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Magia Cerimonial

O Poder das Palavras

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por Obito

Na primeira era o importante era o que se diz.
Na segunda era o importante era o como se diz.
Na terceira era o importante é quem fala.”

– Morbitvs Vividvs – A Epopéia do Advogado do Diabo

Tirado de O Código dos Códigos de Northrop Frye:

Penso que se pode ver na maior parte da literatura grega anterior a Platão, sobretudo em Homero, ou nas culturas pré-bíblicas do Oriente Próximo, ou ainda em muito do Velho Testamento, uma concepção de linguagem que é poética e “hieroglífica”, não no sentido de uma escrita de sinais, mas no sentido de se usarem as palavras como um tipo particular de sinal. Neste período há relativamente pouca ênfase na separação entre sujeito e objeto; ao invés disso, a ênfase recai sobre o sentimento de que sujeito e objeto estão interligados por uma energia ou poder comum a ambos. Muitas sociedades “primitivas” possuem palavras que expressam essa energia comum à personalidade humana e à natureza circundante e que são intraduzíveis em nossas categorias correntes de pensamento. Atravessam, no entanto, quase todas as categorias daquelas sociedades: a mais conhecida é a palavra melanésica mana . A articulação das palavras pode dar corpo a este poder comum; daí emana uma forma de magia, em que os elementos verbais, como “fórmulas” de feitiço ou de encantamento, ou coisas parecidas, ocupam um papel central. Um corolário deste princípio é o de que potencialmente pode haver magia em qualquer uso que se faça das palavras. Em tais contextos as palavras são forças dinâmicas, são palavras de poder.

Assim, saber o nome de um deus ou de um espírito dos elementos pode dar algum controle sobre ele; trocadilhos e etimologias de fundo popular sobre nomes de gente ou de lugares afetam o caráter da pessoa ou lugar que receba um desses nomes. Antes das batalhas é comum guerreiros jactarem-se com exortações que podem ser palavras de poder para eles. Para os deuses um homem jactar-se é sempre algo passível de objeção, e isso faz sentido: é possível que através das palavras ele adquira o poder que ele de fato deseja. Esse poder quase físico do pronunciar palavras também se expressa, por exemplo, no voto que não pode ser quebrado, mesmo nos votos temerários que começam muitas das estórias do legendário popular, como o de Jefté, que o leva a dizer depois: “eu abri a minha boca ante o Senhor, e não posso voltar atrás” (Juizes, 11:35). Um pouco de energia mágica sempre se descarrega quando um mito sacrossanto é lido num ritual religioso, como se lia o Enuma elish4, mito babilônico da criação, na passagem do Ano Novo.

Dizer que assim se procedia para animar o ciclo natural a se manter por mais um ano talvez seja carregar um pouco demais nas tintas quanto ao conceito ali presente; mas uma expressão articulada e controlada de palavras pode ter alguma repercussão sobre a ordem natural lá onde sujeito e objeto não estão claramente separados e há formas de energia que são comuns aos dois.

Todas as palavras nesta fase da linguagem são concretas: em verdade não há abstrações. Origens do pensamento europeu, o monumental estudo de Onians5 sobre o vocabulário de Homero, mostra como em seus poemas são intensamente físicas concepções como as de alma, mente, coragem, emoção, pensamento. Elas estão solidamente ancoradas em imagens físicas ligadas a processos corporais ou a objetos específicos. Da mesma forma a palavra kairos, que veio a significar um momento crucial no tempo, originalmente queria dizer a ponta de uma flecha. Do ponto de vista da crítica literária isto quer dizer que, se as concepções de Homero não eram metafóricas para ele (quando ele emprega uma figura de linguagem em geral é um símile), elas devem sê-lo para nós. Do modo como pensamos nas palavras, apenas metáforas podem expressar, na linguagem, o sentido de uma energia comum a sujeito e objeto. A expressão central da metáfora é o “deus”, o ser que, como deus sol, deus-da-guerra, deus-do-mar, ou deus-seja-o-que-for, faz identificar uma forma de personalidade com um aspecto da natureza.

As operações da mente humana também são controladas por palavras de poder, fórmulas que se transformam em focos da atividade mental. Nesta fase a prosa é descontínua, uma série engrolada de afirmações epigramáticas ou oraculares que não estão ali para serem discutidas, mas aceitas e ponderadas, e seu poder absorvido por um discípulo ou leitor. Parece que os filósofos présocráticos, como Heráclito ou Pitágoras, eram essencialmente professores de viva voz, ou gurus. O que deles sobreviveu consiste sobretudo em aforismas descontínuos que têm uma referência cosmológica, como o “tudo flui” de Heráclito.

Ou, nas palavras de Alan Moore:

Existe alguma confusão sobre o que a magia realmente é. Acho que isso pode ser esclarecido se você apenas olhar para as primeiras descrições de magia. A magia em sua forma mais antiga é freqüentemente referida como “a arte”. Eu acredito que isso é totalmente literal. Eu acredito que magia é arte e que arte, seja escrita, música, escultura ou qualquer outra forma é literalmente mágica. A arte é, como a mágica, a ciência de manipular símbolos, palavras ou imagens para conseguir mudanças na consciência. A própria linguagem sobre magia parece falar tanto sobre escrita ou arte quanto sobre eventos sobrenaturais. Um grimório, por exemplo, o livro de feitiços é simplesmente uma maneira elegante de se referir à gramática. Na verdade, lançar um feitiço é simplesmente soletrar – indeed, to cast a spell, is simply to spel- manipular palavras, mudar a consciência das pessoas. E eu acredito que é por isso que um artista ou escritor é a coisa mais próxima no mundo contemporâneo que você provavelmente verá de um Xamã.

Acredito que toda cultura deve ter surgido do culto. Originalmente, todas as torneiras de nossa cultura, sejam nas artes ou nas ciências, eram do domínio do Xamã. O fato de que nos tempos atuais, este poder mágico degenerou ao nível de entretenimento barato e manipulação, é, eu acho uma tragédia. No momento, as pessoas que estão usando o xamanismo e a magia para moldar nossa cultura são anunciantes. Em vez de tentar acordar as pessoas, seu xamanismo é usado como um opiáceo para tranquilizar as pessoas, para torná-las mais manipuláveis. Sua caixa mágica de televisão, e por suas palavras mágicas, seus jingles podem fazer com que todos no país pensem as mesmas palavras e tenham os mesmos pensamentos banais, tudo exatamente no mesmo momento.

Em toda a magia, existe um componente linguístico incrivelmente grande. A tradição bárdica da magia colocaria um bardo como sendo muito mais alto e temível do que um mago. Um mágico pode amaldiçoar você. Isso pode deixar suas mãos engraçadas ou você pode ter um filho nascido com um pé torto. Se um bardo não colocasse uma maldição sobre você, mas uma sátira, isso poderia destruí-lo. Se fosse uma sátira inteligente, poderia não apenas destruí-lo aos olhos de seus associados; isso o destruiria aos olhos de sua família. Isso iria destruir você aos seus próprios olhos. E se fosse uma sátira bem formulada e inteligente que poderia sobreviver e ser lembrada por décadas, até mesmo séculos. Então, anos depois de sua morte, as pessoas ainda podem estar lendo e rindo de você, de sua miséria e de seu absurdo. Escritores e pessoas que dominavam as palavras eram respeitados e temidos como pessoas que manipulavam magia. Nos últimos tempos, acho que artistas e escritores se deixaram vender rio abaixo. Eles aceitaram a crença predominante de que a arte e a escrita são meramente formas de entretenimento. Eles não são vistos como forças transformadoras que podem mudar um ser humano; que pode mudar uma sociedade. Eles são vistos como simples entretenimento; coisas com as quais podemos preencher 20 minutos, meia hora, enquanto esperamos morrer. Não é função do artista dar ao público o que o público deseja. Se o público soubesse do que precisava, então não seria o público. Eles seriam os artistas. É função dos artistas dar ao público o que ele precisa.


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