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por Danilo Nobrega[1]
“[…] ver assim diferente, querer ver diferente, ou seja, uma grande disciplina e preparação do intelecto para sua futura ‘objetividade’ que não pode ser entendida
como ‘ observação desinteressada’, mas como a faculdade de ter seu próprio pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas.”
(Nietzsche – Genealogia da moral, III Dissertação, 12)
ZosKia é só para artistas?
Na minha leitura ZosKia está íntima e diretamente relacionada a dinâmicas, pressupostos e fenômenos muito típicos da arte, mas isso quer dizer que para praticar ZosKia você deve ser artista? Bom, a resposta rápida é Não. Mas é curioso que a resposta mais interessante também está fortemente ligada a dinâmicas, pressupostos e fenômenos artísticos… Acontece que a arte não é composta apenas por artistas e suas obras, outro elemento fundamental a ela é o espectador, quem observa a arte ou simplesmente quem acaba afetado direta e indiretamente pela mesma ou suas repercussões. Todo mundo tem alguma peça artística que alicerçou sua identidade íntima, mas entenda, o espectador não é um agente passivo neste trio, afinal, ao contrário, também é vasta a quantidade de obras de arte que mudaram o mundo por conta do olhar específico e sui generis de um ou mais espectadores específicos e sui generis. Quem contempla a arte ativamente soma conteúdo sensível a ela, partindo da própria afetação e ações consequentes a essa relação.
ZosKia usa do fenômeno artístico em torno da criação e com isso não importa exatamente como você se compõe ou é composto nessa dinâmica, só importa se você existe, pois existir é afetar e ser afetado e em relação, se criar. Não à toa eu eu gosto tanto de produzir falas refletidas da contemplação de filmes, séries, quadrinhos e etc. Isso é parte fulcral do fazer como eu o entendo em ZosKia. A seguir eu convido ao exercício dessa reflexão “Zoakista” sobre obras de arte em alguns curtos ensaios.
Vontade de beleza como ferramenta de potência mágicka
A perfeição de ser seria algo como a imperfeição manifesta em sua forma perfeita… ou seja, no que se É.
No livro “O povo brasileiro”, Darcy Ribeiro fala de uma “vontade de beleza”, um Afeto/ Fazer tipicamente indígena e profundamente dispare da nossa vivência contemporânea. Essa vontade de beleza vem da perspectiva de que se É tudo que se faz. Consequentemente, fazer na melhor forma é Ser na melhor forma e essa “melhor forma” é representada aqui pelo Belo.Com isso a cisão com a nossa sociedade contemporânea fica agressivamente exposta. Nossa sociedade se comporta como um coletivo de individualidades apartadas da própria coletividade, onde tudo que se faz não é sobre o que se É.
Mediante tamanha alienação ficam os questionamentos: Como descobrir quem se é, não fazendo o que sequer? Como descobrir o que se quer não sendo quem se é? E principalmente, como ser feliz nesses termos?
Esse Afeto/ Fazer pode parecer de difícil implementação mediante essas regras da nossa dinâmica social, mas observando com mais cuidado, talvez seja ele um poderoso antídoto a essa alienação que tanto deprime a contemporaneidade. A proposta aqui é um tipo de sensibilidade ativa ao Belo durante o fazer inserido na alienação, com isso buscando a criação de um si mesmo contemplativo que ligue o que se entende como eu com o eu que a sociedade entende e demanda.
Nesse recorte essa “vontade de beleza” poderia ser absorvida por nós como uma tática de Viver e não apenas sobreviver na contemporaneidade, sendo, mediante todas as contradições e imperfeições óbvias, uma forma de estabelecer a criação do que se É, um fluxo de existir entre demandas de identidades alienadas.
Tendo em vista tudo isso e a proposta de uma magia (assim como a arte) enquanto forma de expressão, o conceito de “vontade de beleza” se demonstra como uma bomba de potência, na medida que ele operaliza a possibilidade de expressão de si em fluxo pra fora das fronteiras das identidades, ou seja: Além, sempre mais e mais Além.
Tolkien e ética: Como nós matamos (ou salvamos) cenas culturais
“Nada é mau no começo”. Assim abre a nova série no universo Tolkien. A frase ilustra um processo de degradação ética. Uma degradação lenta que só se torna óbvia quando nos tornamos caricaturas de nós mesmos. Para mim o melhor exemplo é Saruman, o mago branco, que na sua ânsia de grandes poderes olhou o abismo por tempo demais. O mais importante aqui é ver que ele não apenas se tornou o oposto de si mesmo, mas que, a fim de auto-afirmação, contaminou tudo que o cercava para ser igual ao seu “novo eu”.
Certos comportamentos crescem como ervas daninhas que sufocam seu entorno. Da contemplação dessa narrativa me surgiu a provocação: “O que quem você tem se tornado cultiva na sua comunidade?” Na minha temos muito do que tratar. A cena ocultista é cheia de títulos, graus e com redes sociais, seguidores, likes tudo fica ainda mais sinuoso. Não é um problema almejar esses objetos, a questão são os pequenos atos em torno que podem fazer com que nos percamos de nós mesmos. Debatermos sobre os espaços das mulheres, negros e LGBT+, sobre violência estrutural, silenciamentos, sobre o elitismo vestido de elevação espiritual, o não espaço a critica, o comportamento de “web celebridade”, sobre como divulgar serviços, abrir as fontes de estudo para não gerar novatos dependentes de si…. E tantas outras perguntas são essenciais. Para nós mesmos e a quem admiramos, para quem damos atenção.
O questionamento constante é preciso para que, mesmo quando levados a terrenos perigosos, consigamos repensar, nos reencontrar e voltar a cultivar ambientes saudáveis. Por mais que grandes estruturas alimentem esses comportamentos danosos são nos pequenos atos e coisas simples que reside nossa maior força.
Ética em uma existência contraditória: Das delícias de cultuar um Deus Mau.
Você sente prazer quando as suas inimizades sofrem? Por que eu sinto. Normalmente nós somos ensinados que não podemos, que não devemos e que na dúvida, é melhor não. Na existência humana as contradições são as condicionantes e constituintes do existir e, alem disso, o capitalismo esta sempre pronto a capturar essas contradições inerentes em respostas fáceis, esvaziantes e confortáveis. O valor da confortável coerência é um valor inumano, e negar a humanidade é negar a possibilidade de ética. Por que esta não é uma lista simples de certo e errado. A ética é uma estruturação da existência mediante a contradição. Mas para aqueles que não conseguem encarar a própria humanidade, resta apenas a iluminação da moralidade, aqueles perfeitos, defensores do correto para além da realidade material, que se tratam como superiores negando a você a possibilidade de sensação, ciência e consequentemente, de existência. A bondade pura é a arma do perverso. E assim esses se fazem gigantes, nos colocando de joelhos. A única forma de ser mais que humano é ser ainda mais profundamente humano. Portanto eu não rezo para os elitistas Deuses superiores, para as divindades invioladas, elas não têm nada a me oferecer além de grilhões e esterilização. O Deus criado à minha semelhança é errado e errático, porque apenas diante a sua corrupção eu observo a grandiosa potência da minha humanidade.
“Dormir é melhor do que rezar”… Sandman e uma provocação
A arte é a materialização dos sonhos. Sonhos omnipresentes, alienígenas… sonhos impossíveis. Os deuses são constituídos do desconhecido, do misterioso e do fantástico. Campos esses diminuídos e esvaziados atualmente, consequentemente os mesmos foram relegados ao espaço da utilidade, deixando de ter valor em si para ter valor em sua “função”. A obra de arte Sandman emerge e responde a essa angústia em sua narrativa. A proposta dos perpétuos é uma extrapolação tão grande ao desconhecido que estes fogem das mãos da utilidade. Acontece que a magia enquanto uma não-ciência pode explorar e se potencializar muito destes horizontes abstratos e muito mais ambiciosos. Restabelecer esse divino talvez seja mais sobre o êxtase de comungar com o indizível, do que uma adoração mediada pela barganha. A provocação aqui é abraçar as aporias mais lancinantes. Sandman aponta para uma apologia dos becos sem saída, dos buracos negros da realidade… Portanto, aponta para Deuses em que sua principal característica é Ser. Deuses intransponíveis, impossíveis, inescapáveis, ininteligíveis e portanto Perpétuos.
Nope e o Inédito: Agora eu sou uma Nuvem de Sapatilhas e você também vai querer ser
Nope é o novo filme do Jordan Peele, e existe uma cena nele que me levou a uma intensa reflexão sobre o inédito. Nessa cena enquanto um poderoso evento se desenrola, uma sapatilha fica perfeita e improvavelmente de pé. Roubando toda atenção para si. Um personagem chega a refazer o acontecido, mas, com isso, apenas consegue uma relíquia estéril. Acontece que isso é uma ótima metáfora para nossa sociedade que também tenta abraçar uma relíquia estéril: a identidade fixa. Uma forma de tentar domar o inédito e a sua imprevisibilidade. Note que nós, não apenas performamos essas identidades, mas também negamos o que achamos que elas não são, nutrindo um desejo por estagnação. Um desejo caricatural pelo que achamos que acham que nós somos. Daí nosso medo da representação mais selvagem do inédito: a morte. A questão é que esse eu é constituído de definições e exigências externas e a partir de quando isso é percebido, a catarse é tão poderosa, que nos desidentificamos, ou seja, notamos que determinado afeto é um enxerto e que como tal, não nos representa, só impossibilita. Para alcançar essa percepção o personagem principal usa de um exercício de perspectiva, de olhar pela vista do existir alheio. Enquanto os outros personagens, incapazes disso, repetem a narrativa que tem de si em um ciclo. Mas como fazer do ciclo uma espiral? Indo da identidade para o olhar em perspectiva, então a desidentificação para finalmente reencontrar o inédito das possibilidades. Bom, a minha resposta obviamente é a Arte. Consumir e se ver em outra construção de si pode nos levar ao contraste necessário para quebrar um eu duro em um ser em fluxo, nos carregando para o deixar de ser necessário para Ser… e chegando aqui eu devo dizer que toda essa escrita é apenas uma performance, uma apologia artística da perspectiva de possibilidades de outras perspectivas inéditas e reencantadoras do existir.
Obra “Em nome da falta que nos sobra”; Danilo Nobrega
A Mão e o Olho como base da proposta de ZosKia sobre a experiência de existir
Se eu tivesse que destacar um conceito essencial para pautar o trabalho em ZosKia, esse seria a ideia de “ver com a mão e sentir com os olhos”, essa inversão lógica é, a meu ver a premissa mais básica, a proposição que situa em todos os elementos desse modo de perceber e ser. A ideia do olho e da mão é quase como propor raciocinar com a sensação e sentir com a razão. Eu creio que seja essa inversão que torna ZosKia tão simples em Estrutura, mas ao mesmo tempo tão complicada de entendimento. Quando você quiser entender ZosKia, sinta; Quando você quiser sentir ZosKia, entenda. A principal característica dessa proposta é um tipo de descoloração ou suspensão como um funambulista andando na corda bamba, sempre entre nem isso e nem aquilo. Apesar de tudo isso soar muito alienígena, eu tenho certeza que a maioria dos esotéricos, místicos e ocultistas já experimentaram essa postura quando diante de um oráculo. Você observa os símbolos racionais e interpreta eles de forma sensível, assim como a sensação diante dos símbolos é atravessada pela linguagem deles. Saber e sentir dançam, trocam, se equilibram e desequilibram na corda da narrativa. Não é pura matemática e nem pura intuição, são ambos, é além e vice-versa.
Danilo Nobrega (1993) é artista visual LGBT+ e ZoaKista carioca que vive desde a adolescência na cidade de Maricá.Trabalha com a crença como fenômeno de significação e observa a religiosidade como articulação subjetiva. Assim, investiga a mesma e seus desdobramentos como a fé, o consenso, existência, comportamentos e seus reversos como o dissenso, medos, heresias e outras sombras. Decanta esse conteúdo imagético enquanto ferramenta de guerrilha arte/magicka de classe. Tem interesse na iconoclastia para realização artística e busca uma poética da crítica não ressentida Apesar deste modelo de trabalho vir sendo tratado contemporaneamente como “arte visionária”, acredita que “arte iniciática” lhe cabe melhor. Para mais siga em: @danilonobrega23 no instagram, twitter e outros
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