Categorias
Magia do Caos

O Livro do Prazer (Amor-de-si): A Psicologia do Êxtase

Leia em 111 minutos.

Este texto foi lambido por 1141 almas esse mês

AUSTIN OSMAN SPARE.
(1909-1913)

TRADUÇÃO DE ROGÉRIO BETTONI.
OFICINA PALIMPSESTUS, 2021.

Esta tradução, realizada por Rogério Bettoni e publicada em 2021 no livro Arte e magia do caos: obra reunida de Austin Osman Spare, foi gentilmente cedida pela Oficina Palimpsestus para publicação exclusiva no Morte Súbita Inc. Trata-se da primeira tradução “oficial” (isto é, profissional) de um texto de Austin Osman Spare para a língua portuguesa.

Os direitos autorais desta tradução são protegidos nos termos da Lei  — você não pode reproduzi-la, disponibilizá-la ou comercializá-la por nenhum meio e para nenhum fim. Trechos podem ser citados, desde que fornecida a fonte completa, incluindo o nome do tradutor:

Austin Osman Spare. “O livro do prazer (amor-de-si): a psicologia do êxtase”. Tradução de Rogério Bettoni. Em: Arte e magia do caos: obra reunida de Austin Osman Spare. Organização de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Oficina Palimpsestus, 2021.

Sumário

NOTA DA TRADUÇÃO

(Atualizada para Morte Súbita Inc.)

Quando se fala em traduzir Austin Osman Spare, parece que somos rodeados de imediato por uma névoa que tudo ofusca — pela vibração, alimentada há décadas, de que Spare seria “intraduzível”, “difícil demais para ser compreendido”, “complexo demais para ser apreendido” até mesmo por pessoas que têm o inglês britânico como língua nativa. Se pensarmos que a tradução é apenas uma atividade que busca transpor ideias e palavras de uma língua para a outra, qualquer texto pode ser enquadrado nesse limbo da intraduzibilidade, solo fértil de discussões anacrônicas há muito superadas, que só contribuem para o demérito da atividade tradutória, como se o texto de origem fosse intocável e inatingível.

Mas é fato que existem traduções e “traduções”, e que a dita impossibilidade da tradução jamais impediu que textos fossem vertidos de uma cultura para outra. A tradução faz parte da dinâmica da existência tanto quanto falar na própria língua. É pela tradução que o diálogo entre os povos se estabelece, e que a maioria esmagadora de leitores toma conhecimento de uma obra estrangeira. Desse modo, o critério adotado aqui considera uma boa tradução aquela que busca gerar no leitor a sensação mais próxima possível da que teria o leitor da língua de partida. Isso requer a consideração do texto como um material vivo, repleto de camadas, inserido em um contexto cultural específico e criado por uma individualidade: o autor. Muitas coisas de O livro do prazer se esclarecem no decorrer da própria obra; outras, pelo conteúdo de outros livros; e outras, ainda, quando observamos sua obra de arte. O que se traduz, portanto, são culturas.

Traduzir Spare será um desafio para qualquer pessoa que se coloque nessa tarefa, pois a escrita do autor subverte: sua única lei é não ter lei. Há passagens claras e cristalinas, mas também há trechos que parecem ter sido escritos em transe, como se a velocidade da escrita não acompanhasse o fluxo do pensamento. Há palavras que não são mais usadas, que já estavam obsoletas na época de Spare ou que hoje têm um sentido totalmente novo e diferente. Há ainda o uso arbitrário de travessões, que por vezes servem para elucidar algo que acabou de ser dito, mas também para acrescentar apostos, mudar vozes ou simplesmente distanciar ideias opostas. E ainda ambiguidades, muitas ambiguidades. Ignorá-las ou “resolvê-las”, optando por uma opção em detrimento de outra, de acordo com valores meramente interpretativos ou ideológicos, seria desprover o texto do estilo marcante do autor.

Uma bibliografia abrangente foi consultada durante esta tradução, e a lista completa pode ser vista no meu ensaio “Nem uma vida nem outra”, no começo desta edição. Mas vale mencionar aqui um título específico: C. J. Chibnall, The Book of Pleasure in Plain English (Somerset: Green Magic, 2014). Nele, o autor reescreve o texto de Spare numa linguagem mais fluida. Embora contenha equívocos e extrapolações, esse material ajudou a esclarecer algumas passagens complexas.

Todas as notas de rodapé são do tradutor/editor. Além de contextualizar determinados eventos, elas visam estabelecer relações com fontes primárias de Spare, ou aludir a questões e referências que muito provavelmente faziam parte do ambiente cognitivo de seus leitores naquela época. Para seguir o estilo de diagramação da primeira edição do livro, as notas do autor foram levadas para as margens laterais, o que acabou se mostrando uma escolha feliz: essas anotações parecem ter sido feitas por Spare depois que a matriz tipográfica de impressão já estava pronta, o que acabou conferindo à edição original um certo charme, que se optou por manter aqui.

Sobre a terminologia de AOS, cabem algumas observações breves.

O uso de maiúsculas para elucidar conceitos é arbitrário em toda a obra de Spare. A inicial maiúscula, portanto, foi mantida apenas nos casos em que se trata claramente de um princípio ou conceito. O termo “si-mesmo” traduz “self”, então sempre que estiver hifenizado estará aludindo ao conceito. A preferência por “amor-de-si” em detrimento de “autoamor” como tradução de “self-love” é nítida: “autoamor” não traz a carga reflexiva necessária — o “si-mesmo” sai de cena. O mesmo princípio foi usado para traduzir outros termos em que o papel do “self” se faz fundamental na compreensão.

No pensamento de Spare há uma estrutura de base entre “crença” (belief), “desejo” (desire) e “vontade” (will). Essa diferenciação se fez presente em todo o texto, com atenção especial aos seus sinônimos e termos correlatos, como “anseio” (wish), “ímpeto” ou “impulso” (urge), “necessidade” (need), “precisar” (to need), “querer” (to want). Conceitos importantes e polissêmicos, como “concepção” (conception), “conceber” (conceive) e “exaurição” (o ato de “esgotar” uma crença: exhaustion) tiveram sua polissemia mantida, uma vez que ela se esclarece bem no próprio texto.

Por fim, optou-se por usar “subconsciente” (subconscious) para deixar bem marcado que o pensamento de Spare está inserido num momento histórico em que a psiquiatria e a psicanálise faziam grandes avanços, e esse era o termo usado na época. Com o tempo, a palavra deu lugar a “inconsciente” (unconscious), que é o termo preferido hoje na área. Ficará claro, no entanto, tanto nas notas quanto no ensaio sobre o autor no começo do volume, que as ideias de Spare são anteriores a Freud, quando o que costuma se pensar é o contrário. Traduções são palimpsestos, e foram necessários quatro anos para que o palimpsesto-livro-do-prazer chegasse ao formato aqui apresentado, composto de tantas camadas que perdi a conta —uma versão que considero adequada, mas que está longe de representar, e nem pretende ser, a versão “pronta” ou “final”. Nunca se finda traduzir Austin Osman Spare.

Rogério Bettoni

INTRODUÇÃO

A obra de arte que amamos é aquela que, como uma frase dita pela srta. Mountstuart, de Meredith,[1] tem um contorno na ambiguidade e é lançada no mundo para ser apreendida, não dissecada. É justificada nossa desconfiança de explicações e rótulos, mas, após o encanto inicial, é interessante examinar os objetivos e métodos do artista, bem como apreciar o pensamento por trás deles.

Em seu primeiro livro de desenhos, o caótico e impressionante Terra Inferno (1905), Austin Osman Spare nos traz explicações que, quando não acrescentam consideravelmente ao nosso encanto pela vitalidade da obra, dificilmente podem ser desassociadas dos desenhos e certamente aumentam nosso interesse pela personalidade do criador. Seu segundo livro, Livro dos sátiros (1907), tinha como base o enunciado pictórico, e embora sua técnica tenha nitidamente evoluído, e a concepção do material seja mais madura, não é algo que nos satisfaz totalmente à primeira vista. Desde a publicação desses dois títulos, o trabalho de Spare progrediu, de modo que as melhores qualidades dessas obras se mesclaram e se ampliaram, resultando na produção de ilustrações como “Postura de morte” (frontispício). Nessa relação, não seria nada inadequado citar minhas anotações[2] sobre uma das mais importantes exposições realizadas por ele recentemente — refiro-me à que ocorreu em 1911 na Galeria Baillie, Bruton Street, Londres:

O homem que dava forma aos nossos vagos pensamentos e que evocava e simbolizava ideias abstratas de modo pictórico, provavelmente cumpre sua tarefa com um equipamento técnico muito completo — do contrário, já começaria como um convite ao fracasso. Se ao olharmos alguns de seus desenhos a grafite nos indignamos com a abundância tão arrojada e criativa no que parece a princípio uma revelação incoerente, basta olharmos para um desenho como “A psicologia do êxtase”[3] para lá vermos uma obra completa, cuja ausência de elementos supérfluos dá origem a uma vitalidade tão precisa e concentrada que nos satisfaz de imediato, ainda que porventura possamos nos sentir confusos em relação ao seu significado, o qual, sob um olhar mais atento, emana alguns de seus segredos. Se pensarmos na maioria dos desenhos, não ficaríamos felizes por termos tido a oportunidade de observar o nascimento de suas ideias pictóricas? Não nos deleitaríamos em formas que brotam de outras formas, linhas que saltam do papel como chamas?

Uma única crítica faríamos a Spare: ele nos deu demais, e não fomos capazes de digerir tudo! Agora ele nos serve com este livro mágico, desenhos que podem ser vistos como explicações de seu texto — seu credo —, e embora alguns possam claramente se interessar pela revelação do funcionamento da mente do artista, outros podem, com essa mesma revelação, perceber a si mesmos com mais clareza e se sentirem movidos a seguir o caminho de Spare para uma vida mais alegre, para o prazer (amor-de-si), que dá título ao livro e pode ser interpretado como o êxtase da completa realização-de-si.

Acrescento algumas palavras de agradecimento a esse autor-artista pela gentileza de me dar a oportunidade de escrever esta breve nota. Com a esperança de que o livro possa aumentar, em alguma medida, a apreciação de seu trabalho, passo a palavra para meu amigo.

Setembro, 1913

Ernest H. R. Collings

[NOTA: Ao preparar este livro para publicação, algumas alterações se fizeram necessárias no último momento. Como consequência, omitiram-se uma introdução e um retrato de Daniel Phaer, bem como os emblemáticos retratos de Ernest H. R. Collings e os seguintes capítulos e ilustrações correspondentes: “O banquete dos suprassensíveis”, “Modus operandi no deleite do banquete da Távola Redonda”, “Profecia, prenúncios etc.”, “O livro da revelação”, “Definições”, “Sonhos”, “Estados mentais em relação à sugestão”, “Descrição das sensações e emoções”, “Controlando os elementos”, “Magia negra com proteção”, “A missa negra”, “Vampirismo”, “Feitiçaria”, “Oráculos etc.”, “Superstições”, “Excitação para o amor etc.”, “Uso de feitiços e encantamentos em homens, animais etc.”, “Invocando elementais e espíritos da natureza para glamour e poder etc.”. Esse material deve aparecer posteriormente em uma edição completa. Agradeço a Ernest H. R. Collings por corrigir as provas desta edição. Algumas cópias de Terra Inferno (1905) e O livro dos sátiros (1907) ainda estão disponíveis.

— A.O. S., setembro de 1913.]

DEFINIÇÕES

As palavras Deus, religião, fé, costumes, mulher etc., consideradas como formas de crença, são usadas para se referir a diferentes “meios” de controlar e expressar o desejo: uma ideia de união, que se dá por uma ou outra forma de medo e acaba por resultar na sujeição a limites imaginários, ampliados pela ciência que, a um custo muito alto, acrescenta à nossa altura um

mero centímetro — nada mais.

Kia: é a liberdade absoluta que, justamente por ser livre, é vasta o suficiente para abarcar a “realidade”. É livre a qualquer tempo; portanto, não se torna manifesta, tampouco potencial (exceto como possibilidade imediata), por ideias de liberdade ou “meios”, mas pelo ego que se liberta para recebê-la, por ser livre das ideias sobre ela e por não acreditar. Quanto menos é dito de Kia, menos obscura ela se torna. Lembre-se de que a evolução ensina, e por punições terríveis, que a concepção é a derradeira realidade, mas não é a derradeira libertação da evolução. Virtude: pura arte.

Vício: medo, crença, fé, controle, ciência e semelhantes.

Amor-de-si: estado mental, disposição ou condição que se origina na emoção do riso e se torna o princípio que confere ao ego apreciação ou associação universal, permitindo que essa inclusão seja anterior à concepção.

Exaurição: estado de vacuidade provocado pelo esgotamento de um desejo por algum meio de dissipação quando o estado mental corresponde à natureza do desejo, isto é, quando a mente se preocupa com a não-realização do desejo e busca alívio. Apreender esse estado mental e vital resulta em uma vacuidade sensível às sutis sugestões do sigilo.

DIFERENTES RELIGIÕES E DOUTRINAS COMO MEIOS PARA O PRAZER, A LIBERDADE E O PODER

Existe algo em que acreditar, a não ser o si-mesmo? O si-mesmo é a negação da completude enquanto realidade. Homem algum em época alguma já viu o si-mesmo. Somos aquilo em que acreditamos e somos o que o ato de acreditar implica na concepção ao longo do tempo; a criação é causada por essa sujeição à fórmula.

As ações são expressões de ideias que estão atadas às crenças; essas ideias, por serem inerentes, são obscuras, sua operação é indireta, e elas facilmente escapam à introspecção. Os frutos da ação são duplos: Céu ou Inferno, Purgatório ou Indiferença. No Céu há desejo, como pelas mulheres. Já o Inferno é o desejo intenso. O Purgatório, unidade dos dois, é expectativa adiada. A Indiferença, ou Nada, é a decepção até a recuperação. Em verdade, Céu e Inferno são uma e a mesma coisa. Aquele que busca o prazer sabiamente, ao perceber que eles são “diferentes graus do desejo” e nunca desejáveis, renuncia tanto ao vício quanto à virtude e se torna um kiaísta. Montado no tubarão de seu desejo, ele cruza o oceano da dualidade e se lança no amor-de-si.

As religiões são projeções vindas da incapacidade, fantasias vindas do medo, são a superfície envernizada da superstição de que o paradoxo é uma verdade[4]* — amiúde, ela é a ornamentação da imbecilidade. Aparece como uma virtude na ideia de que maximizar o prazer ao menor custo equivale a nos redimir e nos perdoar dos nossos pecados — isso é nada mais que um cerimonial, a expressão, com o uso de fantoches, de um medo dominante. Sim! O que tu determinaste na tua religiosidade é a tua própria tormenta, por mais que imaginária! A perspectiva não é agradável; isso é o que tu ensinaste a ti mesmo! Tornou-se algo congênito, e teu corpo é sensível.

Alguns louvam a ideia de fé. Pensam que acreditar que são deuses (ou qualquer outra coisa) os tornaria deuses — mas o que provam por tudo que fazem é que estão plenos de não-crença. Melhor é admitir a incapacidade ou insignificância do que reforçá-la pela fé, uma vez que a fé superficial “protege”, mas não realiza nenhuma mudança no vital. Portanto, rejeite a primeira em prol da segunda. A fórmula dessas pessoas é o engano, e elas estão iludidas, o que é a negação de seu propósito. A fé é negação, e sua metáfora a idiotice, por isso ela sempre falha. Para garantir uma servidão mais segura, os governos forçam a religião goela abaixo de seus súditos, o que sempre dá certo; poucas são as pessoas que escapam, por isso elas são mais honradas. Quando a fé perece, o “si-mesmo” atinge seu potencial. Outras pessoas, menos insensatas, encobrem a memória de que Deus é uma concepção delas mesmas e que, como tal, está sujeito à lei. Portanto, será assim tão desejável essa ambição pela fé? Falando por mim, eu nunca vi um homem sequer que já não seja Deus.

E outros ainda, embora dotados de muito conhecimento, não conseguem dizer exatamente o que é a “crença” ou como acreditar no que desafia as leis da natureza e a crença existente. Decerto não é dizendo “eu acredito” — essa arte há muito se perdeu. Eles estão ainda mais sujeitos à perplexidade e à distração tão logo abrem a boca cheia de argumentos; se sentem sem poder e infelizes exceto quando dedicados a espalhar sua própria confusão; e para que seus argumentos ganhem em convicção, precisam adotar dogmas e maneirismos que excluem possibilidades…

Parecem obter um conhecimento iluminado, mas perdem em realização. Já não os vimos decair na proporção daquilo que expõem? A bem da verdade, o ser humano não pode acreditar pela fé nem ganhar nada por ela, tampouco explicar seu conhecimento que não tenha nascido de uma nova lei. Se somos todas as coisas, por que a necessidade de imaginar que não somos?

Sê tu místico

Outros acreditam na prece… ainda não aprenderam que pedir é o mesmo que ter o pedido negado? Que essa seja a raiz do teu Evangelho. Ah, tu, que estás vivendo a vida de outras pessoas! A menos que o desejo seja subconsciente, ele não é realizado — não mesmo, não nesta vida. Então, de fato, melhor entregar-te ao sono que à prece. A quiescência é desejo oculto, uma forma de “não pedir”; assim o feminino muito obtém do masculino.[5] Utiliza a prece (se tiveres de orar) como meio de exaurição e assim obterás teu desejo.

Alguns tentam mostrar a semelhança entre diferentes religiões; com isso eu demonstro a possibilidade de uma ilusão fundamental, algo que eles nunca percebem — um decreto radical do qual eles mesmos são o escárnio, pois se arrependem de muita coisa! Eles sofrem mais conflitos do que quem não tem conhecimento. E tudo que conseguem identificar com suas ilusões eles chamam de verdade. Jamais percebem essa semelhança e a quintessência das religiões, sua própria pobreza de imaginação e a dissimulação das religiões. Melhor é demonstrar as diferenças essenciais entre as religiões, tanto quanto saber de seus meios: o objetivo deles não é enganar e controlar? Certamente, então, para conquistar o transcendental, Deus e a religião não ajudam em nada.

Alguns enaltecem a assim chamada verdade, mas dão a ela muitos receptáculos. Falam de sua relação e paradoxo, da canção da experiência e da ilusão, esquecendo-se de que há uma dependência — o paradoxo não é a “verdade”, mas a verdade de que qualquer coisa pode ser verdadeira por algum tempo. Do que suprassume o paradoxo e o que nele há de “não-necessário” eu farei o fundamento do que ensino. Determinemos a base da discussão: a “verdade” não pode ser dividida. Somente o amor-de-si não pode ser negado, e permanece amor-de-si quando paradoxal e sob quaisquer condições — por si só é verdade, completo, sem nenhum acessório.

Outros enaltecem a magia cerimonial e supostamente experimentam muito êxtase! Nossos manicômios estão superlotados, o palco foi invadido e está abarrotado! É simbolizando que nos tornamos o simbolizado? Se eu me coroasse rei, seria eu um rei? Prefiro ser objeto de aversão e pena. Esses magistas, cuja insinceridade é sua segurança, não passam de dândis desempregados dos bordéis. A magia nada mais é que a habilidade natural de atrair sem pedir; cerimônia genuína, sem afetação, cuja doutrina é a negação da deles. Eu conheço bem a eles e ao credo que professam, que ensina o medo de sua própria luz. Vampiros, são verdadeiros piolhos no que se refere à atração. Suas práticas provam sua incapacidade, eles não têm magia para intensificar o normal, a alegria de uma criança ou de uma pessoa doente, nem para evocar o prazer ou a sabedoria a partir de si mesmos. Seus métodos dependem do lamaçal da imaginação e de condições caóticas, seu conhecimento é adquirido com menos decência que a de uma hiena em busca de alimento. São menos livres, e a satisfação que obtêm não se compara à dos mais desprezíveis dos animais. Condenados por si mesmos à sua gordura repulsiva, esvaziados de poder, não possuem sequer a magia do charme ou da beleza pessoais — são ofensivos em seu mau gosto e barganham por propaganda. A liberdade da energia não é obtida escravizando-a; tampouco grandes poderes são obtidos pela desintegração. Não é pelo fato de nossa energia (ou matéria mental) já ter ultrapassado seu limite e estar dividida que nós não somos capazes, muito menos mágicos?

Alguns acreditam que toda e qualquer coisa é simbólica, que pode ser transcrita e explicar o oculto, mas simbólica daquilo que não conhecem (grandes verdades espirituais?). Então argumentam por metáforas, confundindo cuidadosamente o óbvio de modo a desenvolver alguma virtude oculta. Essa obesidade desnecessária de símbolos, por mais que impressione, também não é repugnante? (O elefante é excessivamente grande, mas extremamente poderoso; e o porco, por mais que repulsivo, não gera o desprezo do nosso bom gosto.) Se um homem não for herói para seu servo, muito menos permanecerá místico aos olhos do curioso — a semelhança leva à imitação. Decora tua intenção, por mais questionável que seja (como fato), somente depois de teres mostrado tua honestidade. A verdade, ainda quando simples, não precisa de um argumento que a torne difícil e obscura; seu puro simbolismo abarca todas as possibilidades como desígnio místico. Assume tua postura com bom senso e incluirás a verdade que não pode mentir: não há argumentação que prevaleça contra isso. Proposições perfeitas não requerem alteração, e o que é inútil perece.

Eles rejeitam todo o simbolismo moderno[6] e muito rapidamente atingem o limite do absurdo. Não levam em conta a mudança[7] e a natureza (por vezes arbitrária) do simbolismo, ou a possibilidade de uma loucura preservada. Por adotarem no presente uma leitura dos símbolos tradicionais sem nenhuma ciência, seu simbolismo é caótico e sem sentido. Sem conhecer os significados originais, eles conseguem, com essa confusão, projetar sua própria mediocridade como se estivessem explicando os símbolos antigos. Crianças são mais sábias que isso. Esse conglomerado de decadente antiguidade somado à doença da ganância certamente não seria uma chance à caridade? Esquece essas ideias enganosas, aprende a melhor tradição observando tuas próprias funções e as funções modernas de maneira imparcial.[8]

Alguns enaltecem a crença em um código moral, que eles transgridem natural e continuamente sem nunca alcançarem seu propósito. Dada a natureza correta, eles são muito bem-sucedidos em governarem a si próprios e estão entre as pessoas mais saudáveis, sãs e satisfeitas consigo mesmas. Poderíamos dizer que isso é a negação da minha doutrina — eles obtêm uma satisfação tolerável, enquanto a minha é completa. Que pare por aqui quem não tiver forças para a grande obra — na liberdade, poderá se perder. Já vocês, humildes, podem abrir as asas!

Outros dizem que somente o conhecimento é eterno, mas ele é a eterna ilusão do aprendizado — a determinação de aprender o que já sabemos. No momento exato em que perguntamos “como”, já induzimos a estupidez. Sem essa concepção, o que haveríamos de não conhecer e realizar?

Outros defendem a concentração — ela não liberta ninguém, pois a mente que concebe a lei é escravidão. Ao se atingir a concentração, tudo que se quer é a des-concentração. A dissociação de todas as ideias menos uma não é libertação, mas realização imaginativa, ou a fúria da criação.

Outros, ainda, acreditam que todas as coisas emanam do espírito divino, como raios emanam do Sol — viria daí a necessidade de libertação? A bem da verdade, as coisas se tornam necessárias por meio da concepção e da crença que delas temos. Então, que destruamos ou mudemos a concepção e esvaziemos a crença.

Afirmo que essas e muitas outras doutrinas são perpetuadoras da ilusão e do que se considera pecado. Para sua própria satisfação, todas elas dependem de uma implicação desordenada, que obscurece a dualidade da consciência, embora evoluam dessa dualidade. Se todas essas pessoas vissem os frutos de suas ações e prazeres, o medo as faria vomitar sangue. Elas acreditam em doutrinas amplamente diferentes, cuja base é o mesmo princípio de dualidade, e são parasitas necessárias umas às outras. Como as drogas ou o bisturi do cirurgião, elas apenas reduzem ou, quando muito, removem um sintoma, mas não alteram ou removem a causa fundamental (a lei). “Ó Deus, tu és o ambiente estagnado.” Tudo é charlatanismo: essas religiões, cuja existência depende do próprio fracasso, são tão repletas de miséria e confusão — tudo que têm são argumentos multiplicados, e são plenas de argumentos tanto quanto são nocivas —, tão abarrotadas de supérfluos, tão estéreis de qualquer livre prazer nesta ou noutra vida, que não posso defender suas doutrinas. Seu critério para o deleite: a morte! Melhor seria para o ser humano renunciar a todas elas e abraçar seu próprio e invencível propósito. Ele não pode ir adiante, e essa é sua única libertação. Por ela, ele colocará o próprio prazer onde tiver vontade e encontrará satisfação.

A CONSUMIDORA DA RELIGIÃO

Kia, em sua manifestação transcendental e concebível

Quanto ao nome, não há nome que a designe.[9] Eu a chamo de Kia e não ouso reivindicá-la como sendo eu mesmo. A Kia que pode ser expressa por ideias concebíveis não é a eterna Kia, que consome toda a crença como fogo, mas o arquétipo do “si-mesmo”[10], escravo da mortalidade. Se tentasse descrevê-la, escreveria o que poderia ser — mas nem sempre é — chamado de “livro das mentiras”.[11] Uma “visão” aérea e heterodoxa dos princípios originários — uma visão que comunica pelo fortuito, de alguma maneira, que a verdade está em algum lugar. A Kia que pode ser vagamente expressa em palavras é o “Nem isto–Nem aquilo”,[12] o “eu” inalterado que está na sensação de onipresença, a iluminação transcrita simbolicamente no alfabeto do desejo, sobre o qual estou prestes a escrever. Sua emanação é sua própria intensidade, mas não é necessária, pois ela existiu e sempre existirá, um todo virgem — por sua exuberância ganhamos existência. Quem ousa dizer onde, por que e como ela se relaciona? O cético habita seus próprios limites pela maneira como lida com o tempo. Não relacionada a nada, mas permitindo tudo, ela escapa a qualquer tentativa de concepção, embora seja a quintessência da concepção uma vez que permeia o prazer no significado. Sendo anterior ao Céu e à Terra em seu aspecto que os transcende, mas não a inteligência, ela pode ser considerada o princípio sexual primordial, a ideia de prazer no amor-de-si. Somente aquele que alcançou a postura de morte pode apreender essa nova sexualidade e a satisfação de seu amor onipotente. Aquele que é o eterno servil da crença, por isso tolhido pelo desejo, se identifica com a crença e consegue ver apenas suas infinitas ramificações nas insatisfações.[13] Essa sexualidade, progenitora-de-si e de todas as coisas, mas que não se assemelha a nada, incorpora o perene em sua simplicidade primitiva. O tempo não a modificou, por isso eu a chamo de “nova”. Esse princípio sexual ancestral e a ideia de si-mesmo são uma coisa só — nessa uniformidade estão sua demanda e suas possibilidades infinitas, dualidade primordial, mistério dos mistérios, esfinge nos portões de toda a espiritualidade. Todas as ideias concebíveis começam e terminam na luz de sua emoção, o êxtase induzido pela criação da ideia do si-mesmo. A ideia é a de unidade pela fórmula do si-mesmo, e sua realidade é necessária enquanto continuidade — a questão da existência de todas as coisas, todo o universo visível e invisível, provém dela. Como unidade que se concebeu dualidade, gerou-se trindade, gerou-se tetragrammaton.[14] Sendo a dualidade uma unidade, ela também é o tempo, o complexo da concepção, eterna refluência e retorno à realidade primeva em liberdade. Sendo trindade de dualidades, ela é também os seis sentidos, as cinco facetas do sexo — projetando-se como ambiente da assimilação-de-si na negação, como sexualidade plena. Sendo um tetragrama de dualidades, o complexo humano se configura como dodecaforme e pode ser chamado de os 12 mandamentos daquele que crê. A unidade imagina o decimal eterno, com sua multiplicidade abarcando a eternidade, da qual nascem as formas múltiplas que constituem a existência. Vivificada pelo sopro do amor-de-si, a vida é cônscia do um. Sendo o si-mesmo sua força antagônica, alternadamente há conflito, harmonia, vida e morte. Esses quatro princípios são uma e a mesma coisa — a concepção considerada como um “si-mesmo” completo ou consciência, daí poderem se mesclar numa unidade e serem assim simbolizados:     Uma forma feita por duas, que é triforme e tem quatro direções.

A lei transcendental, a lei e o testamento do “novo”

A lei de Kia é seu próprio árbitro, está além da força da necessidade. Quem pode apreender a inominável Kia? Óbvia, mas ininteligível, sem forma, mas seu arranjo é da mais alta excelência. Anseia a própria superabundância — quem pode afirmar seu misterioso propósito? Pela ação do nosso conhecimento ela se torna mais obscura, mais remota, e a nossa fé a torna opaca. Ela não tem atributos, e eu não sei seu nome. E como é livre, sem a necessidade de nenhuma soberania! (Os reinados são seus próprios despojadores.) Sem linhagem, quem ousa reivindicar alguma relação com ela? Sem virtude, como é aprazível em seu moral amor-de-si! Como é poderosa em sua afirmação do princípio “não precisa ser, não importa”!

Em sua completa perspectiva, o amor-de-si serve a seu invencível propósito de êxtase. O seu equilíbrio é um enlevo supremo que simula a oposição. Não sofre nenhuma dor, tampouco se esforça. Ele não atrai a si mesmo e é independente? Certamente não poderíamos chamá-lo de equilíbrio. Se pudéssemos imitar sua lei, toda a criação, sem nenhum comando, se uniria e serviria ao nosso propósito em prazer e harmonia.

Como Kia transcende a concepção, é imutável e inexaurível — não é preciso nenhuma iluminação para vê-la. Se abrimos a boca para falar dela, não falamos dela, mas da nossa própria dualidade, por mais poderosa que seja em sua simplicidade inicial. Kia, sem conceber, produz seu ponto de contato como a plenitude da criação. Mesmo sem afirmação, ela é a energia mais poderosa; mesmo sem pequenez, ela parece ser a menor entre as coisas. Nós a possuímos sem pedir, porque, sendo livre, ela é a única coisa de fato livre. Sem distinção, ela não tem preferências, mas nutre a si mesma. Movida pelo medo, toda a criação lhe presta homenagens, mas não a enaltece em termos de princípios morais, de modo que tudo, ao perecer, perece de uma maneira nada bela. Nós dotamos a nós mesmos com o poder que concebemos dela, e ela age como mestra, nunca como causa da libertação.[15] É sempre a partir do si-mesmo que conformo Kia, e ela, mesmo sem forma, pode ser considerada a verdade. Dessa comunicação se faz uma prisão, e não é pela inteligência que nos libertamos. A lei de Kia é sempre seu propósito original, indeterminado, sem nenhuma alteração em suas emanações, que se materializam e se definem por aquela dualidade — o ser humano tira sua lei dessa refração, suas ideias-realidade. Com o que ele equilibra seu êxtase? Paga na mesma medida com intensa dor, tristeza e sofrimento. Com o que equilibra sua rebeldia? Inevitavelmente com a escravidão! A dualidade é a lei, e a realização pela experiência estabelece relações e oposições por unidades de tempo. O êxtase, durante qualquer intervalo, é algo difícil de obter e requer um trabalho pesado.

Vários níveis de sofrimento que se alternam com rajadas de prazer e de emoções menos aflitivas parecem ser a condição da consciência e da existência. De uma forma ou de outra, a dualidade é a consciência enquanto existência. Ela é a ilusão de tempo, tamanho, entidade etc. — o limite do mundo. O princípio de dualidade é a quintessência de toda a experiência, e nenhuma ramificação exagera sua simplicidade primordial, pois pode apenas ser sua repetição, modificação ou complexidade — sua evolução nunca se completa. Não pode ir além da experiência do si-mesmo, então retorna e se une de novo e de novo, para sempre um anticlímax. Sua evolução é o retorno constante à sua simplicidade original através de uma complexidade infinita. Homem algum haverá de entender seus porquês observando seu funcionamento. Saibas que a dualidade é a ilusão que abarca o aprendizado de toda a existência. Kia pode ser considerada a mãe de todas as coisas, a mais antiga que não fica mais sábia. Portanto, acredites que toda a experiência é uma ilusão, essa é a lei da dualidade. Assim como o espaço permeia um objeto por dentro e por fora, dentro e fora desse cosmos em constante mudança, há esse princípio incomparável.

SOLILÓQUIO SOBRE A DIVINDADE[16]

Quem já pensou assim?

Algo causa dor e algo energiza a agonia: não seria essa causa a ideia de enlevo supremo? E essa eterna expectativa, esse acúmulo de ornamentos sobre algo que se deteriora, esse pensamento que sempre perdura — não seriam coincidentes ao vazio que precede a morte? Ó pensamento sórdido vindo da mais mórbida melancolia, como posso te assimilar e salvar minha alma? Ao que ele sempre respondia: “Preste homenagem ao que é devido: o médico é o Senhor da Existência!” A medicina, essa superstição — ela não é a essência da covardice, agente da Morte?

*     *     *     *     *

Não é estranho que ninguém se lembre de ter morrido? Tu já viste o Sol? Se sim, então não viste nada morto, embora tua crença seja diferente! Quem está mais morto, “tu” ou este cadáver? Qual de vocês tem o nível mais alto de consciência? A julgar apenas pela expressão, quem entre vocês parece apreciar mais a vida? Essa “crença” na morte não poderia ser a “vontade” que intenta a morte para tua satisfação, mas que não pode te dar mais do que sono, decadência, mudança — inferno? Esse sonambulismo constante é “o insatisfatório”.

*     *     *     *     *

Então tu descrês de fantasmas e de Deus porque nunca os viste? Sério? Tu nunca viste os fantasmas zombeteiros das tuas crenças — o maluco risonho da tua modéstia, ou Mamon, ou tuas grotescas ideias de “si-mesmo”? Sim, tuas próprias aptidões e tuas mais corajosas mentiras são deuses! Quem haveria de ser o assassino de teus deuses senão um deus?

*     *     *     *     *

Não existem provas de tua existência anterior? Quanta desculpa! Ninguém voltou para nos contar? Que argumento idiota! Tu nada mais és do que aquilo que já foste — agora modificado de alguma maneira? Tu és o caso prima facie de que talvez tenhas reencarnado para nada? “Talvezes” são possibilidades! Tu consegues fazer diferente do que fazes? Jamais me cansarei de dizer que constantemente tu fazes diferente!

*     *     *     *     *

 

Qual é a “feiura” que ofende? É o vago conhecimento de que um dia tu terás de mudar de ideia — de que tu estás germinando tudo que conténs? Tu estás sempre a te lembrares daquilo que esqueceste — será hoje o dia do juízo final, de acreditar à força naquilo que desacreditaste? Ora, se hoje é o ontem exceto pelas aparências, então amanhã também é o hoje — o dia do declínio! Diariamente o universo é destruído, por isso tu és consciente! Não existe Vida nem Morte? Essas ideias seriam trágicas se não fossem cômicas!

Não existe dualidade?

Tu tens consciência da alegre borboleta que observas e tens consciência de que és “tu”; a borboleta tem consciência de ser “si mesma” e, como tal, tem uma consciência tão boa e igual à tua — isto é, de tu ser “tu”. Desse modo, esse “tu” que ambos sentem ser e do qual têm consciência poderia ser o mesmo “tu”? Logo, vocês são uma e a mesma coisa — o mistério dos mistérios e a coisa mais simples de entender no mundo![17] Como poderias tu ser consciente daquilo que não és? Contudo, continuas a crer diferente disso! Então, se tu feres a borboleta, feres a ti próprio, mas a crença de que não te feres te protege de te ferires — por um tempo! A crença se cansa e tu acabas sordidamente ferido! Faz o que quiseres — a crença é sempre sua própria inconsistência. O desejo contém tudo, daí tu teres de acreditar em tudo — se é que acreditas, afinal! A crença parece excluir o bom senso.

Não há dúvida disso: essa consciência de “tu” e “eu” é uma tortura inoportuna e constante — mas não precisa ser, de modo nenhum! Não teria essa questão a ver com temor? Tu temes entrar no covil dos tigres? (E eu garanto que é uma questão de justiça — nata ou cultural — se tu entras voluntariamente ou és jogado lá dentro, e se sais vivo ou não!) Todos os dias, no entanto, tu entras destemidamente em covis habitados por criaturas mais terríveis do que tigres e sais de lá ileso — por quê?

A alegoria

Os grandes cientistas estão decifrando propriedades letais de micróbios que eles descobriram que respiramos e que, segundo seus cânones, deveríamos destruir. Não deveríamos já ter morrido, então? Tenha fé! Os cânones da ciência são muito corretos, eles nunca decepcionam nossas dúvidas! Nossa maior familiaridade com eles, esse “impulso ao conhecimento”, certamente nos trará a doença e a morte que eles dão! E em compensação também nos dará seus poderes de destruição! Para a destruição de quem? As coisas serão resolvidas! É esse o valor da vontade? Essa “vontade de poder” — como ela preserva a vida! Como fomenta a seleção discriminativa! Que aprazível! Que nobres exploradores! Vamos lá, cientistas, continuem descobrindo o Poço do Abismo.[18] Quando se saturarem da ciência, o raio trovejará o assassínio? Nascerá uma nova esperança? Novas criaturas para o circo? A (concepção de) divindade sempre evolui em sua inércia para se transmutar em seu exato oposto — porque a divindade o contém!

Deve o mestre ser o triste aprendiz de sua estupidez?

A ideia de Deus requer o esquecimento constante de sua supremacia e piedade — para que então seja substituída pelo medo, não é? Não há mesmo nenhum ateu, ninguém que seja livre de sua autobiografia, nenhum impávido hedonista?

A concepção é a ausência de sua própria e incontestável realidade interna. Quando no esquecimento a concepção é lembrada, seria para vocês a chance de entender a realidade dela? Quando a prece (vocês estão sempre em prece) tiver se transmutado em blasfêmia é que vocês terão atração suficiente para serem ouvidos — e seu desejo será gratificado! Que salto mortal de humildade!

*     *     *     *     *

Quer Deus seja projetado exteriormente como mestre por meio do medo ou internamente como se nos habitasse por meio do amor, nós somos deuses o tempo todo — por isso a divindade é sempre uma potência. Sua geração constante é adiamento eterno, é vida. A inveja do mestre ou do criador, igualmente a última esperança a se seguir, é também uma maneira de existir e perder a Vida!

Não existe fato científico, pois isso sempre implica seu oposto como fato idêntico — esse é o “fato”. Por que se importar, então, em provar qualquer coisa como fato?

Essa esperança vã de provar a finalidade é a morte em si, então por que enganar o Desejo? Vocês provaram (pela matemática!) que o Sol está a muitos milhões de quilômetros de distância a mais do que pensavam — agora é hora de melhorar-lhe a eficácia!

A natureza — impulso à antítese das suas verdades — não tarda a provar (pela matemática ou qualquer outra coisa) que o Sol sequer existe! Ou (se quiserem) provará conclusivamente que o Sol está a milhões e milhões de quilômetros mais distante ou a milhões e milhões de quilômetros mais perto do que imaginavam! Que extraordinária pensadora ela é! Esses e outros fatos já são conhecidos para a borboleta, o piolho, os insetos — e talvez para vocês? De quem são os sentidos verdadeiros — são os seus ou os das moscas-domésticas? Vocês acabarão adotando delas a visão, os pensamentos e a sabedoria — já não foram tais outrora? Vocês são tais agora, mas ainda não os despertaram — serão de novo tais em poder! Admirável progresso! Das realizações mais dignas de mérito! Das mais impiedosas! O progresso, e o que obtiverem dele, será examinado pela conveniência da ciência.

Um pensamento a título de perspectiva: vocês são sempre aquilo que mais desejam — o prospectivo! Seu desejo é viver de acordo com seu desejo, e isso estão sempre a realizar! Que sensação nobilíssima — vocês já são “isso”, “o satisfeito”, “o indesejoso”, “a coisa real”! Estão inebriados disso.

Não há ilusão que não seja a consciência! Essa consciência é sempre o sorridente monumento para comemorar se vocês “realmente aproveitaram a vida”!

*     *     *     *     *

O deus da Vontade é o comando para obedecer, todos temem a espada de sua justiça — ela é a recompensa que vocês recebem por obedecer! A Vontade é o comando para acreditar, sua vontade é aquilo em que acreditaram querendo ativamente a crença para si próprios! Vocês pensam somente quando ela quer! A Vontade é uma complicação, o meio de um meio. Quer a chamem de livre ou não, para além da vontade e da crença está o amor-de-si. Não conheço nome melhor. O amor-de-si é livre para acreditar no que deseja. Vocês são livres para acreditar em nada relacionado à crença. A Verdade não é difícil de entender — a verdade não tem vontade, e a vontade não tem verdade! A verdade é que a vontade jamais acreditou ter verdade! “Poderia ser” é a certeza imediata! Essa esfinge assombrosa nos ensina o valor da “vontade de algo”? Então não há risco mais grave que o Conhecimento Absoluto — se apenas um pouco de conhecimento já é perigoso, o que dizer da Onisciência? O poder onipotente não tem acessórios!

*     *     *     *     *

A ciência é a maldita dúvida de tudo que é possível — sim, de tudo que existe! Não se pode conceber uma impossibilidade: nada é impossível, vocês são o impossível! A dúvida é puro atraso, e como castiga! Nada é mais verdadeiro que nada! Vocês já responderam verdadeiramente o que não são?

*     *     *     *     *

Vocês tiranizam a si mesmos com a constância com que se esquecem daquilo de que se lembram; resistem aos objetos sensíveis e demonstram resistência às faculdades dos sentidos por acreditar ou não acreditar.[19] Essas faculdades são tão numerosas quanto os átomos que vocês não viram, e tão infinitas quanto o número um: elas ganham vida à vontade. Adotam algumas por vez, expressam conhecimento através delas e, se ao menos tiverem entendido sua própria gramática, aquelas que vocês repudiam falam mais que suas próprias palavras! Eu não acreditaria na sabedoria do Todo-poderoso.

A crença tem uma tentação própria, que é sempre crer de modo diferente. Como é possível vocês não acreditarem na liberdade, mas poderem ser libertados da crença? Tampouco acreditam na Verdade, mas não há por que se comprometer. O modo de vida não se dá pelos “meios” (estas doutrinas, minhas doutrinas), ainda que eles permitam que os que se denominam entusiastas sejam um arremedo da minha própria realização — que eu sempre ruborize com isso! O homem de dores[20] é o Professor! Eu ensinei — agora ensinarei de novo a mim mesmo ou a vocês? Mas nem por uma dádiva do Céu! A mestria se iguala à aprendizagem que se iguala à constante desaprendizagem! Todo-poderoso é aquele que não aprendeu, e poderoso é o bebê, que tem apenas o poder de assimilar!

O mais canhestro dos tolos agora pergunta: “Como podemos escapar às inevitáveis evoluções da concepção uma vez que tudo está sempre concebendo?” Minha resposta admite todos os meios, todos os seres humanos, todas as condições. Ouçam, ó Deus que são vocês, e contudo seriam Deus. Quando a mente se embatuca — ao mesmo tempo perplexa e silenciada —, a capacidade de tentar o impossível se dá a conhecer; por meio desse simples estado de “Nem isto–Nem aquilo”, o ego se torna o observador silente e toma conhecimento de tudo! O porquê e o como do desejo estão contidos no estado místico do “Nem isto–Nem aquilo”, e o bom senso mostra que se trata de um verdadeiro manancial criativo. Por mais rústico que eu seja, todas as minhas ideias (e todas as suas, amigos) vêm dali — mas eu sempre fui preguiçoso, um rapaz qualquer a ver os outros todo-poderosos antes de ver a si mesmo.

A POSTURA DE MORTE

Ideias conflitantes a respeito do si-mesmo não podem ser aniquiladas — é justamente por resistirem que elas são uma realidade. Nem morte nem astúcia podem superá-las, mas apenas reforçar sua energia. Os mortos renasceram de novo, e de novo repousam no ventre da consciência. Permitir que essas ideias amadureçam é pressupor sua deterioração, ao passo que não resistir a elas é o mesmo que regredir à simplicidade primordial e passar para a unidade originária sem nenhuma ideia. Dessa ideia se desenvolve a fórmula da não-resistência: “não importa, satisfaça a si mesmo”.[21]

A concepção “eu não sou”, devido à sua gramática, segue necessariamente a concepção “eu sou”, algo tão certo nesse mundo de dores quanto a noite se segue ao dia. O reconhecimento da dor como tal implica a ideia de prazer, e o mesmo ocorre com todas as ideias. Por meio dessa dualidade, lembre-se de rir o tempo todo, de reconhecer todas as coisas e não resistir a nada; assim não há conflito, incompatibilidade ou força da necessidade.

Transgredindo a concepção por meio de um simbolismo lúcido

O Homem implica a Mulher, eu transcendo ambos por meio do Hermafrodita, que por sua vez implica o Eunuco[22] — todas essas condições eu transcendo por um princípio de “Não isto”; e embora esse “Não isto” seja vago, o fato de concebê-lo prova sua tangibilidade e, outra vez, implica um “Não isto” diferente — ou seja, um “Não aquilo”.[23]

Mas o princípio “Nem isto–Nem aquilo”, junção dos dois anteriores, é o estado em que a mente ultrapassou a concepção e não pode ser comparada a nada, pois implica somente a si mesma. O princípio “eu” atingiu o estado de “não importa, não precisa ser” e não está relacionado à forma. Não existe outro estado além desse, portanto ele, por si só, é completo e eterno. Indestrutível, tem o poder para destruir — portanto ele, por si só, é liberdade e existência verdadeiras. Dele vem a imunidade contra toda dor, portanto o espírito é êxtase. Renunciando a tudo pelo processo demonstrado, busque abrigo nesse estado. Decerto não é a morada de Kia? Tendo atingido essa morada (mesmo que simbolicamente), teremos alcançado nossa libertação incondicional da dualidade e do tempo — acredite, pois é verdade. Com a crença livre de todas as ideias exceto o prazer, o karma (desprazer) rapidamente se exaure através da sua própria lei. Nesse momento além do tempo, ele[24] se torna o gratificador por sua própria lei — uma nova lei que se materializa, em que todo desejo é gratificado sem pagamento de dor. A nova lei se tornará o arcano da mística que não se compara a nada. No “não importa, não precisa ser”, não existe força da necessidade — “satisfaça a si mesmo” é seu credo.[25].

Não haverá sujeição nesse dia, mas deliberação — aquilo em que desejar acreditar pode ser verdade. Foi-me revelada a verdade por todos os sistemas — “ele”[26] se apraz desse arremedo, que é governar sem ser governado; Kia é o enlevo supremo. E isto, a gloriosa ciência de aprazer o próprio si-mesmo por meio de um novo entendimento, a arte do amor-de-si pelo reconhecimento, é a psicologia do êxtase pela não-resistência.

Ritual e doutrina

Deitado confortavelmente de costas, permita que o corpo expresse a condição de um bocejo, suspirando enquanto concebe pelo sorriso — essa é a ideia da postura. Esqueça o tempo e todas as coisas que antes eram essenciais e agora refletem a própria insignificância. Esse momento está além do tempo, e sua virtude já aconteceu.[27]

De pé na ponta dos dedos, com as mãos entrelaçadas atrás do corpo e os braços rígidos, estique-se ao máximo, inclusive o pescoço, e respire profunda e espasmodicamente, até sentir em ondas uma mistura de êxtase e leve vertigem — isso gera a exaurição e a preparação para o passo anterior.

Olhe para o seu reflexo até que a imagem fique indistinta e você não se reconheça. Feche os olhos (isso costuma acontecer involuntariamente) e visualize. Atenha-se à luz que vai surgir (sempre na forma de um X em curiosas evoluções) e mantenha-se firme até que não seja mais um esforço. Isso gera uma sensação de imensidão (que acompanha essa pequena forma) cujo limite é impossível alcançar. Este passo deve ser praticado antes de realizar o passo anterior. A emoção sentida é o conhecimento que lhe diz o porquê.

A postura de morte é a própria aceleração de sua inevitabilidade — através dela, escapamos à nossa interminável delonga causada pelo apego. O ego é arrastado para longe como uma folha num forte vendaval, e na velocidade do indeterminável, aquilo que está prestes a acontecer se torna sua verdade. Coisas que eram obscuras se tornam evidentes, uma vez que o ego se apraz por meio da própria vontade — saiba que isso é a negação de toda a fé ao simplesmente vivê-la, é o fim da dualidade da consciência. No lugar da crença, um estado de morte positivo — todo o resto é sono, um estado negativo: o corpo morto de tudo em que acreditamos, e despertará um cadáver. O ego, sujeito à lei, agora busca inércia no sono e na morte. Eis a postura de morte e sua realidade na aniquilação da lei — uma ascensão que se afasta da dualidade. No dia da lamentação sem lágrimas, o universo será reduzido a cinzas — mas o ego escapa ao Julgamento! E quanto a mim, o mais desafortunado dos homens? Naquela liberdade não existe a força da necessidade, o que eu haveria mais de dizer? Prefiro cometer muitos pecados a me comprometer.

Existem muitos exercícios preliminares, tantos quanto há pecados, todos fúteis por si sós, mas que conduzem aos mesmos meios. A postura de morte é a redução de toda concepção (pecado) ao estado de “Nem isto–Nem aquilo”, até que o desejo se torna contentamento pelo prazer. Somente por esses meios e nenhum outro é que se supera a inércia da crença, que se restabelece a nova sexualidade e que se alcança em liberdade o sempre original amor-de-si. Não se atinge a vacuidade primordial (da crença) pelo exercício de concentrar a mente na negação de todas as coisas concebíveis, identidade entre unidade e dualidade, caos e uniformidade etc., mas só ao fazer isso agora, não depois. Perceba e sinta sem a necessidade de um oposto, mas pelo que há de relacionado. Perceba a luz sem a sombra como contraste, mas pela própria cor, evocando a emoção do riso no momento do êxtase em união, e também pela prática até que a emoção se torne sutil e duradoura. A lei da reação é anulada pela inclusão. Se tivéssemos de experimentar uma centena de prazeres de uma única vez, por maior que seja o êxtase, não estaríamos perdendo, mas vivenciando um grande ganho. Pratique diariamente, portanto, até chegar ao centro do desejo, e assim terá arremedado o grande propósito. Desse modo, todas as emoções encontrarão um equilíbrio no momento em que emanarem até se tornarem uma. Assim, ao bloquear a crença e o sêmen da concepção, elas se tornam simples e cósmicas.[28] Não há nada que não possa ser explicado por meio dessa iluminação. Certamente eu encontro satisfação no êxtase. Revelei um segredo de grande importância, que eu vim a conhecer na infância. Com o próprio esforço obstinado para atingir a vacuidade da crença, tornamo-nos cósmicos o suficiente para habitar o íntimo de outras pessoas e apreciar sê-las. Poucas pessoas sabem no que realmente acreditam ou o que desejam — que comecem, então, caso queiram saber, localizando a crença até perceber a vontade. Embora formem uma dualidade, vontade e crença são idênticas no desejo. Mas, justamente por serem uma dualidade, não há controle, pois vontade e crença estão sempre em desacordo, e cada uma tenta moldar a outra de acordo com seus próprios fins. Nesse caso, nenhum dos lados vence, e o júbilo se torna uma fachada para a tristeza. Que os dois se unam, então.

INIMIGOS NEBULOSOS NASCIDOS DA AUTO-HIPNOSE ESTAGNADA

A crença natural é uma crença incitada pela intuição através daquilo que se experimenta ao reagir ou ser dominado; tudo tem de se associar por meio de uma emoção específica, estimulada por outras que estão em harmonia; as emoções discordantes perdem força e se retraem. Desse modo, por suas próprias operações, a crença é limitada e determinada para cada indivíduo. A maioria das nossas ações pode ser remontada a um desejo subconsciente (de liberdade) em conflito com o hábito, uma obediência a um fatalismo inerente que perdura nas ações “boas e más” já realizadas (em existências passadas) contra uma moralidade preservada.[29] A reação disso ganha expressão na forma de espontaneidade, involuntariedade, autonomia, deliberação etc., de acordo com a ocasião. O resto das nossas ações responde a uma doutrina moral tradicional e contraditória que já se constitui em nós (que serve parcialmente para controlar e determinar o momento dessa reação) e se origina na ideia do que na época era convenientemente considerado bom ou mau, para maximizar o prazer por meio de um compromisso arbitrário: ou abster-se do desejo temido ou realizá-lo. Sendo essa doutrina assimilada sob a pretensão de ter uma origem divina, seus preceitos são a recompensa por obedecer e a punição por transgredir, ambos se mantendo válidos o tempo todo (nesta ou na outra vida). Esse código moral é uma caricatura grotesca e dramatizada da faculdade conceptiva, mas jamais perfeita ou simples, pois não admite flexibilidade para modificações de qualquer tipo — assim ele se dissocia da evolução etc. e perde toda sua utilidade. Inevitavelmente, para poder se preservar e manter seus vínculos, ele desenvolve contradições ou complicações. Se transgredimos seus mandamentos, forjamos uma justificativa demonstrando a iniquidade deles; ou então criamos alguma desculpa ou razão para o pecado cometido, e fazemos isso distorcendo o código moral para que alguma incongruência apareça. (De modo geral, fazemos isso conservando alguns pecados imperdoáveis e uma lei tácita.) Essa confissão negativa é um falso racionalismo que permite desculpas ocasionais, um processo de autoengano para nos satisfazer e rapidamente nos convencer da nossa justeza. Quem entre nós tem qualquer desculpa exceto o amor-de-si? Nós não criamos ou professamos uma moral que seja conveniente, que sirva para crescer e permaneça simples, que permita a transgressão sem uma desculpa ou punição. Seria sábio e de bom senso fazer isso, quaisquer que sejam nossas circunstâncias mentais. A natureza sempre acaba por negar aquilo que afirma: pela associação permanente ao mesmo código moral, nós podemos ajudar o desejo a transgredir. O desejo das coisas negadas: quanto mais se reprime mais se peca; no entanto, o desejo igualmente deseja preservar o instinto moral, por isso o desejo é seu próprio conflito (por mais frágil que pareça). Não temas! O Touro da Terra há muito não tem nada a ver com consciência impura ou ideias morais estagnadas. Até o micróbio parece não ter medo.

A complexidade da crença (conhece a ti mesmo)

A natureza da crença se iguala a todas as possibilidades — verdadeiras, em última instância, devido a uma identificação cultural com a ideia de tempo. Então o que não é temporal não é verdadeiro, e o que não é verdadeiro é predição. Qualquer pensamento de alguma coisa implica a possibilidade de outro que o contradiz, embora não seja dissociado dele. A crença faz com que um seja mais verdadeiro que o outro. O pré-requisito da crença é a negação ou o limite que ela impõe nas capacidades da vitalidade. Acreditar de fato, em seu sentido mais estrito, é se concentrar e se disciplinar para excluir a possibilidade oposta e implícita, e adotar uma hipótese ou fé que reflita despreocupadamente a possibilidade rejeitada ou enganosamente a racionalize. A verdade não é a verdade da fórmula.

O centro da crença é o amor do sujeito pelo seu si-mesmo — ele projeta um ambiente como meio de satisfação, mas permite que distorções dessa projeção simulem a negação. Trata-se de uma ambição de se dissimular para o desejo-de-si, mas como não é possível chegar além do centro, o sujeito multiplica as projeções (crenças) para não ter tanta ciência desse fundamento. Ora, essa recusa de acreditar no que se acredita e exatamente do modo como se acredita é a primeira condição para qualquer pessoa que deseja, no sentido que for; o homem apaixonado inevitavelmente se torna um mentiroso, auto-hipnotizado por suas mórbidas elaborações. Tu sabes o resultado disso… só é possível acreditar verdadeiramente em uma coisa, embora o intricamento seja essencial (uma vez que a verdade parece matar),[30] então se prossegue imaginando sem parar. A imaginação aprende que a ideia da crença é sua compulsão. Para explicar o porquê da crença (ou de qualquer outra coisa), precisamos transcender sua cisão, seu limite — e o meio de fazer isso é tendo plena consciência de como o si-mesmo ama. Mas isso não é tão simples quanto parece — afinal, nós reproduzimos a lei da dualidade em todos os nossos processos de crença. Quem já transgrediu a lei da concepção? Quem não tem medo?

Mas é a partir dessa transgressão que se toma ciência daquilo que determina o que nos é habitual. Incitar espontaneamente a decepção ou criar a expectativa dela quando o desejo se manifesta — é aí que encontraremos o engano, e ter essa consciência é a oportunidade para investigar. Para além disso há algo arbitrário, que provoca a pausa, que ordena a lei, que imita o desejo com uma “razão”, mas sem se importar com as consequências. Razão é crença, e crença é o medo das nossas próprias capacidades, a fé de que não somos os milagres da criação, muito menos de que é possível sermos os criadores. É adiamento. A crença merece o ódio terrível da vitalidade. A crença não é liberdade. A crença cria sua experiência necessária, o progresso germina no retrocesso — considera que a realidade está em algum lugar e que talvez tua crença seja pequena demais para abarcá-la. Ó tu, que tanto crês em Deus, integra-te a ela pela adoração do si-mesmo! Ah!, insensato, adora o glorioso na liberdade. Quando a morte se aproximar, a fé em Deus e teu desejo pelas mulheres não te salvarão — de que servem quando a decadência e a decrepitude entram em ação e o corpo se torna objeto de aversão? E de que serve o conhecimento e a caridade quando a realidade é conhecida? Empunha a espada do si-mesmo; as ideias sobre o Todo-poderoso devem ser mortas, e a justiça questionada.

Quando o sujeito estuda um pouco a verdadeira natureza de si mesmo, ele investiga o si-mesmo com extraordinária conduta. Pode fazer tudo acontecer sem prejudicar ninguém. Assim como a tendência à lascívia cede diante da atenção pública e da morte, a moralidade e a fé cedem diante do júbilo perfeito. Um vislumbre da verdade nasce da pureza do amor: quando não há medo nem possessão no desejo, quando o pensamento é pleno de visão. O fogo que é puro prazer se liberta de acordo com a vontade, e o sujeito se torna a própria atração, o centro de atenção das mulheres. Quando o princípio da crença é destituído de fé e estéril das ideias de Deus, nos tornamos indestrutíveis. Somente quando não há medo de nenhuma forma é que se dá a realização da nossa identidade com a realidade (liberdade). Então não há perigo de negligência, não há discriminação. Pois se houver ciência da mínima diferenciação, haverá medo. Se houver qualquer percepção de autocensura ou consciência, haverá uma dor germinando — e não haverá liberdade. O sujeito que acredita em tudo que percebe ou imagina incorre no pecado. Ao acreditar sem nenhuma comoção, esquecendo-se das ideias de interior e exterior, ele considera tudo como sendo o si-mesmo — ele se torna a consciência da não-resistência, da ausência de horizonte: ele é livre. Ao ver os olhos brilhando, a boca carnuda, os seios e o quadril de belas mulheres, o sujeito se apaixona, mas se houver medo, basta pensar que tudo não passa dos seus próprios ossos e carne queimados depois da tortura. O espaço entre o eterno e o si-mesmo: não é apenas uma doutrina moral?

Se desacreditarmos de tudo em que acreditamos e nos esforçarmos, sem ansiedade, a não acreditar (pelo processo de “Nem isto–Nem aquilo”), o princípio se torna simples e cósmico o suficiente para incluir o que sempre desejamos, e nos tornamos livres para acreditar no que era impossível. O desejo se torna tão poderoso que não pede permissão e não sofre consequências além do êxtase de sua possessão. Nada triunfa contra ele. Ele queima como celuloide numa fornalha — a velha tolice de prometer as coisas em nome de um “outro” imaginado. O que se tem em mãos é a liberdade do Céu: o Caminho, a Luz e a Verdade, e ninguém ousa dizer isso de si que não seja por mim. Em verdade apenas eu sou “si-mesmo”, e minha vontade, incondicionada, é mágica. Quem tiver vivido muito em sua própria natureza estará familiarizado com essa sensação em algum nível, por menor que seja.

PREFÁCIO AO AMOR-DE-SI

Sejamos honestos! Tu és “aquilo”, supremo em liberdade, o mais desejável, para além do desejo, intocado pelos seis entorpecedores. A sexualidade se esforça para que a Morte possa ceifar pelo desejo. As impressões enganosas dos sentidos são perigosas por causa da retidão com que tu aprendeste a obedecer a eles e a controlá-los. O fogo do Inferno queima porque

tu o “concebeste”, e cessará de ferir quando identificares o ego com todas as suas qualidades possíveis ao acreditar pelo processo de “Nem isto–Nem aquilo”.

Tu és fogo e ainda assim te queimas! Porque tua crença advém da tua vontade (de modo diferente ou não, não faz diferença): o ciclo da crença prossegue e sempre restringe, então um dia tu hás de acreditar de modo diferente e o fogo deixará de ferir… estás salvo? Existem outros meios de te ferir?

*     *     *     *     *

Naquele estado que não é, não há consciência, em nenhum sentido, de que tu sejas “aquilo” (Kia) que é magnífico e ultrapassa o escopo de definição: não existe tentação de liberdade, porque “isso” não foi a causa da evolução. Daí “isso” estar além do tempo, da consciência ou da inconsciência, de tudo ou de nada etc. Isso eu sei pelo “Nem isto–Nem aquilo”, que automaticamente está para além da concepção, para sempre livre em todos os sentidos. Talvez “isso” possa se tornar mais claro com uma contínua reconsideração, e talvez possa ser vagamente sentido por intermédio da inocência — mas quem consegue entender significados tão simples? “Isso” nunca é percebido, sendo o êxtase imperceptível do “Nem isto–Nem aquilo” — sempre presente, mas oculto pela exaurição através do ciclo da unidade. A certeza da consciência é sempre a incerteza do percebido ou experimentado, em qualquer estado que seja; a dúvida constante que resulta em medo, dor, decadência e afins — a causa da evolução, a eterna incompletude.

*     *     *     *     *

Ó desejo, escuta! O desejo espiritual, em ponto de virulência, é tão fatal quanto o desejo sensorial. A aspiração a um “supremo” é uma teia de desejos mortais por causa da covardia interior — daí haver uma sabedoria não satisfeita esperando para ser explorada e, com isso, experimentar suas evoluções. Não existe sabedoria final — não existe desejo final. Como é possível algo terminar? O hoje já terminou? Essas coisas não têm fim!

As pessoas desejam as coisas deste mundo, mas qual é a diferença entre elas e o Enlevo Supremo? Qual desejo é mais egoísta? Qual das duas coisas está mais perto de ti? Qual desejo agrada mais ao Criador? Estás certo da vontade do criador e tens certeza do teu próprio desejo? Tu és o Criador ou somente ti mesmo, como imaginas ingenuamente ser o teu âmago?

*     *     *     *     *

Todos esses desejos, por mais fortes que sejam, tu ainda os encarnarás — talvez até os fotografes. Essas coisas já existem — muito em breve teremos fotografias espirituais (não falsificadas), mas não feitas pelas câmeras usadas atualmente. O pioneiro sempre vem a ser o antigo tolo. Aliás, alguns espíritos já são fotografados: os micróbios.

*     *     *     *     *

Tu já te livraste alguma vez do desideratum? A crença é o eterno desejo.

O desejo é sua própria crueldade, os grilhões que restringem as mãos a trabalhar em algum mundo desconhecido; nada está sempre morto, e nenhum pensamento morre; o mestre se torna o escravo, as posições se alternam. Tu acreditas nisso há muito tempo: está na carne das tuas gerações, junto ao mais impiedoso dos juízes. O desprezo de todas as tuas reformas ou a inversão dos teus valores!

*     *     *     *     *

Uma maldição e blasfêmia constantes — conhecer o incipiente e implacável carrasco não aumenta o alívio?

Nossos corpos não estão todos manchados de sangue? O mundo não foi sempre sangrento? Nossos prazeres não são apenas uma pausa para beber o sangue da carnificina? Ó resolutos mentirosos, vocês ainda não conhecem a mentira: ela pode ser Verdade!

*     *     *     *     *

O ego é desejo, então, em última instância, tudo é desejado e indesejado. O desejo é sempre uma previsão inicial de uma terrível insatisfação escondida por sua constante vanglória. O milênio chegará e rapidamente passará. Os homens serão maiores do que todos os deuses já concebidos — e haverá uma grande insatisfação. Tu és sempre o que já foste, mas podes sê-lo de uma forma diferente!

*     *     *     *     *

Uma pessoa ou uma civilização, por mais vã ou contente, sempre incorre no inevitável e desconhecido desejo, que a consome pouco a pouco por meio das condições — quaisquer condições!

A mente se forma no desejo considerando-o como uma devoção, mas quando o desejo é realizado, ele se torna eternamente desejável, ou desejável pelo período de mil anos? No Céu, teus pés serão agrilhoados! Portanto, remove a concepção de que o desejo é puro, impuro, ou de que tem uma realização — remove-o pelo “Nem isto–Nem aquilo”. Mesmo que o desejo seja de exaurição do desejo pelo “Nem isto–Nem aquilo”, ou realização do desejo na forma de uma esposa — é desejo de qualquer jeito, uma evolução interminável. Então, remove qualquer forma de desejo pelo “Nem isto–Nem aquilo”. Remove a ilusão de que existe Espírito e Não-espírito (uma ideia que nunca teve resultados benéficos). Remove todas as concepções pelo mesmo meio.[31]

Enquanto persistir a ideia de que existe “servidão compulsória” neste mundo ou até mesmo nos sonhos, haverá tal servidão. Remove a concepção de liberdade e servidão em qualquer mundo ou estado através da meditação sobre a liberdade em liberdade pelo “Nem isto–Nem aquilo”.

Pois disto sabemos: já existem provas suficientes do vampirismo, pelo menos no que se refere à forte ideia de que morcegos-vampiros sugam sangue, e nem precisamos considerar a possibilidade de isso ser feito por algum ente divino ou humano.

Portanto, kiaíza o desejo pelo “Nem isto–Nem aquilo”, a fórmula de maior excelência que ultrapassa o contentamento, o vazio que reduz “tudo” ao bom senso e sobre o qual repousa o universo.

Assim, não acredites em nada deste livro pelo “Nem isto–Nem aquilo”, dissipa a concepção de “Nem isto–Nem aquilo” pelo “Nem isto–Nem aquilo” e acredita que é “não-necessário” inclusive aprazer a ti mesmo, porque “não precisa ser, não importa”.

Acredita-se nisso o tempo todo como a Verdade da “Vontade”, não da coisa em que se acredita, uma vez que o meio para um fim significa evolução para um meio sem fim.

Nessa mais notável simplicidade, não há início ou fim da sabedoria ou de qualquer outra coisa — então como ela pode estar relacionada à concepção e à inteligência?

AMOR-DE-SI COMO VIRTUDE E DOUTRINA MORAL

Os critérios da ação são liberdade de movimento, ensejo da expressão e prazer. O valor de uma doutrina moral está na sua capacidade de ser transgredida. A simplicidade é o que considero mais precioso. Não são as coisas mais simples do mundo as mais perfeitas, puras e inocentes, e não são suas propriedades as mais formidáveis? Daí a simplicidade ser a fonte da sabedoria. Sabedoria nada mais é que felicidade. No amor, não há desculpas para aprazer a mim mesmo. Isso não é a perfeição? As ações em conformidade com o grande propósito podem parecer insondáveis e incompreensíveis. Poucas pessoas conseguem alcançar isso — quem não tem vergonha? O êxtase na satisfação é o grande propósito. A liberdade da necessidade da lei — ou seja, realização pelo simples anseio — é o objetivo final. A lei depende de dois, e “dois” quer dizer abundância, milhões… A lei é complicada. O segundo nada incita, o primeiro nada determina, tampouco foi compelido ou ofertado. A sorte no esporte não é profecia, mas com ela ganhamos competência suficiente para determinar…[32]

Prepara-te para o Eterno, volta para a simplicidade e serás livre.[33] Quem consegue dar sem nenhum estímulo? Somente aquele cuja sexualidade é completa. A maior bondade é nutrir o si-mesmo. E o que o si-mesmo abarca?

Adquirir a perfeita caridade, daí o si-mesmo se beneficiar de todas as coisas não dando.[34] Quem consegue ter fé sem medo? Somente quem não tem nenhum dever a cumprir. Quando a fé perece, o dever para com as doutrinas morais também perece, deixamos de ter pecado e perduramos para sempre no amor que abarca tudo. Quem consegue conhecer sem ter dúvidas? Somente quem se livrou da necessidade de aprender. Quando professores entram em discórdia, qual o sentido de aprender com eles? O sábio não é belicoso e não tem dogmas que possam ser expostos… em vez disso, é silente como um recém-nascido sendo amamentado. Qual professor consegue mostrar a fonte de seu conhecimento? É por saber sem aprender que conheço a fonte e posso transmitir lições sem ensinar. O conhecimento nada mais é que o excremento da experiência; a experiência, sua própria repetição. O verdadeiro professor não inculca nenhum conhecimento, mas mostra sua própria abundância. Mantendo a visão clara, ele direciona ou conduz o aluno, como uma criança, ao essencial. Tendo mostrado ao aluno sua fonte de sabedoria, ele se retira antes que a gratidão ou a emoção se manifestem, deixando que o aluno fecunde o que aprendeu como quiser. Não é esse o caminho para o Céu? Quem confia em sua própria genialidade natural desconhece os limites dela e realiza tudo com tranquilidade — tão logo tem dúvida, no entanto, torna-se obcecado pela ignorância. A dúvida fecunda em solo virgem. Ele deixa de ser destemido e se torna um covarde diante das dificuldades, o medo agora é seu aprendizado. A diferença entre o gênio e o ignorante é o nível de medo. O início da sabedoria é o medo do pensamento antecipado, de conhecer pelo aprendizado. As crianças duvidam e abominam o aprendizado. Ora, até mesmo aspirar pela coragem pode resultar na inteligência![35]

A diferença entre o bem e o mal é uma questão de profundidade. O que está mais próximo de ti, o amor-de-si e sua imoralidade ou o amor e a moralidade? Sem ciência de merecimento, o si-mesmo se iguala ao Céu, e a felicidade constante na sabedoria é a capacidade de se direcionar. A partir da glorificação-de-si e da exaltação-de-si nós ascendemos, superiores à incapacidade gerada pelo medo perturbador, e ridicularizamos a destruição da humildade e da penitência. Esse amor-de-si que não dá, mas se alegra em receber, é a oportunidade genuína de libertarmos da avareza, da combativa diversão do Céu. Quem submete os instintos animais à razão perde rapidamente o controle. Os animais que vemos nos circos não são treinados pela tortura? E os animais criados com amor, não são eles que matam seus mestres? O sábio abraça e nutre todas as coisas, mas não age como mestre. As paixões só são perigosas quando governadas pelo ambiente externo.

O verdadeiro controle acontece quando deixamos que as pessoas providenciem sua própria salvação — tão logo interferimos de alguma maneira, nos identificamos com elas e nos sujeitamos ao desejo delas. Mas quando o ego vê o amor-de-si, há paz, pois ele se torna aquele que vê. Tão logo desejamos, perdemos tudo. Nós somos o que desejamos, por isso nunca obtemos. Não desejes nada e não haverá nada que tu não possas realizar. O desejo é desejo de completude, a emoção inerente que é pura felicidade, pura sabedoria, em constante harmonia. Mas basta acreditarmos para nos tornarmos mentirosos e nos identificarmos com a dor, embora a dor e o prazer sejam a mesma coisa. Portanto, não acredites em nada e tu terás retornado a uma simplicidade pura que a infância ainda não atingiu. “Como”, perguntam os tolos, pois devemos acreditar no prazer e na dor. Ora, se pudéssemos sofrer os dois (prazer e dor) ao mesmo tempo e nos agarrássemos a um princípio que transcende, que permite ao ego vibrar acima deles, teríamos atingido o êxtase? Ora, a crença é o “ego”, embora separe o ego do Céu do mesmo modo que teu corpo te separa de outro corpo. Portanto, ao conservar a crença na “não-necessidade” (ao conceber), o ego está livre. A emoção do riso é a exaurição, a experiência primordial — portanto, ao fazer dessa emoção um “estado mental” no momento da unidade,[36] o sujeito une prazer e dor experimentando-os simultaneamente, e pela “não-necessidade” da crença, sua concepção transcende este mundo e alcança o êxtase absoluto. Não há lugar em que a dor ou a morte possam entrar.

A ideia de Deus é o pecado primordial, todas as religiões são más. O amor-de-si é sua própria lei, que pode ser violada com a impunidade, sendo a única energia que não é servil a nada que não seu próprio propósito de sempre. Decerto ele é tudo que nos resta que não envolve o pecado e é livre. Sim, é a única coisa da qual ousamos ter ciência. Quem realmente apraz a si mesmo não tem virtude e deve satisfazer todas as pessoas. Ódio, ciúme, homicídio etc. são condições do amor, tanto quanto virtude, ganância, egoísmo, suicídio etc. são condições de não aprazer o próprio si-mesmo. Não há pecado mais repugnante que o amor, pois ele é a própria essência da avareza e a mãe de todo pecado, daí ele ter os maiores devotos. Só o amor-de-si é puro e não tem congregação.

O sujeito que ama plenamente a si próprio induz apenas o amor-de-si. Nisso ele é inexorável, mas não ofende como outras pessoas. Ele se assemelha ao grande propósito, suas ações falam por si, o bem é visto no seu mal, sem saber, todos se satisfazem com a vontade dele. Céu e Terra não se unem diariamente numa reverência espontânea a essa vontade de amor-de-si? Ser humano nenhum é capaz de demonstrar maior amor-de-si do que ao abrir mão de tudo em que acredita. Por que eu valorizo o amor-de-si antes de qualquer outra coisa? Não seria porque sou livre para acreditar no mal, mas não tenho nenhuma expectativa de que algo possa me prejudicar? Tudo é amor-de-si, e as pessoas todas são devotas a ele — se ao menos elas soubessem! Minha nova lei é uma deixa para a vida. Se as pessoas pudessem entender isso, o manto apodrecido que cobre o mundo seria descartado, e elas, diligentes, seguiriam o caminho em seu coração — não haveria mais desejo pela unidade. Tenta imaginar o que isso implica.

Que a ideia de Deus pereça e, com ela, a ideia de mulher: as duas coisas não me fizeram parecer um palhaço? Que não haja dúvida disto: pureza e inocência são simplicidade, felicidade é sabedoria. O que é simples não tem dualidade.

DOUTRINA DO ETERNO AMOR-DE-SI

Agora explica-se o amor-de-si. Ele é a conclusão da crença.

O “si-mesmo” é “Nem isto–Nem aquilo”, não tem omissão, é indissolúvel, está além da preconcepção; a dissociação da concepção por seu próprio amor invencível é a única coisa verdadeira, segura e livre. Nele, desejo, vontade e crença deixam de existir separados. Quando a atração, a repulsão e o controle se encerram em si mesmos, eles se tornam a unidade original, inerte no prazer. Não existe dualidade. Não há desejo de unidade. Nesse momento, o princípio de dualidade se assenta em seu estado inalterado. A crença não está mais sujeita à concepção, pois concebe o si-mesmo como tal pelo amor. Em outros momentos, o “Nem isto–Nem aquilo”[37] cria um centro, torna-se seu ambiente, identifica-se com suas ramificações, a concepção criada, a sujeição à lei e ao insaciável desejo pela unidade, uma vez que é dualidade na unidade. A servidão à lei é o ódio do Céu. Somente o amor-de-si é o eterno e pleno aprazível, pela meditação nesse radiante si-mesmo que é júbilo místico. Nesse momento de enlevo, o sujeito se mantém firme à imaginação, pura felicidade ele é! Um inocente lascivo, além do pecado e sem sofrimento! A emoção que o equilibra, uma refração de seu êxtase, é tudo que ele percebe como sendo exterior.[38] Sua vacuidade causa uma refração dupla, “ele”, o autorresplandescente, se ascende no ego — está além da lei, um convidado no “Banquete dos Suprassensíveis”.[39]  [40] Ele tem poder sobre a vida e a morte.[41] Salvo por esse meio, ele não está além da autocensura. A bem da verdade, libertou todos os males do mundo, o massacre que vem dos raios. O amor-de-si, ao evitar que a mente se concentre, é identidade sem forma e, desse modo, não é pensamento nenhum; lei e influências externas são contidas e não o afetam. Quando a renúncia a todas as crenças reflete apenas seu próprio significado, surge a pureza da visão, a inocência do toque, logo, do amor-de-si. A verdade é que as pessoas nascem, sofrem e morrem através das suas crenças. Ejaculação é morte. Amor-de-si é preservação e vida.

O homem, para invocar o prazer na sua escolha, subtrai do desejo — seu desejo se parcializa e se subdivide (conflito), sua energia nunca está plena. Não mantendo nenhum foco, ele é enganado em sua força e realiza uma simples medida de prazer a partir de seu corpo. Como é pesada sua sentença no logro! O prazer se torna a ilusão. Por uma necessidade urgente, o “meio dele”, o homem é fadado a essa causa e efeito e se torna o sacrifício na pira funerária do sentimento. Esse amor-de-si é a única energia plena — todo o resto é um invólucro de insatisfação, uma hipótese de desejos que apenas obscurece.

Na miséria de suas ilusões e de seus desejos insatisfeitos, o homem alça voo a diferentes religiões e doutrinas em busca de outras decepções, de um hipnótico, de um paliativo que o faz sofrer novas angústias na exaurição. A cura termina em novas ilusões, um emaranhado ainda maior e um ambiente ainda mais estagnado.

Tendo estudado todos os meios e recursos para o prazer e refletido sobre eles seguidas vezes, descobri que o amor-de-si é o único amor livre, verdadeiro e pleno — nada há de mais são, puro e completo. Não há engano: quando desse modo se conhece ao certo toda a experiência, e tudo se torna sublime, belo e excessivamente amável, onde está a necessidade de outros meios? Como a bebida para o ébrio, que sacrifica tudo por ela. Declaro agora o amor-de-si como meio de expandir milhões de ideias para o prazer sem amor, ou seus sinônimos — autocensura, doença, velhice e morte. O simpósio do si-mesmo e do amor. Ó sábio homem, agrada a ti mesmo.

O RITUAL COMPLETO E A DOUTRINA DA MAGIA

Êxtase no si-mesmo — amor na obsessão

Meu querido, agora explicarei a única fórmula segura e verdadeira, destruidora das trevas do mundo, o maior segredo dos segredos. Que se mantenha segredo para quem o realizaria. Que cubra qualquer período, dependendo de qual é sua concepção. Não há requisito,[42] nem ritual ou cerimônia. A própria existência do sujeito simboliza tudo que é necessário à perfeição. De modo mais enfático, não há necessidade de repetição nem de débil imitação. Tu estás vivo!

Magia é a redução das propriedades à simplicidade, tornando-as transmutáveis para utilizá-las de novo em novas direções, sem capitalização,[43] rendendo frutos muitas vezes. Saibas que refletir sobre a consciência e a concentração é o oposto da magia, é a forma suprema da idiotice. Seja para o próprio prazer ou poder, a realização de um desejo é o propósito do sujeito, que usará a magia para esse fim. Ele deve esperar por um desejo de intensidade análoga,[44] e então sacrificar esse desejo (ou sua realização) pelo desejo inicial. Com isso, ele se torna orgânico, na porção ideal.[45] Ele não atingiu a liberdade a partir da lei.[46] Que ele agora espere uma crença ser subtraída, aquele momento em que a decepção acontece.[47] Certamente, a decepção é a oportunidade. Esse “ente livre da crença” e seu desejo se unem ao propósito pelo uso de sigilos, ou letras sagradas. Ao projetar a consciência em um deles, a sensação, que não é mais multiforme, se intensifica — abstendo-se do desejo por tudo, menos pelo objeto,[48] é que se atinge essa intensificação (no tempo psicológico em que isso se determina).

Pela não-resistência (pensamento e ação involuntários), quaisquer preocupações ou apreensões de não-realização, sendo passageiras, não encontram uma morada permanente, e o sujeito deseja tudo. A ansiedade destrói o propósito, pois ela retém e expõe o desejo. O desejo consciente é não-atrativo. A mente quieta e atenta, imperturbada pelas imagens externas, não distorce as impressões dos sentidos (não há alucinação: ela acabaria gerando uma realização imaginativa e fantasiosa), mas amplia o desejo existente e o une ao objeto em segredo.

Projetando a sombra

Como o ego não é de todo desatento, o sujeito deve se ater e visualizar apenas a forma do sigilo — ela é seu cálice, o meio da vacuidade e da encarnação. Considerando uma emoção análoga de cada vez, ele substitui a lei (da reação). Ele opera um milagre, atinge um equilíbrio incomparável a qualquer outro no mundo. Todas as outras consciências são anuladas com segurança — o veículo então é forte o suficiente para o êxtase, e o sujeito está além da dor. Agora deixa-o imaginar que ocorre uma união dentro de si (a união mística entre o ego e o Absoluto). Deixa-o beber repetidas vezes o néctar dessa união.[49] Depois dessa experiência surpreendente, sua paixão é incomparável, não há nada no mundo que ele desejará — a menos que tenha vontade. É por isso que as pessoas não me entendem. O êxtase nessa emoção é multígeno. Que seja entendido como o néctar da vida, o syllabub[50] de Sol e Lua. De fato, ele rouba o fogo do Céu, o ato de maior bravura no mundo. Qualquer reflexão ou deliberação que seja integrada pelo ego — exceto na refração[51] do êxtase — é praticamente exposição e morte. Ela se torna uma obsessão dominante, pois o controle se submete à experiência anterior, que é superenfatizada e se liberta momentaneamente da sua lei original, gerando assim uma dupla personalidade (insanidade).

Por esses meios, não há desejo que não possa ser realizado, não há satisfação que não seja muito maravilhosa — tudo depende da quantidade de crença livre.[52]

Homens de prazeres e iniciativas medíocres, alheios ao teu propósito, rabugentos, avarentos, perversos, que não conseguem viver sem mulheres nem desfrutar sem dor, temerosos, inconstantes, doentes, mirrados, dependentes, cruéis, ludibriados e mentirosos, os piores dos homens! Saibas, ó Senhor, ó amado Si-mesmo, eu acabo de te falar daquela taverna mais secreta para onde vai a paixão quando a juventude passa, onde qualquer pessoa pode beber o néctar do êxtase gratuito e que a tudo beneficia. O mais prazeroso alimento que não faz mal a ninguém.

NOTA SOBRE A DIFERENÇA ENTRE OBSESSÃO MÁGICA (GÊNIO) E INSANIDADE

A obsessão mágica é aquele estado em que a mente é iluminada pela atividade subconsciente evocada voluntariamente por meio da fórmula, no momento que escolhemos, com o propósito de ganhar inspiração. É a condição do gênio.

A obsessão não-mágica é a condição do “cego que guia cego”, provocada pelo quietismo e conhecida como mediunismo, uma abertura do (assim chamado) ego a qualquer influência externa, elementais ou energia desencarnada. Esse estado de consciência transmutada produz uma resistência à atividade subconsciente “verdadeira”. Sendo uma insanidade voluntária, trata-se de um sonambulismo do ego sem nenhuma forma ou controle que o guie — daí suas emanações serem algo estúpidas ou memórias da infância.

A obsessão relacionada à insanidade ou conhecida dessa maneira é uma experiência dissociada da personalidade (ego) através de algum tipo de rejeição. Ela é subcristalina e não consegue se vincular permanentemente ao subconsciente, uma vez que não se exauriu ou se completou pela realização. Dependendo do seu grau de intensidade e resistência demonstrado uma hora ou outra, o ego pode ou não tomar conhecimento dela. Sua expressão é sempre autônoma, separada do controle pessoal, do poder de direção e da questão temporal. A concentração determina a dissociação.

O entusiasmo por um único objeto busca se completar pela identificação, então sacrifica tudo por ele ou deliberadamente o esquece. Sua separação do ego (tornar-se igual ou maior que o resto da consciência provoca uma subdivisão ou “dupla personalidade”) se dá por sua própria intensidade ou pelo choque de resistência decorrente de alguma incompatibilidade com o desejado ou desejo.

A concentração é um desejo insatisfeito, um conflito que jamais será satisfeito por causa do meio usado para sua satisfação. Quando o ego parece não ter ou não conhece os meios de realização do desejo, ele busca repudiá-lo e escapar da preocupação pela repressão, transmutação ou realização imaginária. Nada disso aniquila o desejo (ou a obsessão), mas apenas o separa ou o encobre do restante do ego, dando a ele o status de existência prematura subconsciente. Ele então fica lá enquanto houver alguma forma  de resistência ativa; basta a resistência perder a força para a obsessão dominante assumir o controle, permitindo que ele se corporifique e inunde o ego, que tem de viver e efetuar sua experiência emocional. A doença e a insanidade (toda doença é insanidade) são causadas quando a energia desencarnada não tem energia vital. É essa energia que utilizamos para a vitalização dos sigilos.[53]

SIGILOS

A psicologia da crença

Até que se conheça a “crença suprema”, crer é inútil. Até que “a verdade” seja averiguada, o conhecimento é improdutivo. Mesmo que “elas” fossem conhecidas, estudá-las é inútil. Nós não nos tornamos o objeto pela percepção que temos dele, mas por devirmos objeto. Fechar os portais dos sentidos não ajuda em nada. Decerto farei da fundação de meu ensinamento algo

comum. Do contrário, como haverei de transmitir minha intenção para os surdos, minha visão para os cegos e minha emoção para os mortos? A intuição se perde em um labirinto de metáforas e palavras — sem elas, portanto, o sujeito deve aprender a verdade sobre seu próprio si-mesmo consigo mesmo, a única pessoa que sabe a verdade sobre ele.

De que serve a sabedoria da virgindade para quem foi estuprado pela sedução da ignorância? De que servem as ciências ou qualquer conhecimento exceto como remédio? Um tesouro oculto não aparece simplesmente porque o convocamos com a palavra ou porque cavamos com as próprias mãos na beira da estrada. Mesmo com os instrumentos certos e o conhecimento exato do lugar etc., o que se adquire não é nada mais do que já possuíamos tempos atrás. Há uma dúvida imensa sobre onde ele está escondido, exceto pelos estratos da nossa experiência e as atmosferas da nossa crença.

A questão pertinente agora posta por ti deveria ser colocada por quem deseja ser gênio em alguma medida. Minha resposta, como o poderoso germe, está em conformidade com o universo — simples e repleta de significados profundos, e a princípio extremamente repreensível para tuas ideias de bem e beleza. Escuta atento minha resposta, ó aspirante, pois, ao viver seu significado, tu haverás de te libertar verdadeiramente da sujeição à ignorância primordial que te constitui. Tu mesmo deves vivê-lo; eu não posso vivê-lo por ti.

A principal causa da genialidade é a realização do “eu” por uma emoção que permita a assimilação imediata do que é percebido. Essa emoção é imoral, pois permite a livre associação do conhecimento sem os acessórios da crença. Assim, sua condição é a ignorância do “eu sou” e “eu não sou”: em vez de crença, alheamento. Seu estado de maior excelência é o “Nem isto–Nem aquilo”, o “eu” livre ou atmosférico.

Tu te lembras de ter pensado, quando jovem, que “este mundo é um lugar curioso”, do sentimento de ter perguntado “Por quê?” e de questionar se o acontecimento da vida era racional? O que causou esse sentimento e por que motivo o tiraste sumariamente da cabeça? O sentimento de que o mais comum dos objetos é magnificamente estranho; a vaga sensação de que existe uma correlação entre coisas incompatíveis (discussões exaustivas muitas vezes demonstram essa ideia, mas sempre a descartam); a curiosidade e o choque decorrente de uma associação mais íntima com as maravilhas da criação. O que é isso que te impede de continuar investigando “o que é exatamente a surpresa” etc.? Qual é a causa de tu acreditares mais em Deus do que numa briga de cães, embora tenhas mais medo de cães do que de Deus? Qual a diferença entre ti, sufocado por uma piedade perturbadora, e a inocência de um bebê? Talvez nessas perguntas esteja a causa da tua ignorância.

A crença é a queda do Absoluto. No que tu vais acreditar?

A verdade busca sua própria negação. Diferentes aspectos não são a verdade, tampouco são necessários à verdade. De todas as manifestações da verdade, quais tu reprimirás assim que nascer? Tu és ilegítimo? Tu acreditas em certo e errado — qual punição estabelecerás? Consegues escapar à força motriz do “dever”? Quem é capaz de escapar ao tédio sem mudança? Quem consegue permanecer contente quando solteiro? Quem entre vocês é vasto e livre o suficiente para integrar a si o próprio si-mesmo? Tua crença ofusca tua linhagem. A ambição é mesquinhez, o ambiente ao qual estás acostumado. Lembra, o tempo é uma imaginação espontânea e natural da experiência. O que pode ser chamado de experiência anterior foi sua própria conclusão, portanto não há aprendizado que tenha fim. O que tu aprenderás amanhã é determinado pelo que fizeste antes — a finalizada lição de ontem. Nunca aprender hoje o que tu farás amanhã é chamado de perda, mas na verdade é roubo de tempo, sanidade e rejuvenescimento. Repete isso diariamente e repetidas vezes até que atinjas a espontaneidade, a entrega ao acaso com segurança. A busca do aprendizado (pela crença) é a incubadora grotesca da estupidez.

Se tu pudesses acreditar verdadeiramente, perceberíamos a virtude disso. Nós não somos livres para crer, por mais que desejemos — primeiro temos de exaurir as ideias conflitantes. Os sigilos são a arte da crença, minha invenção para tornar a crença orgânica — logo, a crença verdadeira.

O anseio de acreditar é necessariamente incompatível com a crença existente e não se realiza pela inibição da crença já orgânica — é a negação do anseio. A fé não move montanhas, não até ter removido a si mesma. Suponhamos que eu queira ser grandioso (não contando que eu seja): ter “fé” e acreditar que sou grandioso não faz de mim grandioso, ainda que eu mantivesse a aparência de sê-lo até o fim… seria uma insinceridade cerimonial, a afirmação da minha incapacidade. Eu sou incapaz porque essa é a verdadeira crença, orgânica. Pensar que não é isso é puro fingimento. Portanto, a imaginação ou “fé” de que sou grandioso é uma crença superficial. A reação e a negação são causadas pela desagradável efervescência da minha incapacidade orgânica. Negá-la ou ter fé não a modifica nem a aniquila, mas a reforça e a preserva. Desse modo, para que a crença seja verdadeira, ela precisa ser orgânica e subconsciente. O desejo de ser grandioso só pode se tornar orgânico no momento de vacuidade,[54] e dando a ele uma forma (sigilo). Quando tomamos consciência da forma do sigilo em qualquer momento (exceto enquanto a magia acontece), é preciso reprimi-la através de um esforço deliberado de esquecê-la — com isso, ele se torna ativo e domina o inconsciente naquele período, sua forma se nutre e se associa ao subconsciente, tornando a crença orgânica. Feito isso, ela se realiza e se torna realidade. O sujeito se torna seu conceito de grandiosidade.

Então, a crença se torna verdadeira e vital pelo esforço contra ela no consciente e dando a ela uma forma, não pelo esforço da fé. A crença se exaure por reconhecimento e não-resistência, isto é, consciência. Acredita sem acreditar e, na medida, obterás a existência dela. Oportunamente, dependendo da tua moralidade, dá aos pobres. Ah, se os ambiciosos soubessem que se tornar incapaz é tão difícil quanto se tornar grandioso… As duas realizações são mútuas e igualmente satisfatórias.

O SUBCONSCIENTE

Todos os gênios têm seu subconsciente ativo, e quanto menos se dão conta desse fato, maiores são suas realizações. O subconsciente é explorado pelo desejo de alcançá-lo. Portanto, a consciência não deve conter o desejo de grandiosidade, uma vez que o ego teve esse anseio; ela deve ser preenchida por uma ambição apaixonada por algo diferente, e não o contrário — que é manter o inevitável ônus da covardia à espreita em algum lugar; certamente, não é esse um inglório engano? A genialidade, como o heroísmo, é uma questão de bravura — é preciso esquecer o medo e a incapacidade de alguma maneira… daí sua expressão ser sempre espontânea. Como é simples obter genialidade! Vocês conhecem o meio — quem dará o primeiro salto? O aprendizado do “Como?” é o eterno “Por quê?” — sem resposta! O gênio é um gênio porque não sabe como ou por quê.

O depósito das memórias com a porta sempre aberta

Saibas que o subconsciente é a epítome de toda experiência e sabedoria, encarnações passadas, todos os homens, animais, pássaros, vida vegetal etc., tudo que existe, existiu e existirá. Cada ser é um estrato na ordem da evolução. Naturalmente, então, quanto mais profunda é a nossa investigação desses estratos, mais primitivas são as formas de vida às quais chegamos, e a última delas é a Onipotente Simplicidade. E se conseguimos despertá-las, nós obtemos suas propriedades, e nossas realizações correspondem a elas. Sendo experiências que aconteceram há muito tempo, elas devem ser evocadas por meio de sugestões extremamente vagas, que só podem funcionar quando nosso estado mental é excepcionalmente tranquilo ou simples. Para obter a sabedoria delas não é preciso ter o corpo delas — o corpo muda de acordo com os “meios” (nós conseguimos viajar mais rápido que um guepardo e não temos o corpo dele), e quando ele é o meio, ele muda de modo correspondente. Ora, se observarmos a natureza, veremos que as primeiras formas de vida são maravilhosas no que se refere a suas propriedades, adaptabilidade etc.; além de possuírem uma forma enorme, e de algumas delas serem indestrutíveis. Não importa qual seja o desejo, ele sempre é a sua realização. Um micróbio tem o poder de destruir o mundo (e certamente o faria se tivesse interesse em nós). Se removemos um membro de alguns desses organismos, a parte mutilada cresce de novo etc. Portanto, ao evocar e se tornar obsedado ou iluminado por essas existências, nós ganhamos suas propriedades mágicas ou o conhecimento de sua obtenção. Isso é o que já acontece (tudo acontece o tempo todo), embora de modo muito lento: ao nos esforçarmos pelo conhecimento, nós o repelimos; a mente funciona melhor na simplicidade.

A chave para a profecia

A lei da evolução é a regressão da função que governa a progressão da realização, isto é, quanto mais maravilhosos os nossos feitos, menor a escala de vida que os governa. O conhecimento que nos permite hoje voar é determinado pelo mesmo desejo que causa a atividade dos pássaros etc. — karmas. Quando nosso desejo atingir diretamente os estratos que correspondem às existências que podem “voar” sem asas, assim voaremos sem máquinas. A atividade subconsciente é a única “capacidade”, o único “conhecimento”; qualquer outra coisa que adquirimos tem valor negativo ou o mesmo valor que um excremento. A virtude de aprender e adquirir conhecimento pelos meios ordinários está na preocupação e na decepção, ao ponto de provocar exaurição: por esse meio, o desejo pode acidentalmente atingir a verdadeira morada do conhecimento, isto é, o subconsciente. A inspiração sempre se dá em um momento de vazio, e as descobertas mais grandiosas são acidentais, geralmente provocadas pela exaurição da mente. Minha fórmula e sigilos para a atividade subconsciente são os meios de inspiração, capacidade ou genialidade, e os meios de acelerar a evolução. Uma economia de energia e método de aprendizado pelo deleite. O morcego criou asas apropriadas devido ao fato de seu desejo ser orgânico o suficiente para alcançar o subconsciente. Se seu desejo de voar tivesse sido consciente, ele teria de esperar até que pudesse voar pelos mesmos meios que nós, usando máquinas.

Todo gênio tem uma habilidade alternativa (geralmente natural) na forma de um hobby, que serve para restringir e ocupar a mente consciente e evitar sua interferência na expressão espontânea. A matemática do grande Leonardo, por exemplo, servia como alternativa (e como sigilos) para enganá-lo dessa maneira. Nossa vida está repleta de simbolismos que representam os karmas que nos governam. Todo ornamento, roupas inúteis etc. são símbolos desse tipo (eles agradam as pessoas porque elas sentem a identificação) e servem como meios de identificar esses karmas. O simbolismo de coroar um homem rei é que ele, sendo semelhante a Deus (na Terra), atingiu os estratos mais profundos de seu subconsciente (os organismos unicelulares, por assim dizer) que predominam no governo de suas funções. (É claro, quem é coroado rei nunca é um rei, eles simbolizam a “esperança”, não a realidade.) Assim, os padrões florais e as pedras preciosas que compõem a coroa estão relacionados aos primeiros princípios. Rei é aquele que atingiu a simplicidade do princípio de dualidade, a experiência primordial que é toda experiência: esse rei não precisa de coroas e reinados.

Pelos sigilos e pela aquisição da vacuidade, qualquer encarnação ou experiência passada pode ser evocada à consciência. Pode acontecer até durante o sono na forma de sonhos, mas esse meio é muito difícil.[55]

A vacuidade total é difícil e arriscada para quem é controlado pela moralidade, por complexos — isto é, pessoas cujas crenças não são totalmente amor-de-si. Daí a necessidade de sigilos etc.

Encara todo ritual, cerimônia, condições etc. como arbitrários (tu tens a ti mesmo para aprazer), um obstáculo e uma confusão; tudo isso se originou como divertimento, depois foram usados com o propósito de iludir os outros para não conhecerem a verdade e induzir a ignorância; e, como sempre acontece, os altos sacerdotes eram eles mesmos os mais enganados. Quem engana o outro engana muito mais a si mesmo. Desse modo, saibas distinguir quem são os charlatões pelo amor à suntuosidade de vestes, cerimônias, rituais, retiros de magia, condições absurdas e outros disparates numerosos demais para serem relatados. Toda a doutrina deles é uma exposição de prepotência, uma covardia com fome de fama; nos critérios que estabelecem, nada há de necessário; garantido é o fracasso deles. Daí alguns perderem rapidamente suas habilidades naturais com os ensinamentos deles. Eles só conseguem dogmatizar, implantar e multiplicar o que é inteiramente superficial. Fosse eu um professor, não agiria como mestre por saber mais; os discípulos não poderiam reivindicar discipulado. Assimilando devagar, eles não teriam consciência de seu aprendizado, não repetiriam erros críticos; sem medo, realizariam com tranquilidade. O único ensinamento possível é mostrar ao ser humano como aprender com sua própria sabedoria e utilizar sua ignorância e seus erros, e não obscurecendo sua visão e intenção pelo senso de certo e errado.

SIGILOS: CRENÇA COM PROTEÇÃO

Obsessão mágica

Explicarei agora a criação e o uso de sigilos; não há nenhuma dificuldade [neste método], pois tudo é muito simples e muito claro.[56] Por amor a meus tolos devotos, eu o inventei. Todo desejo, seja por prazer, conhecimento ou poder, que não encontra expressão “natural” pode ser realizado, através dos sigilos e de sua fórmula, a partir do subconsciente. Sigilos são um meio de guiar e unir a crença parcialmente livre[57] a um desejo orgânico, servindo-lhe de suporte e preservação até que seu propósito seja cumprido no si-mesmo subconsciente, e seu meio de encarnação no ego. Todo pensamento pode ser expressado numa forma que mantém com ele uma relação verdadeira. Sigilos são monogramas de pensamento para o controle da energia relacionada ao karma (tudo que é heráldico, todas as insígnias, monogramas, são sigilos e representam os karmas que eles próprios governam); são um meio matemático de simbolizar o desejo e dar a ele uma forma que tem a virtude de evitar qualquer pensamento e associação a esse desejo particular (no momento em que a magia acontece). O desejo então escapa à detecção do ego que, dessa forma, não pode restringir ou associar o desejo a suas próprias imagens, memórias e preocupações transitórias, permitindo a livre passagem ao subconsciente.

Os sigilos são feitos pela combinação das letras do alfabeto depois de uma simplificação. Por exemplo, a palavra “mulher” [woman], em forma de sigilo, seria:

.[58]

A ideia é obter uma forma simples que possa ser facilmente visualizada à vontade e que não tenha uma relação pictórica demais com o desejo. O verdadeiro método tem uma vantagem muito maior, que não pode ser explicada brevemente, sendo o segredo da forma-pensamento, enquanto graus de sugestão, e o que há exatamente em um nome. Agora concordamos sobre como um sigilo é feito e sobre qual é a sua virtude ou vantagem. A bem da verdade, qualquer coisa em que a pessoa acredite por meio de sigilos é a verdade e é sempre realizada. E acredita-se nesse sistema de sigilos tomando-o como um hobby em um momento de grande decepção ou tristeza. Por meio de sigilos, dotei tolos com sabedoria, fiz de sábios tolos, dei saúde a doentes e fracos, doença a fortes etc.

Ora, se por algum propósito você quisesse a força de um tigre, escreveria uma frase do tipo:

“Esse é meu desejo, obter a força de um tigre”. Sigilado, ficaria assim: Esse é meu desejo

Agora, em virtude desse sigilo, você é capaz de enviar seu desejo ao subconsciente (que contém toda a força); feito isso, a realização do desejo será a manifestação do conhecimento ou poder necessário.

Primeiro, é preciso obliterar a consciência de toda e qualquer coisa exceto o sigilo; não confunda isso com concentração — toda vez que começar a pensar, simplesmente conceba o sigilo. A vacuidade[59] é obtida ao exaurir a mente e o corpo por um ou outro meio. Um método pessoal ou tradicional serve igualmente bem, dependendo do temperamento; escolha o mais agradável. Os que se deve manter em alta estima são: mantras e posturas de yoga, mulheres e vinho, tênis, jogar paciência, caminhar e se concentrar no sigilo etc. Nenhum deles é necessário para quem tiver conquistado (ainda que simbolicamente) o princípio de dualidade (concepção), mesmo que por um momento, através do estado de “Nem isto–Nem aquilo” — seu ego está livre de gravidade. Se o sigilo se torna uma obsessão pela apreensão contínua, sua realização pode acontecer a qualquer momento na forma de inspiração. Isso é feito voltando a mente para o sigilo quando o sujeito está extremamente preocupado — o tempo de exaurição é o tempo da realização. No momento da exaurição ou vacuidade, retenha e visualize apenas a forma do sigilo — no fim ele se torna vago, depois desaparece, e o sucesso é garantido. Com o ego concebendo apenas o sigilo e não sendo capaz de conceber nada a partir dele, toda a energia é centralizada através dele, e o desejo de identificação o carrega ao estrato subconsciente correspondente, seu destino. Sendo o sigilo um veículo, ele serve o propósito de proteger a consciência da manifestação direta da obsessão (não reconhecida conscientemente). Assim se evita o conflito com quaisquer ideias incompatíveis, e nenhuma das duas se torna uma personalidade separada. Ou a obsessão é assimilada gradualmente e se torna orgânica ou retorna à sua morada original, seu propósito de iluminação realizado. Desse modo, por meio dos sigilos, a mente é iluminada (conhecimento) ou obsedada (poder), dependendo da intensidade do desejo, por aquele karma específico (de uma

existência e de um conhecimento particulares adquiridos pelo estrato subconsciente) que está relacionado ao desejo, e não pela memória ou experiência recentes. O conhecimento é obtido pela sensação que resulta da unidade entre desejo e karma; o poder, por sua visualização e ressurreição efetivas.

Esse conhecimento sai de seu estrato junto com a energia ou desejo que retornam ao ego. Ele escapa à resistência do ego se associando a semelhantes imagens, memórias ou experiências (recebidas nesta vida) contidas na mente e se cristaliza por seu simbolismo. Daí a maior parte da iluminação ser simbólica e precisar ser traduzida depois.

SIMBOLISMO

Considere os símbolos como meios de representar o conhecimento por sua retenção subconsciente,[60] onde ele ganha sabedoria ao buscar analogias entre as outras observações. Então, um símbolo funciona e ganha conhecimento a partir da “consciência”, e o sigilo a partir da “inconsciência”. Quanto aos sigilos, eles induzem a ignorância do ego, mas conferem ao ego um fluxo de conhecimento a partir do símbolo. Todo o conhecimento das ideias obtido por meio dos sigilos deve ser revestido em puro simbolismo (como mostrado adiante) para designar e estimular sua própria sabedoria. O simbolismo também é uma maneira de acelerar e exaurir uma crença vivendo-a — e não a reprimindo — por escolha — e não pela necessidade que serve a seu próprio tempo.[61] O simbolismo é um meio fácil e vital de expressar conhecimento, visões e sensações subconscientes que são difíceis ou impossíveis de serem expressas em poucas palavras. Em sua natureza, o simbolismo ou é arbitrário ou uma representação verdadeira reduzida a uma simplicidade pictórica, análoga quando é a representação de uma abstração.

Exemplo:

“Homem”, simbolizado pelo método arbitrário, poderia ser   ou qualquer outra coisa. Esse método é puramente fictício e não serve a outro propósito que não o de lembrar, mas que, por fim, ao ganhar simplicidade, acaba envolvendo algumas representações verdadeiras daquilo que simboliza — a economia o força à utilidade.

Daí      se torna   , depois  .

Pelo outro método, isto é, a verdadeira e pura representação pictórica, “Homem” [man] simbolizado é:

Desse modo, ambos os métodos acabam chegando ao mesmo símbolo grafado. Com o primeiro meio, é uma questão de tempo até que tenha algum uso. Para simbolizar uma abstração como “Controlam-se melhor as paixões pela inocência (não-resistência)”, buscamos analogias aceitas, ou seja, as “paixões” poderiam ser representadas por um tigre, e a “inocência” por uma criança. Assim, fazemos o símbolo de uma criança com um tigre. Com essa chave simples, não há simbolismo tradicional digno do próprio nome que não possa ser lido, tampouco conhecimento presente que não possa ser expresso. Além disso, em virtude do simbolismo, a imaginação dos outros pode ser estimulada a desenvolver sua própria sabedoria, uma vez que comecem a trabalhar em linha simples. A base de todo simbolismo (isto é, a involuntária) é a expressão do conhecimento subconsciente, que é ou não é explorado, dependendo da necessidade. Os egípcios, por exemplo, foram uma raça subconsciente, artística, em oposição à nossa, científica. Para eles, a teoria de Darwin não seria novidade nenhuma, pois eles já possuíam o conhecimento “vital” de que o homem evoluiu dos animais, desde as formas mais primitivas de vida. Eles simbolizaram esse conhecimento em um grande símbolo, a Esfinge (daí sua importância), que é a representação pictórica do homem evoluindo de sua existência animal. Seus numerosos deuses, todos parcialmente animais, pássaros, peixes etc., demonstram a completude daquele conhecimento, mas eles não tinham necessidade de desenvolvê-lo mais a fundo como nós porque sabiam tudo que lhes era fundamentalmente importante. A cosmogonia de seus deuses é uma prova do conhecimento que tinham sobre a ordem da evolução e seus processos complexos a partir de um único organismo. O mesmo se dá com seu conhecimento sobre teoria planetária, teoria atômica etc. Com efeito, a base simples que eles tinham abarca todas as possibilidades da nossa ciência. Eles sabiam que ainda possuíam as faculdades rudimentares de todas as existências e estavam parcialmente sob o controle delas. Desse modo, seus karmas passados se tornaram deuses, forças boas e más, e tinham de ser aplacados: toda a doutrina moral etc. é determinada a partir disso. Portanto, todos os deuses viveram (sendo nós mesmos) na terra e, quando mortos, suas experiências ou karma passam a governar nossas ações em algum nível: nesse aspecto, nós somos sujeitos à vontade desses deuses. Isso explica o fatalismo. Essa é a chave para o mistério da Esfinge.

*     *     *     *     *

A arte fornece todo o material que a ciência explora. A fórmula é posterior à inspiração.

DESENHO AUTOMÁTICO COMO MEIO PARA ARTE

Arte como “não precisa ser”: a religião vital

A virtude da arte é poder contradizer a ciência (em qualquer de suas leis) — para ser arte, ela não precisa ser verdadeira para a ciência. Ela ensina que é possível obter composição, equilíbrio ou proporção por qualquer princípio ou exagero, então aponta para a liberdade em uma deliberação que já existe.

A única lei da arte é sua própria espontaneidade. Seu prazer e sua liberdade. Como seu anseio é místico, puro e simples: ela não tem nenhuma ideia de divindade potencial! A decoração é seu credo, e a alegoria vital sua crença. Sendo a “Moral Livre”, ela não tem pecado — então, de modo mais assertivo, a arte é “tudo” que ousamos expressar sem desculpas. Portanto, o que não é arte é ciência ou filosofia moral. Sendo a (verdadeira) arte uma inspiração, ela é a fórmula (simbólica) da ciência que ela não admite.

A arte sugere, por isso é o melhor meio de transmitir sabedoria — sua própria sugestão supõe liberdade. A arte é aquela beleza que pode nascer de tudo, mas a beleza em si não nasce por uma fórmula de equilíbrio ou proporção. A feiura é aquilo que a fórmula não permite: por isso nunca há beleza sem essa feiura que se transmuta por sua superabundância.

A arte é a aplicação instintiva (a observações ou sensações) do conhecimento latente no subconsciente.

A arte ruim (fundamentalmente fraca, como na composição etc.) surge quando uma lei, código ou maneirismo — sempre algo aprendido — não permite a espontaneidade, pois esquece a negligência necessária. A arte é a única sabedoria eterna: o que não é arte logo perece. Ela é o amor subconsciente de todas as coisas. O “aprendizado” acabará e a realidade se fará conhecida quando acontecer de todo ser humano se tornar artista.

Desenho automático

O desenho automático é um meio vital de expressar o que está no fundo da nossa mente (o sujeito do sonho)[62] e é um meio rápido e fácil de começar a ser corajosamente original — com o tempo, ele evolui para a ansiada expressão espontânea, e a onisciência é garantida. O desenho automático é obtido pela fórmula simplificada do sigilo (primeiro, transformar o desejo de desenhar em um desejo orgânico) e é um meio de expressar a atividade subconsciente de maneira pictórica: é o mais fácil dos fenômenos psíquicos. A mão precisa ser treinada para trabalhar de modo livre e por si só, o contrário do que acontece habitualmente. Exercite fazendo estas e outras formas simples, de modo veloz e contínuo:

etc.,

e em uma variedade de direções e formatos, até que consiga realizá-las sem nenhuma diretriz consciente. Depois, permita que a mão desenhe por si só, isto é, rabisque,[63] com o mínimo de deliberação possível. Com o passar do tempo, esse rabisco se desdobra em forma, estilo e significado. Quando a mente está absorta e alheia, o sucesso é garantido. Um dos meios usados para obter resultados extraordinários e de grande perfeição consiste em olhar para o próprio polegar sob uma luz baixa, como o luar, até que ele ganhe uma certa opalescência e insinue um fantástico reflexo do observador.

O sentido e a sabedoria dos desenhos são simbólicos. Para determinar o que você quer desenhar, como um karma específico ou sua ideia de um cavalo, crie um sigilo para isso e retenha-o na mente.

Por esses meios, é possível expressar todas as encarnações passadas, todas as criações sem o mínimo esforço.

Desenhos automáticos também são meios de visualizar simbolicamente as sensações, e a maioria dos desenhos neste livro são desse tipo, incluindo meu primeiro desenho (feito mais ou menos em 1900).

Também são uma maneira de prever resultados posteriores a partir de ações anteriores.[64]

O desenho automático é uma cura para a insanidade, porque expõe o sentimento ferido, permitindo que a consciência reconheça onde está a obsessão; com isso, a razão (controle) pode ser retomada do zero.

Nota sobre as letras sagradas

As letras sagradas preservam a crença contra a ação do ego, de modo que ela retorne repetidas vezes ao subconsciente até que sua plenitude quebre a resistência. Seu significado escapa à inteligência, mas é entendido pela emoção.

Cada letra, em seu aspecto pictórico, está relacionada a um princípio do sexo, e suas modificações formam uma completude. Vinte e duas no total, correspondentes a uma causa primeira: cada uma delas é análoga a uma ideia de desejo, e formam uma cosmogonia simbólica. Desse modo, a terceira letra é:  — o princípio de dualidade ou faculdade conceptiva.

Conhecendo-se a primeira letra, o sujeito se familiariza com todo o alfabeto e as milhares que ele implica. Elas são o conhecimento do desejo. Elas abarcam um sistema positivo de gramática que permite uma expressão fácil e sem contradições, e uma leitura de princípios difíceis e complexos; as ideias ali presentes escapam à concepção.

SOBRE MIM MESMO

Embora conceba, você não dá nenhum sinal de vida. Ao reivindicar a si, que é um trabalho de criação de valor, você não encontrou nada a que valha se segurar, nada satisfatório? A realização da sua inibição é tudo? Talvez para se realizar seja preciso esvanecer. Essa ideia de “si-mesmo”, como é vazia e cheia de incompletude! É na negação-de-si que o estímulo de simular a realidade aparece cada vez mais — essas névoas horrendas de ilusão são parentais, a causa do ódio do Céu! É por isso que temo acreditar em Deus, a subordinação a um atributo, e um si-mesmo reduzido a uma ideia não significa liberdade do amor! Todo-poderoso talvez seja aquele que é inconsciente da ideia de Deus. Que a ferocidade da minha unidade seja seu silêncio e, para mim, não seja mais uma pergunta ou um esforço para expor minhas dúvidas. Contudo, a humanidade eternamente duvida, resmunga e paga por cada prazer, até que ele se torna um milionário: que a punição seja proporcional ao tamanho do ganho é o seu medo! O rico de escórias, para enganar a própria consciência, finge humilhação, fala de si como “pobre”, que suas posses são “fardos” ou que “não valem nada”! Que tipo de consolo é a verdade no dia da cansativa espera e vigília, da luta insaciável, da prisão, da tormenta e dos horrores de cada concebível tortura? Quando se acostumar a tudo isso, perder o senso de realidade e não mais se afetar, ele criará um novo deus e novos tormentos do zero? Ó tolice do mundo, negue sua fé, renuncie a esse deus de cetro ensanguentado e confesse. O fim da tolice é o início da infância, mas o conhecimento não tem fim. Foi me perdendo que encontrei a reta via.[65] Desde a infância, nunca neguei meu invencível propósito. Ó observador silente, tu, olhos atentos e incansáveis do universo, vigia o começo de todas as minhas ideias. A miséria do mundo pareceria eterna enquanto eu, ali no meio, como um infante ainda sem sorrir, sou a pureza impermeável do amor-de-si, mas não ouso solicitar seu serviço! Tenho uma eterna carência de realização — por muito pobre que eu seja, meu contentamento está além da sua compreensão. Otimista, mas temo defender um argumento ou me comprometer ao acreditar nas minhas doutrinas como tais; que elas expurguem a si mesmas! Temeroso do conhecimento, que minha crença seja sua vacuidade — sim, sua ignorância! Da minha audácia de acreditar em religiões, doutrinas e credos, que eu detenha então a joia da verdade. Sou tão cauteloso que ao mesmo tempo nego aquilo que afirmo e me atenho firme à “não-necessidade” — superado pelo paradoxo superado, sem precedentes e espontaneamente, retorno ao Absoluto, observo minha intoxicação e controle — a reação do karma. Como é fácil o Caminho, pareceria que nada deveria ser dito, mas tudo desdito. Que minhas palavras sejam poucas e fecundas! Que pena, a futilidade da ideia de Deus ainda não chegou ao limite, e todos os homens, mentirosos, parecem famintos pelo clímax dessa ideia na insanidade — apenas eu, maduro precoce, enquanto a razão ameaça despencar do trono, permaneço são, em castidade positiva, sem professar nenhuma consciência e nenhuma moral: virgem na perseverança de um único propósito.

Notas

[1] Srta. Mountstuart Jenkinson, personagem do livro The Egoist, do escritor inglês George Meredith (1828-1909). (As notas da tradução serão indicadas por N.T.)

[2] Na revista The Art News, 15 nov 1911.

[3] “A postura de morte”, nesta edição, frontispício.

[4] O paradoxo de que Deus está sempre no Céu, ou de que o inconcebível Todo-poderoso emana sua concepção ou negação, ou de que comete suicídio etc.

[5] Considere “masculino” e “feminino” como princípios, e não como oposição entre homem e mulher. Sobre a excelência da quietude feminina em relação ao masculino, lemos no Tao Te Ching: “O grande reino é aquele corrente abaixo / É um campo sob o céu / Num campo sob o céu / A fêmea sempre vence o macho através da quietude / Por isso, o grande reino estando abaixo do pequeno reino / Conquista o pequeno reino / O pequeno reino estando abaixo do grande reino / Absorve o grande reino / Assim / Ou por estar abaixo para conquistar / Ou por estar abaixo para absorver / O grande reino apenas deseja unir e cultivar os homens / O pequeno reino apenas deseja integrar e servir aos homens / Cada um destes dois encontra o local para seu desejo / Portanto, o grande deve estar abaixo.” Lao Tsé, Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude (Trad. Mestre Wu Jyh Cherng. São Paulo: Saraiva, 2013), cap. 61. (N.T.)

[6] Todos os meios de locomoção, maquinários, governos, instituições e tudo que é essencialmente moderno representam símbolos vitais do funcionamento da nossa mente etc.

[7] O símbolo de justiça conhecido pelos romanos não é símbolo da justiça divina ou da nossa justiça, pelo menos não necessariamente ou comumente. A vitalidade não é exatamente como a água, tampouco nós somos árvores; somos mais como nós mesmos — o que, por acaso, pode incluir árvores em algum lugar desconhecidas —, e isso fica muito mais óbvio pelo modo como funcionamos atualmente.

[8] Spare fala aqui de funções como o modo de funcionamento e interação com o mundo. Se de certo modo a simbologia tradicional não dialoga mais conosco, há de se aprender uma nova tradição — ou seja, pensar nos símbolos ligados àquilo com que interagimos na contemporaneidade. Para além das estruturas arquetípicas, uma vez que os arquétipos se manifestam pelos símbolos, “observar nossas funções”, em última instância, remete tanto ao fato de que os símbolos mudam ao longo do tempo quanto ao fato de que as psiques individuais também têm sua própria simbologia — daí o chamado para que o alfabeto do desejo ou a prática de sigilação sejam pessoais e individualizados. Isso também remete à leitura que Spare fará, décadas depois, do método freudiano de interpretação dos sonhos que, para ele, ficou obsoleto ao tratar a atividade onírica a partir de uma base sexual que busca interpretar da mesma maneira qualquer sonho, “por mais opostos ou diversos que sejam os símbolos e a situação […]; existem muitos tipos diferentes de sonho, e cada um precisa de uma técnica diferente de tradução” (A palavra viva de Zos, nesta edição, p. 503). (N.T.)

[9] Não há gênero em Kia nem em Zos. Alinhada a outras leituras e intérpretes do autor, esta tradução a trata pelo feminino. Para detalhes sobre este e outros termos, bem como uma discussão mais ampla sobre possíveis paralelos dos termos usados por Spare e suas referências literárias, ver Rogério Bettoni, “Nem uma vida nem outra” (Em Arte e magia do caos: obra reunida de Austin Osman Spare, p. 55-116). (N.T.)

[10] Sobre esse “si-mesmo”. Sua concepção é a lei da dualidade, princípio que rege toda concepção.

[11] The Book of Lies (O livro das mentiras), de Aleister Crowley, foi publicado em 1913 (ou 1912), mesmo ano da primeira edição de O livro do prazer. (N.T.)

[12]Neither–Neither”, a famosa fórmula de Spare quase certamente inspirada pela expressão sânscrita “neti neti”, presente em diferentes escrituras hindus, especialmente Upanisadas, Yoga Sutras e Avadhuta Gita, bem como no Siri Guru Granth Sahib, o livro sagrado dos sikhs. Ver p. 98-103. (N.T.)

[13] O princípio sexual inalterado, refratado através do princípio da dualidade, emana uma variedade infinita de emoções ou sexualidades, às quais podemos chamar de suas ramificações. KIA Simbolizada, Nem isto–Nem aquilo ou sexualidade inalterada —— Princípio de dualidade —— Modificações.

[14] Do grego τετραγράμματον, é o termo que se refere ao tetragrama sagrado das escrituras judaicas, IHWH, que representa o nome de Deus. Além disso, lemos no Tao Te Ching que o Tao, ou caminho, gera o um, que gera o dois, que gera o três, que, por sua vez, gera todas as outras coisas. (N.T.)

[15] Através de muitas encarnações, nosso “si-mesmo” é derivado dos atributos com os quais dotamos nosso Deus, o ego abstrato ou princípio conceptivo. Toda concepção é uma negação de Kia, daí sermos sua oposição, nosso próprio mal. Como prole de nós mesmos, somos o conflito daquilo que negamos e afirmamos de Kia. Talvez pareça impossível sermos cuidadosos o bastante em nossa escolha, pois ela determina o corpo que habitamos.

[16] Spare usa o termo “god-head”, de conotações interessantes. O sufixo “-head”, parecido com “-hood”, determina estado, qualidade, condição de algo. Assim, de modo geral, “godhead” significa “divindade”, mas também representa a Trindade nas tradições cristãs (Pai, Filho e Espírito Santo) e a essência e natureza de Deus nas tradições judaicas. O fato de Spare separar sufixo e prefixo por um hífen gera ainda um efeito irônico, uma vez que “head”, adicionado como sufixo em palavras compostas, pode significar: a) o sujeito que é fã ou devoto de alguma coisa, como em “jazzhead” (jazzista); b) o sujeito viciado em algo, como em “pothead” (maconheiro); c) em composições depreciativas, como “airhead” (cabeça-de-vento). (N.T.)

[17] Em uma famosa história contada pelo filósofo chinês Chuang-Tzu, ele sonha que é uma borboleta e, ao acordar, se questiona se ele seria Chuang-Tzu que havia sonhado ter sido borboleta, ou se seria uma borboleta agora sonhando que era Chuang-Tzu. Ver The Book of Chuang Tzu (Trad. Martin Palmer. Londres: Penguin Books, 2006). (N.T.)

[18] O poço do abismo do Apocalipse, de onde sai a Besta. (N.T.)

[19] Aqui Spare elucida mais um aspecto do “Nem isto–Nem aquilo” ao colocar a desidentificação como fundamento para chegar à verdade-de-si. Spare busca uma percepção interna no recolhimento e silenciamento em relação aos objetos dos sentidos — paradoxalmente, no entanto, quanto maior o esforço para resistir ao mundo exterior, menor o desapego, ou quanto mais se luta para atingir o silêncio, menos silêncio se atinge. Ele já havia mencionado esse paradoxo no início (“ao se atingir a concentração, tudo que se quer é a des-concentração”, p. 215), e mais adiante, ao falar da postura de morte, mencionará a necessidade de desenvolver uma disciplina na prática do recolhimento.

Não há dúvida da influência de diferentes escritos indianos aqui, que chegaram até Spare via Madame Blavatsky e a teosofia. No Bhagavad Gita, por exemplo, traduzido para o inglês por Annie Besant e publicado em Londres em 1895, lemos: “O homem, ao refletir sobre os objetos dos sentidos, concebe por eles um apego; do apego surge o desejo; do desejo surge a raiva; da raiva procede a ilusão; da ilusão, memória confusa; da memória confusa, a destruição da Razão; da destruição da Razão, ele perece. Mas o si-mesmo disciplinado, movendo-se entre os objetos sensíveis e mantendo os próprios sentidos livres de atração e repulsão, dominado pelo si-mesmo, segue em direção à paz”. Ver The Bhagavad Gita or The Lord’s Song (Trad. Annie Besant. Londres: Theosophical Publishing Society, 1895), p. 36-37. (N.T.)

[20]Man of sorrows” é uma expressão bíblica mencionada em Is 53:3 para se referir a Cristo e também a imagens de Cristo em que ele aparece com o peito nu e chagas à vista. (N.T.)

[21] De modo geral, Spare muda de pessoa sem muito critério em sua escrita. Para evitar ambiguidades, até aqui fez-se o uso de “tu” para se referir ao leitor; passa-se agora para “você” pela informalidade das instruções, algo bem nítido no texto em inglês. (N.T.)

[22] Sem sexo.

[23] Essas dualidades têm uma analogia com certos princípios sexuais primordiais na natureza. Elas estão desenvolvidas no alfabeto sagrado, pois são muito abstrusas para serem explicadas por uma gramática e palavras ortodoxas.

[24] O ego.

[25] A crença que sempre busca negação–plenitude por multiplicação fica livre quando nos atemos a esse princípio.

[26] “Ele”, o ego, agora se torna o “Absoluto”.

[27] Note que a explicação dos três passos da postura de morte é feita por Spare de trás para frente, começando pelo terceiro passo — a sequência de fato é olhar no espelho até silenciar a mente; respiração e estiramento; e relaxamento. Isso gerou muitas interpretações equivocadas, como a crença de que o sujeito se põe de pé depois do estado de relaxamento, algo facilmente sanado com uma leitura mais atenta. O primeiro a criticar esse tipo de leitura da “técnica mágica mais mal compreendida no mundo” foi Alan Chapman, ex-membro da IOT londrina, no ensaio “The Death Posture: A Definitive Instruction”, em Alan Chapman e Duncan Barford, The Blood of the Saints (Londres: Heptarchia, 2009). Outros equívocos acabaram perpetuados também por Kenneth Grant e Peter Carroll, mas em outros aspectos e de forma mais sutil. Ver o ensaio “Nem uma vida nem outra” (op. cit., 98-105). (N.T.)

[28] Kenneth Grant, em Cult of the Shadow (Letchworth: Frederick Muller Limited, 1975), ao estabelecer a base do que nomeou Zos Kia cultus, menciona a retenção do sêmen e estabelece relações com outras fontes, especialmente Wilhelm Reich (1897-1957). Não há dúvida de que Spare esteja falando da transmutação da energia sexual como parte da experiência atávica, e não parece que havia muitas fontes disponíveis na época que mencionassem esse tipo de prática — de certo modo, a sensibilidade de Spare o levava a estabelecer relações ou a falar de conceitos que só viriam a ser pensados ou analisados décadas depois. No Anátema de Zos ele se refere ao sêmen de novo (“Pensam que conseguem refrear o sêmen SENTIMENTALMENTE?”), e de modo mais implícito em alguns pontos do Grimório zoético de Zos (ambos nesta edição, p. 360 e p. 469-492 , respectivamente).

A prática de reter o sêmen para manipular a energia cósmica costuma ser relacionada à filosofia tântrica, mas hoje sabemos a origem desse equívoco comum. Christopher D. Wallis, um dos grandes estudiosos contemporâneos sobre tantra, diz que existe apenas uma fonte em que a prática do sexo como ritual é ensinada, mas, além de nunca ter sido traduzida, o ritual descrito é totalmente diferente do que foi incorporado ao dito “tantra sexual”. Ainda assim, descreve o que seria o único rito sexual presente na literatura tântrica, mais especificamente no Brahmayāmala: “o asceta Śākta Śaiva arranja uma bela moça ‘ávida por sexo’ e lhe oferece todas as joias que sua condição permite, e copula com ela todos os dias durante seis meses sem ejacular para obter poderes especiais através de um esforço hercúleo ‘difícil de ser praticado até pelos deuses’. Se ele ejacula por acidente (por exemplo, durante o sono ou porque ela o faz ejacular), ele precisa repetir 10 mil vezes seu mantra; se a ejaculação for proposital, deve começar tudo de novo”. De todo modo, ressalta-se com isso a originalidade e a visionariedade de Spare. (N.T.)

[29] A moral elementar ou medo do que é desagradável.

[30] E de fato mata quando temida.

[31] Remover não é eliminar. Algumas leituras de Spare falam em eliminação do desejo e da crença, o que é uma contradição, pois o próprio conceito de “Nem isto–Nem aquilo” não permite a eliminação de nada. O que se busca é deslocamento, afastamento, superação, distanciamento mental, desidentificação. Ver o ensaio “Nem uma vida nem outra” (op cit., p. 55-116).

[32] No manual de instruções das Cartas Surrealistas para Previsão de Corridas, Spare diz: “Qualquer pessoa pode ter sucesso com estas cartas. Mas, naturalmente, uma pessoa pode ter mais sucesso do que outra, devido a sua ‘sorte’ e aptidão para arriscar” (Arte e magia do caos, p. 383). (N.T.)

[33] Muitas relações com o Tao Te Ching podem ser estabelecidas neste parágrafo e no próximo. Aqui, com o capítulo 19: “Anule o sagrado e abandone a inteligência / E o povo cem vezes se beneficiará / Anule a bondade e abandone a justiça / E o povo retornará ao amor filial e ao amor paternal / Anule a engenhosidade e abandone o interesse / E não haverá mais ladrões nem roubos / Se estas três frases ditas não são o suficiente / Então faça existir aquilo em que se possa confiar / Encontrando e abraçando a simplicidade / Reduzindo o egoísmo e diminuindo os desejos”. (N.T.)

[34] Em A palavra viva de Zos, Spare diz: “A virtude é positiva quando somos virtuosos para conosco, pois de que modo poderíamos amar os outros se não estivermos aptos a amar a nós mesmos? Não prejudicar ninguém sem motivo deveria ser o todo da ética do comportamento para com todos os seres” (Ver Arte e magia do caos, p. 520). Isso ajuda a desfazer algumas interpretações equivocadas do pensamento de Spare, especialmente as relacionadas a O livro do prazer que foram retiradas de contexto, lidas quase sempre desconsiderando o que é dito poucas linhas antes ou depois. Em todo esse parágrafo, Spare vai desconstruindo valores morais distorcidos, revelando seu pleno sentido e valor naquilo que a sociedade capitalista vê como um desvalor, embora vista uma fachada de disfarce. Tende-se a pensar que, quanto mais se conhece, mais conhecimento se adquire — Spare diz o contrário, é desconhecendo que se adquire conhecimento. Do mesmo modo, é desacreditando que se acredita, é amando a si que se ama ao outro, é transgredindo que se transcende, é não desejando que se realiza — por fim, não é dando que se beneficia das coisas. A caridade perfeita não é algo que se faz pelo outro, mas o amor que nos conduz a nós mesmos por nos conduzir ao outro e a Deus. Como ficará claro em Anátema de Zos e O foco da vida, Spare faz muitas referências ao Novo Testamento. No caso da “perfeita caridade”, ver a “Primeira epístola de São Paulo aos Coríntios”, 1Cor 13, mais especificamente 13:2-3: “Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transpor montanhas, se não tivesse a caridade, nada seria. Ainda que distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria”. (N.T.)

[35] Tao Te Ching, capítulo 64: “Assim, o Homem Sagrado [o sábio] não age, por isso, não fracassa / Não se apega, por isso não perde / Os homens, na realização das atividades / Sempre fracassam em suas quase-conclusões / Cautela tanto no fim como no princípio / Conduz à atividade sem fracasso / Assim, o Homem Sagrado deseja através do não-desejo / Não valoriza as coisas de difícil aquisição / Aprende através do não-aprender / Possui o que ultrapassa todos os homens”. (N.T.)

[36] Do sexo, aliás, de tudo.

[37] O “Nem isto–Nem aquilo” emana um tetragrama de relatividades, cujos sexos estão evoluídos através de seu reflexo cruciforme e escapam à identificação. Em sua fusão, eles produzem a unidade (dualidade) e adquirem concepção. Propagando-se pela subdivisão, eles abarcam a eternidade, e em suas ramificações multiformes está a lei.

[38] Isto é, seu arco-íris.

[39] Possível referência à obra “Sobre a vida suprassensível”, do alemão Jakob Boehme (1575-1624), filósofo e místico cristão, escrita na forma de um diálogo entre mestre e discípulo. Já na abertura do texto, lemos: “O discípulo disse a seu mestre: ‘Senhor, como posso alcançar a vida suprassensível, de modo que possa ouvir e ver Deus?’ O mestre respondeu: ‘Filho meu, quando puderes lançar-te, ainda que por um instante, ao lugar jamais habitado por criatura alguma, então escutarás o que Deus fala’. Discípulo: ‘Esse lugar está próximo ou distante?’ Mestre: ‘Está em ti. E, se por um momento, pudesses cessar de todo teu pensamento e vontade, escutarias as impronunciáveis palavras de Deus’”. Ver Jacob Boehme, A sabedoria divina: o caminho da iluminação (Trad. Américo Sommerman. São Paulo: Attar Editorial, 1994), p. 67.

[40] Capítulo sobre atração-de-si omitido.

[41] Esse é o teste. Aquele que duvida naturalmente se submeteria.

[42] Sendo o meio a simplicidade, o sujeito é relativamente livre para criar seus próprios requisitos e dificuldades — isto é, muitos retiros são absurdos e vão provar apenas a incapacidade do sujeito, e a não-existência dessa incapacidade é o que ele começa a provar. De uma única vez, ele estabelece seu limite e sua servilidade.

[43]Without capitalization”. A expressão possibilita três interpretações possíveis, todas plausíveis, dada a obra de Spare como um todo: a) sem fazer da prática um meio para adquirir capital; b) sem usar a situação pensando em objetivos egoístas; c) sem “usar maiúsculas” — no caso, sem tratar a magia como um conceito ou algo de difícil apreensão.  (N.T.)

[44] Simplesmente um desejo natural.

[45] Esse é o ponto em que se costuma atribuir a Spare, de maneira equivocada, a ideia de que sigilos devem ser “carregados” no momento do orgasmo. Para uma discussão desse tópico, ver o ensaio “Nem uma vida nem outra” (op cit., p. 102). (N.T.)

[46] Esta é apenas uma fórmula resumida para aqueles cuja crença está inteira na lei da dualidade — pessoas comuns, que cuidam de suas famílias e estão seguindo seus desejos. A fórmula é válida para qualquer propósito.

[47] Por exemplo, a perda da fé em um amigo, ou uma união que não correspondeu às expectativas.

[48] Isto é, o sigilo. (N.T.)

[49] Se esse êxtase se manifestar fisicamente, o sujeito pode imaginar o corpo de outra pessoa — ele tem o sigilo ou a emergência. Embora esse não seja o propósito original, será para ele muitíssimo agradável.

[50] Bebida típica do sul da Inglaterra e muito popular até fins do séc. XIX. Era feita com uma mistura de vinho, leite, uma fruta cítrica (geralmente limão ou laranja) e açúcar.

Diversas tradições orientais comparam o contato do ser humano com o Divino à sensação de tomar um néctar, doce e agradável — o “néctar da vida” —, e usam alguma bebida como símbolo. Tomar o néctar dos deuses é embriagar-se de força vital. (N.T.)

[51] O riso, neste caso.

[52] Isso se atinge isolando o desejo a um único sentido; portanto, se por esta fórmula se usa o ouvido como veículo, ouve-se a música mais transcendental já concebida, sendo as vozes e a harmonia de cada animal e existência humana concebíveis, e o mesmo vale para todos os sentidos.

[53] Impossível não fechar este capítulo sem mencionar o psicólogo e psiquiatra francês Pierre Janet (1859-1947) e sua teoria sobre a desordem dissociativa. Diversos conceitos do pensamento de Janet podem ser vistos em toda a obra de Spare, desde o papel da linguagem na existência humana e sua função social (na fala) e intelectual (símbolos) até as suas reflexões sobre as crenças, as ideias fixas (“entusiasmo por um objeto”) e automatismos herdados de uma maneira ou de outra — para citar apenas alguns. Em “La tension psychologique et ses oscillations”, diz Janet: “Sob uma variedade de nomes como reflexos, reflexos mentais, tendências, automatismos, instintos, hábitos, sistemas psicológicos e complexos, muitos autores demonstraram que seres vivos e pensantes tendem a reagir da mesma maneira a certas mudanças que lhes ocorrem na superfície do corpo”. Pierre Janet, “La tension psychologique et ses oscillations”, em G. Dumas (org.), Nouveau traité de psychologie, tomo 4 (Paris: Alcan, 1934), p. 386.

Phil Baker, em sua biografia sobre Spare (Austin Osman Spare: The Life and Legend of London’s Lost Artist (Londres: Strange Attractor, 2011)), salienta ainda que as ideias de Janet foram introduzidas ao público inglês via Frederic Myers, fundador da Sociedade de Pesquisa Psíquica, cujas ideias não eram muito bem recebidas pela comunidade científica. O monumental The Human Personality and its Survival After Death, reunião de artigos publicada em 1903, dois anos após sua morte, ainda é considerado uma das obras mais importantes sobre os estudos de fenômenos psíquicos. (N.T.)

[54] O momento de “vacuidade” ou de desidentificação, em que a lei da dualidade “cessa” — o estado de quietude da mente atingido pela meditação (ou postura de morte). (N.T.)

[55] Capítulos sobre sonhos diurnos e noturnos para o prazer foram omitidos.

[56] Por esse sistema, você saberá exatamente a que (você acredita que) seu sigilo deve se relacionar. Se usasse qualquer forma estupidamente, seria possível que acabasse conjurando exatamente aquilo que não quer, a mãe da insanidade, ou o que costuma sempre acontecer, absolutamente nada. Sendo esse um sistema único, qualquer resultado obtido que não seja por ele é acidental. Além disso, você não precisa se vestir como um magista, feiticeiro ou sacerdote tradicionais, construir templos caros, obter um pergaminho virgem, sangue de bode preto etc. — na verdade, nada de teatral, espalhafatoso ou enganoso.

[57] Crença livre ou energia, isto é, um desejo frustrado, não ainda uma obsessão.

[58] Há seis métodos de sigilos empregados neste livro, e cada um corresponde a um estrato diferente. O que mostro aqui é ilustrativo e a ideia fundamental de todos eles, a partir da qual qualquer pessoa pode desenvolver seus próprios sistemas. As condições etc. acabam necessariamente evoluindo por si próprias logo depois. Além disso, as pessoas têm mais poder de criação e mais originalidade com um meio limitado de expressão.

[59] Não se trata da passividade do mediunismo que abre a mente para o que se chama influência externa — energia desencarnada que geralmente não tem propósito melhor do que bater em mesas. Existem muitos meios de atingir esse vazio. Eu menciono o mais simples — não há necessidade alguma de se crucificar. Drogas são inúteis, e fumar e se entregar à inércia são os meios mais difíceis.

[Comentário da tradução: Em meados do século XIX, uma série de manifestações mediúnicas começou a acontecer nos Estados Unidos através de pancadas e batidas em mesas e móveis de madeira, além de objetos que voavam sem motivo aparente. Os fenômenos se espalharam pelos Estados Unidos e Europa e começaram a ser observados como não-aleatórios especialmente por Allan Kardec, dando início à sistematização da doutrina espírita.]

[60] Isto é, a memória ou parte subconsciente da consciência.

[61] Toda mendicância, autopunição, sacrifício etc. é apenas uma tentativa de escapar à lei da reação ou karma e, ao simbolizar a leitura dessas leis, eles esperam extrair esse poder da natureza. Com efeito, faquires e pedintes simbolizam aquelas encarnações que são desagradáveis (devidas a eles como punição) por escolha, e não por necessidade, acreditando que, por esse método, eles escaparão de novos males — daí eles sacrificarem suas ações passadas e as adorarem como deidades.

[62] Os habitantes do limiar do subconsciente, em seu sofrimento, são literalmente a consciência ou a moral viva. Por isso, todo desenho automático, no começo, é sentimental ou mórbido: não devemos temer a plausibilidade desses habitantes; do contrário, não expressamos nada mais que nosso próprio desprazer.

[Comentário da tradução: Na obra de Spare, os “habitantes do limiar” aparecem pela primeira vez em Terra Inferno, em que há uma nota no fim falando sobre o termo. Ver Arte e magia do caos, op. cit., p. 570-571, 580).

[63] Uma linha em contínua evolução que evita retornar à sua origem, movida por uma reconsideração constante que sugere novos movimentos, como uma linha que dança.

Não como a rebeldia infantil contra o aprendizado, demonstrada como uma repetição de círculos vertiginosos.

[64] Capítulos sobre maldições, leitura da sorte e profecia foram omitidos.

[65] A “reta via” aparece também em Terra Inferno justamente nos versos autobiográficos: “E me perdi com ela rumo à reta via” (p. 560). Embora a referência à “reta via” e outros elementos remontem ipsis litteris à Divina comédia de Dante Alighieri, mais especificamente à tradução de Henry Francis Cary que circulava em Londres na época, alguns autores, como William Wallace, mencionam o caminho central da Árvore da Vida como referência. (N.T.)


Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.

Deixe um comentário


Apoie. Faça parte do Problema.