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Ancorados na crença de que é possível viver com leveza e graça, sem perder de vista a responsabilidade com nossa missão na Terra, buscamos trazer para esta edição alguém que compartilha dessa ideia e contribui para uma vida em que o riso resgata nossa esperança na humanidade. Nosso convidado, Alê Casali, ator de formação e palhaço por vocação, mostra como a arte do Palhaço Sagrado pode ser uma ferramenta para o autoconhecimento.
Formado pela Universidade Federal da Bahia, Alê é palhaço, circense, artista de estrada, professor e diretor de artes cênicas. O palhaço Biancorino, conhecido em todo Brasil, teve sua formação guiada por grandes nomes, como a professora mestra e doutora em Artes
Cênicas, Meran Vargens, e o diretor e também doutor em Artes Cênicas, Marcos Villa Góis.
Na sua definição profissional, você se classifica palhaço, ator, diretor, dramaturgo e professor de artes cênicas. Ser palhaço vem mesmo em primeiro lugar?
Sim. Meu primeiro mestre diz que “…o palhaço é uma reserva ecológica de valores humanos quase extintos”. No inicio era ator e tinha um clown, hoje sou palhaço e tenho um ator. Ser palhaço deu um outro sentido sobre a vida, a sociedade e a humanidade. A partir daí acredito que toda profissão é arte, todo ser humano é artista e arte é autoconhecimento. Minhas obras trazem a reflexão que faço sobre a existência. A profissão do Palhaço tem sido muito subjugada na sociedade, pelo cunho infantil que a TV deu e direcionou esta arte ancestral.
Na minha atuação busco resgatar esta função primordial do Palhaço Sagrado, que segundo muitos estudos é como uma espécie de Pajé da Graça. Esta missão de fazer rir e trazer uma lição através dos contrários faz parte das civilizações mais antigas. Este “bobo Espiritual” atua mobilizando autoquestionamentos, mudanças de atitude e novas percepções sobre aspectos da vida em comunidade e também do caminho de desenvolvimento de cada ser consigo mesmo.
Como apalhaçaria se tornou ofício? E o que te move nessa busca?
Sou “buscadeiro” desde 1993 (esta palavra eu a adapto baseada no espanhol para tirar a dor na definição de quem busca conhecer a si mesmo). Quando ingressei na Universidade Federal da Bahia, no curso de Bacharelado em Interpretação Teatral, em 1996, percebi que os exercícios teatrais eram praticas físicas, mentais e emocionais tão profundas quanto as que tinham nos workshops de autoconhecimento e me ajudavam a me conhecer melhor. E as práticas espirituais e xamânicas que eu carregava contribuíam para responder melhor como ator, por conseguinte como palhaço. Eu já trazia em minha bagagem uma concentração distinta. Temas mais profundos e uma extroversão mais naturalizada por resultado das catarses, meditações e fundamentos da psicologia moderna, da antipsicologia do xamanismo, Yoga, Fraternidade Branca e outros estudos.
Em 1998 estudando Augusto Boal me viciei em fazer performances em festas, shows e eventos, junto com um grande amigo. Ele uma vez me perguntou: porque não fazer uma cena de “Clown”? Eu havia estudado inglês, clown pra mim era palhaço. Ele me explicou a diferença (que pra mim não tinha e não tem outra razão, senão usar a palavra americanizada pra dar status a uma arte incrível, mas que pelo mau uso, era mal vista na sociedade e subjugada na classe teatral). Ou seja, a meu ver Clown é o ator com vergonha de estar estudando palhaçaria. Outro dia esclarecerei mais. Então… Naquela época buscamos um diretor que tinha feito uns cursos de palhaçaria (ele também dizia clown) e este generosamente nos dirigiu. Ficou muito ruim (risos). Não pelo diretor, mas por nós mesmos, que vimos que o Ser palhaço não era personagem a se interpretar como no teatro e fazer rir era muito difícil. Mas, por isso começamos um movimento e criamos um grupo para treinar técnicas cômicas e bases de circo. E nunca mais parei. Depois o diretor e também doutor em Artes Cênicas, Marcos Villa Góis me convidou a montar em 1998, “Meu Reino por um Cavalo” de Dias Gomes, em que eu já mesclava nas minhas pesquisas a arte do palhaço e as artes do circo como malabares, perna de pau, monociclo e acrobacia.
Foi em 1999, que fui iniciado na Arte do Palhaço, pelo Grupo Lume de Campinas, em um retiro de 10 dias, através de um treinamento com Teatro Físico, laboratórios teatrais e jogos de improvisação para descoberta e construção de um “Palhaço Pessoal”. Estudei na Escola de Circo Picolino de 2000 a 2005 onde fui palhaço oficial da companhia. Os palhaços de circo quando vão trabalhar dizem: “hoje tem função!”
Percebi que este ofício não era só uma profissão ou uma arte técnica, estética ou cênica. Assim como ser professor, palhaçaria é missão e estar a serviço.
E, aprofunda no sentido humano da palavra “função”, sinônimo de dever, a meu ver.
Na hierarquia energética dos fundamentos espirituais das linhas de conhecimento mais profundas, o “dever” precede o “direito”. Por isso, para que todos os seres vivam em um mundo melhor, devo antes de tudo ser o primeiro a começar a construí-lo agora, sem esperar nada de ninguém, nem de nenhuma instituição ou governo. Por tudo isso, ofereço a medicina da arte da palhaçaria sacralizada, para poder facilitar que venham mergulhar nestas iniciações, e possam se apropriar de sua missão em melhorar a si mesmo e ao planeta em que viemos vivendo esta incrível aventura que é estarmos vivos!
Você diz que arte é autoconhecimento. De que forma a Palhaçaria se apresenta para este fundamento?
Vamos primeiro na programação que escutamos na escola quando participamos de partidas e competições. Quantas vezes escutamos o lema “o importante não é vencer, mas competir”? Começamos competindo com nosso colega em uma corrida, depois na sala para ter a melhor nota, com nosso professor, com nossos irmãos, nossos pais, com a torcida do outro time, colegas de trabalho, nossos amigos e com quem escolhemos amar e depois de novo com nossos filhos perpetuando o ciclo. Calma que vou dar uma volta conceitual, mas farei o link com este condicionamento.
Eu diria que meu primeiro idioma espiritual é xamanismo tolteca de Carlos Castañeda e é de onde parti pra muitas outras linhas que confirmam e convergem nas chaves que esta obra tem. Em todos seus livros ele se coloca como o grande idiota, e em uma grande quantidade de situações que são relatadas em seus livros, o grupo de feiticeiro de seu mestre, o índio Yaqui, Don Juan, estão morrendo de rir da cara dele por consequência de suas ações egoísticas. Ele se descreve como o ego maníaco, que nos mostra o que é autoimportância, autopiedade, autorreflexão, automatismos, ou seja, a autoimagem. Justo o que o impedia de entrar no “silencio interior” para acessar o conhecimento direto da fonte.
Deste modo, acredito que a arte da Palhaçaria Sagrada é um antidoto para esta obsessão em competir, e é um fundamento para lidar com umas das principais adversidades de um caminho de autoconhecimento e que mais cedo ou mais tarde iremos ter que encarar: O ego espiritual. Quando nos levamos a sério por termos acumulado práticas e informações isso nos tira toda a fluidez, pois este instinto competidor irá permanecer no meio espiritualista e, se não estivermos atentos, será um ponto cego que impede o crescimento verdadeiro e a transformação necessária.
E afinal o que é o Palhaço Sagrado?
Os sábios taoístas se curam através do “riso” há mais de 8.000 anos. Um simples sorriso facial libera hormônios de cura e prazer no sangue como serotonina e endorfina. Ao gargalharmos, friccionamos os órgãos uns contra os outros e somos forçados a comprimir o diafragma eliminando um ar velho, com dióxido de carbono e toxinas, aceleramos o batimento cardíaco e o fluxo sanguíneo e ativamos redes neurais na região intestinal e cardíaca. Para estes sábios, possuímos três mentes e o riso ativa e une todas elas.
Até hoje nas tribos nativas da américa do norte, os palhaços tinham a função de fazer a todos gargalharem no início dos rituais mais sagrados e nas reuniões mais primordiais, pois o riso une o espírito e a matéria.
É daí que se anexa a expressão “sagrado” a esta arte, que servirá à sua sociedade como uma espécie de xamã que abordará as questões de comportamento e personalidade.
Ensinando de maneira irreverente, ele assume em si os defeitos que estão sendo apresentados para serem corrigidos no outro ou no coletivo, sendo tão essencial como o pajé que cuida do mundo invisível.
Você concorda então que para ser um bom palhaço é preciso, antes de tudo, rir de si mesmo?
Com certeza. Em quem primeiro tenho que aplicar os fundamentos é em mim. Não que eu consiga sempre. Estou à caminho de me aprimorar, e não opto por ser palhaço 24 horas. Mas gosto de dizer que esta é minha profissão, em mercadinhos e no bairro que moro, dando permissão pra poder me relacionar de forma mais leve. É o que tento semear através da palhaçaria. Além deste dia a dia, ofereço cursos, vivência e workshops desde 2002 sobre esta arte, que neste contexto chega a ser mais curativo que outros moldes terapêuticos.
Em um ritual palhaçal podemos ter uma clara percepção da cura se manifestando, para além da cicatrização de feridas e renascimento de uma nova pele, quando a compreensão de nossas tragédias pessoais como degraus de crescimentos, rir de nossas novelas, ou da autoimagem que criamos, nos moverá a mudarmos nosso estado de consciência e nos elevará em vibrações: Ao ESTADO DE GRAÇA.
Neste estado somos nosso “Palhaci de Dentro” (já defino hoje em dia assim pra honrar a palhaçaria feminina que está em alta), com sua função xamânica. Esta arte, sob o ângulo de visão do autoconhecimento, é treinada hoje usando de divertidos jogos e práticas ancestrais, nos ajuda a conciliar com nossos defeitos e sombras e a resgatarmos a origem de nossa missão na tribo.
De forma objetiva, estes ritos de iniciações ao “palhaci interior” levará cada pessoa a uma autopercepção de si, do mundo e deste grande Teatro do Infinito que é a vida com as situações que vivemos.
Quando conseguimos rir de nós mesmos? É mesmo importante nos levarmos tão a sério, principalmente no meio espiritual?
Não podemos ser tão duros conosco. Nos rituais e laboratórios somos convidados a acessar não só o almejado amor incondicional, como também a alegria incondicional, a atenção incondicional, aceitação, presença, consciência, escuta, paz, generosidade e tantos outros estados elevados de SER, em perspectivas incondicionadas.
Em sua opinião, apalhaçaria segue atendendo aos seus propósitos originais, enquanto expressão artística?
Cada vez mais. Certa vez tive uma visão sobre qual foi a origem dos palhaços. Foi uma visão mesmo, pois tomei um susto quando li anos depois a confirmação. Na visão que a pesquisadora sobre artes circenses, Alice Viveiro de Castro, descreve no início de seu livro, O Elogio da Bobagem, sobre palhaçaria:
[…] Imagino que o primeiro palhaço surgiu numa noite qualquer em uma indefinida caverna enquanto nossos antepassados… Em volta da fogueira… Comentavam a caçada… É quando um deles começa a imitar os amigos… E logo passa a representar as momices do covarde, seus cuidados para se esquivar do combate, sempre exagerando os gestos, abusando das caretas, apontando tão absurdamente…. Que o riso se instala naquela assembleia de trogloditas. E todos descobrem o prazer de rir entre companheiros, de rir de si mesmo ao rir dos outros.[…]
Esta figura controversa está presente nas tribos mais antigas. Somente estes podiam subir no alto da oca e “cagar” na cabeça do cacique, caso estivesse sucumbindo ao poder, mostrando que vosso líder também era humano, e se melava como todo mortal. Na tribo dos Kraôs, no Tocantins, aqui no Brasil, os Hotxuas têm esta missão de pajelança palhaçal. São eles que conciliam casais em situações de desarmonia.
Não é verdadeira a informação de que os palhaços nasceram dos bobos da corte, apesar de que estes também tinham a mesma função sagrada. Somente eles podiam falar verdades a seu rei, o que a nenhum outro nobre era permitido. Por via de suas brincadeiras traziam uma visão inusitada sobre uma situação, evitando a derrota em uma guerra ou catástrofes em decisões importantes para a nação.
Me lembro também do que dizia uma professora palhaça “…todos são educados para serem belos, mas nós palhaços treinamos pra mostrar nosso ridículo e nossa feiura. Todo mundo é educado pra ser esperto e inteligente, mas os palhaços treinam pra expor sua estupidez.Todo mundo é educado pra vencer na vida, e os palhaços quase sempre perdem. Por isso, ao assistir um palhaço, você vai ver alguém sendo ignorante, ridículo e perdendo, por maior que seja seu esforço em acertar. E mesmo assim estão oferecendo tudo isso pra você rir junto com ele de sua própria tolice. Quem sabe um dia você vai estar em uma situação em que está perdendo, sendo ridícula e está com os cabelos desgrenhados. E ao pedir licença pra ir se recompor, ao se olhar no espelho, ao invés de ficar mais chateada, você se lembrará deste palhaço e dará uma boa risada da sua própria cara. E é assim que palhacis evita catástrofes no mundo.”
Esta é a Angela de Castro, que trabalho com o Circo de Soleil e criou junto com o palhaço russo Slava o “Snow Show”, o espetáculo mais visto no mundo atualmemte.
Muitos espiritualistas buscam nas Artes um meio de alcançar e/ou promover a tão sonhada “salvação do espírito”. Você compartilha dessa ideia?
Isso é tudo em que sempre acreditei. Dentre meus estudos, estão conceitos e experiências que envolvem conhecimentos sobre o Xamanismo, o Yoga Taoísta, Yoga Indiano, Budismo Clássico e Zen Budismo, Sufismo, 4° Caminho, Ho´Oponopono, Release Tecnique, Bioenergética, Danças Sagradas e Artes marciais. Tudo isso compõe as vivências que proponho nos meus cursos de Formação em Palhaçaria, que vêm servindo como “divisores de águas” na vida de muitas pessoas desde 2002. Meu trabalho alcança desde os mais diferentes tipos de artistas, até psicólogos, terapeutas, médicos, advogados e outros variados profissionais. Hoje sou membro da Igreja Messiânica, na intenção de ministrar Johrei e servir à obra Divina, cuidando das pessoas e do mundo.
Em um seus cursos de formação, você diz que é preciso morrer e renascer para encontrar o “Palhaço Sagrado de Dentro”. De que forma essas condições se apresentam na prática do curso?
A Jornada ao Incondicional é composta de 3 ritos de passagens (iniciações), onde seremos curadores de nossa própria essência. O curso o “Palhaço Sagrado de Dentro” é um convite a sermos mestres e aprendizes do que veio nos compondo e construindo através dos nossos genes, nossa história, nosso destino ou nossa sina. Mas diferente do batismo passivo que a maioria de nós recebe ao nascer, cada participante irá, de forma lúdica e profunda, se apropriar proativamente destas três oportunidades de morrer e renascer. Nestes ritos de passagem, acompanho o aluno-palhaço em 3 vivências palhaçais: o Bufão – trazendo à tona as sombras e defeitos e a capacidade de autoaceitação; O Curumim – que acessa toda pureza e ingenuidade do ser, num exercício de perdão e por fim; chegamos a Branco – em que a conciliação com a sombra e o encontro com a pureza nos preparam para trabalhamos a tirania interna. O Egomem vaidade, ou aquela parte de nós que nós levamos a sério. A experiência é uma oportunidade lúdica e profunda de autoconhecimento. E apesar de todo conteúdo, a proposta é rir e se divertir com isso tudo.
Qual a maior lição que o palhaço deixa para seu público, quando sai de cena?
A magia do palhaço está na forma como lida com o contrário. É definido pelos professores palhaçais de “perdedor feliz”, e este é seu tema principal: A derrota. O que ninguém quer acolher. Todo palhaço nos transmite a ideia do quanto a vida é transitória e passageira. Um dia iremos começar a perder, e só perder. Cada dia que chega é um dia a menos, e iremos com o tempo perder os dentes, o cabelo, o tônus muscular, nossos entes amados, incluindo nossos familiares, e depois perderemos nossa existência neste planeta magnífico. Aí é quando a morte, grande conselheira, nos chama a ter atenção por cada escolha a cada momento.
Qual mensagem oBiancorino deixa para os leitores da Estimuladamente?
A maior mensagem dos palhaços está na obrigação que tem com a expressão “ser engraçado”. Para isso precisa estar em estado de graça e para acessar este, devemos entrar em contato com a gratidão. Sim, já falei que a vida é passageira, e iremos perder muitas coisas. A consciência da morte é fundamental no xamanismo e em muitas linhas espirituais, para estarmos em plena presença sobre cada escolha que fazemos, que pode ser a última.
E se estamos lendo esta revista, ainda não fomos tocados pela morte, e temos ainda algum tempo para crescer e melhorarmos como seres humanos. Logo, agradecermos pelas coisas mais simples da vida como poder andar, ouvir, ver, ter comida e casa, ser amado, saber ler e escrever, trabalhar com o que amamos, ajudar as pessoas a crescerem também e ainda, como no meu caso, enquanto me divirto mostrando minha estupidez e lerdeza, fazê-las rirem junto comigo de toda esta piada cósmica que é estar vivo.
Assim, estar em estado de graça em grupo é muito mais divertido e como palhaço sagrado me consagro cumprindo minha missão na vida e na minha grande tribo chamada sociedade.
Entrevista feita por Laís Nascimento.
Fonte: Revista Estimuladamente
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