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O filósofo, estudante de estética e professor emérito da Sorbonne, Etienne Souriau, fomentou um verdadeiro avivamento dos estudos antropológicos depois de ter estudado os múltiplos modos de existência. Eu sugiro uma conexão entre essas pesquisas e o universo do ocultismo.
Para explicar rapidamente no que consistem essas existências múltiplas, e como elas podem ser trabalhadas na mágia, pensemos primeiro em como uma obra de arte apresenta múltiplas dimensões de existência
Para exemplificar, vamos olhar uma obra de Austin Osman Spare, chamada “Sigmund Freud”, de 1955.
Como existência material, essa obra é simplesmente pastel sobre painel – a materialidade pura da obra. A meterialidade é o modo de existência em foco do cientista
Como existência fenomenal, ela é luz e a cores. A existência fenomenal é como certas qualidades sensíveis se apresentam para um sujeito que com elas se relaciona. O fenomenal é a existência em foco do sedutor.
Como existência coisal, a obra de arte revela seres imaginais, representações que podem ou não se referir às coisas ou pessoas do mundo, mas que são existências independentes da realidade material. Nessa obra de Spare, temos a representação de Freud, rostos que evanescem, algo que alude ao corpo sensível, como uma nuvem carnal, uma mulher que paira sobre a cabeça do pai da psicanálise e parece se fusionar a ele. O coisal é a existência em foco do visionário.
Por fim, a existência transcendental, difícil de explicitar em palavras, é uma maneira pela qual a obra parece nos fazer experimentar algo inominável, talvez uma “alma”, uma aura, ou um transbordamento inexprimíveis. O transcendental é a existência em foco do místico.
Analisamos dessa obra quatro modos de existência distintos: a existência material, a existência fenomenal, a existência coisal, e a existência transcendental. (ainda que na obra de Souriau encontramos outras formas de existência: os virtuais, os possíveis, os oníricos etc.).
O artista, e como veremos, o feiticeiro, ao manifestar a sua obra de arte, compõe um arranjo entre essas existências e as instaura na realidade, permitindo dessa maneira que todos esses modos de existência coexistam numa obra individual, um novo ser no mundo.
Spare teve que trabalhar com objetos, cores, com personalidades históricas particulares, imagens, virtualidades para poder trazer ao mundo e batizar essa obra chamada “Sigmund Freud”. (Podemos inclusive dizer que o Freud de Spare é uma criação independente do Freud da psicanálise, pois aqui o artista também se revela na obra. Digamos que essa é a existência de um Freud criado segundo a alma de Spare… Magia pura!)
Mas vamos falar mais diretamente de magia – pois é o que nos interessa. Se a palavra feitiço vem de feito, podemos perguntar: como é que é feito o feitiço? Nossa proposta é que é exatamente como se faz uma obra de arte. O feiticeiro precisa, primeiro, dar direito e atenção a essas várias formas de existência. Depois de se relacionar com algumas dessas formas de existência, o feiticeiro se envolve e começa um inventário, ou seja, investe numa composição de coisas encontradas dentro e fora de si.
Pensemos em um exemplo para esclarecer essa reflexão: um feiticeiro sonha com uma plantinha viva que é sua amiga (temos aqui uma existência onírica, ou, segundo a terminologia usada, coisal, pois é um ser que possui uma consistência, uma identidade própria, ainda que não possua matéria). Depois disso, o bruxo, encantado pela plantinha amiga, decide intensificar a presença desse ser.
Digamos então que o feiticeiro dê um nome para a plantinha onírica, crie um símbolo para ela, imagine sua voz, suas atitudes, sua personalidade; depois disso, junte alguns galhos, massinha e pedaços de folhas e faça uma escultura que represente o amigo onírico.
Temos aqui um ato de feitiçaria? De arte ? De brincadeira séria? Sim! Tudo isso. A plantinha dos sonhos agora passou a ter muitas camadas de existência aos olhos do feiticeiro e por essa razão é uma existência mais estável e intensiva do que quando era exclusivamente sonho. Mas é importante lembrar que isso ocorre pelo fato de o feiticeiro se relacionar em múltiplas esferas da existência e manipular, segundo a Arte, elementos diversos visando a instauração de seu trabalho mágico.
Em suma, um feitiço é sempre uma manipulação de existências visando uma nova presença no mundo.
Evoé Sabbah!
Kaio Felipe Cabrera é psicanalista e professor de psicanálise e filosofia contemporânea. É doutorando em filosofia pela UFABC e participa do núcleo de estudos de Estética da mesma universidade. É vocalista da banda de metal moderno que aborda temas ocultistas chamada Strigah.
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