanda”. De maneira muito resumida, aquilo que o sujeito pede ao entrar em análise é um pedido determinado pelo sintoma. Darei um exemplo clínico:
Faço a pergunta tradicional:
— O que te traz aqui?
A analisanda responde:
— Estou aqui para me tornar mais independente.
Por mais virtuoso que possa parecer, esse pedido não é autêntico; essa demanda é, na verdade, a expressão de um sintoma – o resultado de um conflito na alma.
A técnica clínica nos ensina a não atender a essa demanda, pois, via de regra, ela expressa o desejo do analisando de reparar o sintoma, de se manter sofrendo do mesmo modo.
A pergunta que fica, então, é: o que o analisando quer?
— É algo que o analisando não sabe o que é.
Mas, então, como entender essa demanda?
— Como uma identificação do ego com o sintoma. E, se essa demanda for atendida, o ego se manterá em repetições constantes, sem entender por que tudo parece sempre retornar.
No caso dessa analisanda, sua infância foi marcada por grande desprezo dos pais, que pareciam sempre muito dependentes dos outros. A tia havia feito críticas muito duras, dizendo que a dependência deixava qualquer um vulnerável, e que ser mulher era estar sempre nessa posição.
Para não se tornar dependente, a analisanda se formou tentando ser o mais independente possível, a ponto de nunca conseguir se entregar ou se apaixonar verdadeiramente. Nunca se envolveu em grupos e performava a masculinidade elogiada pela tia para não ter que encarar o fato de ser uma mulher.
Agir assim funcionou até certo ponto. O que resolveu o problema com os pais em um primeiro momento começou a trazer sofrimento a longo prazo: não conseguia ter relações sexuais, no trabalho não se conectava com as pessoas, começou a temer a solidão, e passou a ser criticada pelo marido por nunca permitir-se ser um pouco mais feminina. E, ainda assim, a demanda da paciente era: “Quero ser mais independente” — justamente esse objetivo que estava causando seu sofrimento psíquico.
Nada no discurso de um paciente pode ser tomado como referente à ‘realidade pura e simples’. A demanda manifesta muitas vezes esconde motivações mais profundas. (FINK, 2007, 35-37)
A primeira demanda sempre é mentira. Aqui, “mentira” significa um velamento – uma ilusão a respeito do que se quer. A primeira demanda esconde coisas que estão ocultas e de difícil assimilação. A analisanda não consegue se dar conta de que aquilo que ela pensa querer (mais independência) não a levará a nada. Pelo contrário, vai intensificar seu sofrimento. Depois de muitas sessões, essa analisanda conseguiu transformar sua queixa inicial. O que ela desejava não era ser mais independente, mas conseguir se entregar sem se machucar tanto, poder amar sem tanto medo, lidar com a insegurança extrema causada pelo outro e pela sociedade, etc.
Lacan diz uma frase muito interessante: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”; e acrescenta: “Eu não sou lá onde sou joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não posso pensar” (LACAN, 1998, p. 521). Se formos considerar essa frase, ela terá impactos na prática mágica.
O magista pode necessitar de algo que ele é incapaz de obter através dos canais convencionais. […] O simples ato de desejar raramente é eficaz, já que a vontade se envolve em diálogo com a mente. Isso dilui a habilidade mágica de muitas formas. Torna parte do complexo do ego; a mente fica ansiosa com a possibilidade de fracasso. Logo o desejo original se torna uma massa de ideias conflitantes. Frequentemente os resultados desejados surgem somente quando são esquecidos. (CAROLL, 2016, p. 24-25)
Penso que aqui está formulado todo o problema do início da criação de um sigilo: tudo aponta para concluirmos que aquilo que eu penso querer é apenas um joguete dos meus pensamentos. Isso coloca sempre em risco a principal motivação da criação do sigilo, ou seja, realizar um desejo.
Seria muito cansativo discutir em qual sentido os ocultistas modernos, sobretudo os de “linha esquerda”, concebem a ideia de ego. De modo geral, vemos que compreendem a psique mais ou menos de um modo hedonista/vitalista – o desejo por prazer, por poder, etc., não deve ser reprimido, pois o desejo seria uma manifestação mais verdadeira, mais “natural”, do que as ideias conscientes. (Cf. SPARE, 2021, p. 281–282).
Mas o que estamos questionando é que essa mente racional de defesas e repetições está atuando sintomaticamente ao fazer a demanda. O ego age absolutamente convencido de que sua ação é livre, mas uma análise mais profunda revela ser apenas ações reativas disfarçadas. “O eu não é mais senhor em sua própria casa” (FREUD, [1917] 1944, p. 295; tradução nossa).
Mudemos agora a cena da análise para a cena da magia: suponhamos que essa analisanda resolvesse fazer um sigilo. Como se inicia o sigilo? Comumente, inicia-se pelo intento. Mas temos exatamente aí o problema: o intento é como a demanda, e a demanda expressa uma forma de sofrimento! Realizá-la, no melhor dos casos, resultará em uma estagnação da vida.
Para entendermos melhor essa questão, é necessário diferenciar a ideia de ego da de Self. Enquanto o ego está voltado para a adaptação, para a proteção da identidade consciente e frequentemente atua de maneira defensiva e repetitiva, o Self representa a totalidade da psique. Ele abarca tanto o consciente quanto o inconsciente, funcionando como uma instância criativa, espontânea e integradora, mas que opera em um campo de mistério, frequentemente inacessível à lógica do ego. Diferentemente do ego, que se fixa em demandas sintomáticas e busca satisfazer suas defesas, o Self acolhe o conflito entre pulsão e linguagem como parte de uma dinâmica criativa e transformadora, permitindo que as tensões psíquicas encontrem expressão simbólica. Esse processo, no entanto, não é previsível ou plenamente compreensível, e é marcado tanto pela criação quanto pela incerteza, conduzindo o sujeito em direção ao desenvolvimento e à individuação.
Tratando-se, então, da técnica de sigilos, como posso confiar que o intento do meu sigilo é autêntico, visto que meu ego pode estar desejando sintomaticamente? O que garante que as descobertas sobre o que verdadeiramente desejo não são mais um dos movimentos sintomáticos?
Uma solução possível é não permitir que o ego seja o protagonista na feitura do sigilo desde o início. A questão central aqui é criticar a ideia de que o ego é capaz de demandar; ou seja, já estamos esquecidos do que verdadeiramente queremos quando nos perdemos no aspecto manifesto da demanda/intento. Na imensa maioria das vezes, você não quer o que pensa que quer. E o inverso também é verdadeiro: você quer verdadeiramente aquilo que pensa que não quer!
A questão que surge é: se não for meu ego que fará o sigilo, quem o fará? As respostas possíveis são: o sujeito do inconsciente, o daimon, o self. Todos esses termos apontam para realidades psíquicas além do ego.
Sigilo da Alma
Phil Hine, em seu livro sobre o caos, nos falou sobre a excelência técnica:
Um dos equívocos mais antigos sobre a magia do caos é a ideia de que quem a pratica tem carta branca para fazer o que quiser e, por conseguinte, ser negligente (ou pior, medíocre) ao avaliar a si e analisar seu próprio desenvolvimento. Não é assim. A abordagem caoista sempre defendeu que devemos nos analisar e nos avaliar com rigor, além de enfatizar a prática na experimentação de técnicas até alcançarmos os resultados desejados. Para aprender a “fazer” magia é necessário desenvolver um conjunto de aptidões e habilidades. Se é para se envolver com essas esquisitices, por que não se dedicar ao máximo? (HINE, 2022, p. 10)
Se precisamos nos analisar e analisar com rigor, pensemos em como seria possível criar um sigilo que vá além do ego, conectando-nos ao que Winnicott chamaria de nossa autenticidade criativa, ou ao que Lacan denominaria como o “Outro”. É por isso que optei por chamar essa prática de Sigilo da Alma: uma técnica que desloca o máximo possível o foco do ego. Nesse processo, o sigilo não é apenas uma ferramenta do ego, mas um convite para que o Self, o daimon ou o inconsciente criativo. Eu pensei em duas formas de executar essa arte (mas qualquer um pode criar sua variante). A primeira, menos ambiciosa e mais ligada à tradição; A segunda, mais experimental. Vamos a elas:
A primeira forma: basta simplesmente fazer um intento de modo a não pautar uma demanda objetiva. Algo como: “Que seja feita a minha verdadeira vontade”. Ou: “Estou no destino que meu anjo quer que eu trilhe”. Ou ainda: “Aqui se realiza o que realmente quero e desconheço”.
Então, a ordem fica:
- º. Escrever o intento de modo a deslocar o eixo da importância do ego para algo mais oculto em si.
- º. Fazer desse intento uma imagem.
- º. Energizar, ou carregar, esse sigilo.
- º. Lançar o sigilo, liberá-lo da relação com o ego – não no sentido de destruí-lo, mas de deixá-lo ser. Isso pode significar plantá-lo, colocá-lo como parte de uma composição artística, fazer um barquinho de papel e deixá-lo fluir em uma correnteza ou algo do gênero.
- º. Ao invés de esquecer, lembrar que o sentido profundo do sigilo irá te afetar.
A segunda forma subverte ainda mais a tradição de criação de sigilos, invertendo absolutamente a centralidade do eu para o “Outro”.
Vejamos:
- º. Colocar-se em um estado de gnose, em um estado de “nem isso, nem aquilo”, uma profunda meditação.
- º. Fazer desenhos automáticos sem nenhum intento objetivo.
- º. Trabalhar o desenho de modo a captar um gesto, apartando-se ao máximo de qualquer simbolização conhecida. Captar no desenho essa latência entre o rabisco e a formação de símbolos ou figurações.
- º. Depois de feito, o sigilo não é carregado nem energizado pelo eu. Permite-se, ao invés disso, uma relação mútua de simpatia, como se nele estivesse algo “outro além de mim”.
- º. O sigilo é exposto (expositio): assim como nos rituais antigos de expositio, onde se deixava uma criança recém nascida em um lugar da natureza profunda (como Zeus, Édipo, Paris, Romulo e Romulo e, segundo a leitura do filósofo dos espectros Fabian Luduena, até mesmo jesus cristo), aos cuidados dos deuses, o sigilo é exposto em algum lugar que se julgue adequado.
- º. O sigilo é lembrado. Recordamos que o mistério ali contido irá se concretizar.
Se o início do processo é esquecer o intento, o final é lembrar. Mas lembrar o quê, já que o sigilo não significa nada para o ego? Lembrar que foi feito pelo Self, pela verdade criativa que atua e desenvolve, e que o melhor necessariamente irá acontecer. Ou seja, a proposta é sermos criativos e experimentarmos uma “fé mística”, sem desvalorizarmos o que as observações clínicas nos ensinam com tanto rigor.
O que importa em nós não se curva ao ego, mas o envolve.
BIBLIOGRAFIA
FINK, Bruce. Introducción clínica al psicoanálisis lacaniano: teoría y técnica. Barcelona: Gedisa, 2007.
FREUD, Sigmund. (1917). Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (Conferências introdutórias sobre psicanálise). Gesammelte Werke, v. XI. Londres: Imago, 1944.
LACAN, J. Seminário. Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, 2. Ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1964/1995.
LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
HINE, Phil. Caos condensado: uma introdução à magia do caos. Tradução: Adriano Scandolara. Palimpsestus. 2022
SPARE, Austin Osman. Arte e magia do caos: obra reunida de Austin Osman Spare. Organização e edição de Rogério Bettoni. 1. Ed. Belo Horizonte: Palimpsestus, 2021. Tradução de vários tradutores. (Título original: The book of pleasure; anathema zos; automatic drawing: focus of life). ISBN 978-65-88801-04-8.
Kaio Felipe Cabrera é psicanalista, professor e pesquisador em filosofia da arte, com mais de dez anos de experiência clínica. Doutorando pela Universidade Federal do ABC, desenvolve sua tese em torno da obra de Étienne Souriau, com foco na psicologia dos modos de existência e suas articulações com a estética e o inconsciente. Atua na formação em psicanálise e psicologia analítica, com trânsito interdisciplinar entre filosofia, arte e clínica, além de integrar grupos de estudo e pesquisa sobre arte, simbolismo e práticas imaginais. É também vocalista da banda Strigah e músico experimental, criando obras que exploram estados alterados de consciência e atravessamentos entre mito, corpo e linguagem.
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