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por Arthur Moros
Saturno, como era de se esperar, é uma figura significativa nas religiões gnósticas do período clássico. O termo “gnóstico” refere-se a um amplo grupo de cultos de mistério que compartilhavam um conjunto comum de termos e ideias, mas o gnosticismo nunca se tornou um monólito como a religião cristã, que acabou por suplantar e suprimir o movimento gnóstico. Um resumo muito básico do mito gnóstico clássico poderia ser assim formulado: no princípio, há a Luz Primordial — às vezes chamada de pleroma (“plenitude perfeita”), ou alternativamente, de kenoma (“vazio perfeito”). Além da luz, há a escuridão do Caos indiferenciado. Do Caos emerge uma consciência, o Demiurgo (“Arquiteto Divino”), que, ao alcançar a autoconsciência, cria seis Arcontes (“governantes espirituais”) para servirem como seus ajudantes. Juntos, o Demiurgo e seus Arcontes geram os sete reinos celestes, que incluem o mundo material como parte do reino mais baixo. Eles também criam populações inteiras de seres divinos e angélicos para habitar os sete reinos, e eventualmente criam a vida humana e animal na Terra.
A tradição gnóstica sugere que o surgimento do Demiurgo foi, no entanto, uma aberração da ordem natural, e que o pleroma/kenoma espiritual está essencialmente em oposição ao cosmos material. Sendo assim, muitos (embora não todos) movimentos gnósticos vilificavam a carne e buscavam suprimi-la para fortalecer ou nutrir o espírito. Esse ódio ao mundo material pode ter sido herdado do Cristianismo, onde também se manifesta.
“Saturno”, de P.P. Rubens
Apesar da linguagem helenística utilizada por muitos grupos gnósticos, a divindade saturnina possuía conexões com a tradição religiosa abraâmica. O Demiurgo, por exemplo, era entendido como a divindade que revelou a Torá a Moisés, e assim a religião judaica é compreendida por muitos autores gnósticos como inteiramente demiúrgica. Isso faz sentido, especialmente considerando o caráter cosmocêntrico da Torá, que enfatiza a importância do mundo material e que permanece em grande parte silenciosa sobre o além espiritual. Moisés é considerado um profeta saturnino, um revelador de leis escritas pelo arquiteto cósmico.
O Cristianismo, por outro lado, é uma religião plerômica, pois suprime a natureza cósmica do ser humano em favor de sua natureza “espiritual”.
Muitos dos movimentos gnósticos clássicos identificaram Saturno com o Demiurgo, o arquiteto cósmico. Essa associação ocorre explicitamente em virtude da ligação de Saturno com o domínio Hermético ou Neoplatônico sobre o sétimo céu. Ela também se manifesta implicitamente por meio da suposta associação de Saturno com a divindade do Antigo Testamento, o que é ecoado mais tarde na tradição do Picatrix, que afirma que Saturno é o senhor dos judeus, por meio da celebração do sábado [Nota do Tradutor: a associação entre sábado e Saturno está presente na etimologia da palavra em inglês, “Saturday”, derivada de “Saturn’s Day”, e no latim “dies Saturni”].
Essas associações tornam-se evidentes quando se examinam diversos textos que registram crenças gnósticas. Saturno, como Demiurgo, é chamado por vários nomes na tradição gnóstica. O mais comum é Ialdabaoth, que é aramaico para “filho (yald) do caos (baoth)”. Isso faz referência à tradição gnóstica segundo a qual Saturno emergiu do Caos primordial, que Ele depois utiliza para criar o cosmos e suas criaturas. Saturno também é chamado, em textos mais polêmicos, de Saklas (“tolo”) e Samael (“venenoso de Deus” ou “cego de Deus”), um nome angélico conhecido da tradição hebraica.
Menos comumente, outros textos referem-se à divindade saturnina como Abrasax, Abraxas ou Ariael (“Leão de Deus”).
O texto gnóstico intitulado “A Origem do Mundo” identifica diretamente os sete poderes — isto é, o Demiurgo e os seis Arcontes — com os sete planetas. Ele afirma:
> “Sete apareceram no caos, andróginos. Eles têm seus nomes masculinos e seus nomes femininos. O nome feminino é Pronoia (Previsão) [e o nome masculino é] Sambathas, que é ‘semana’. E seu filho se chama Yao: seu nome feminino é Senhorio. Sabaoth: seu nome feminino é Deidade. Adonaios: seu nome feminino é Realeza. Elaios: seu nome feminino é Ciúme. Oraios: seu nome feminino é Riqueza. E Astaphaios: seu nome feminino é Sofia (Sabedoria). Estes são os sete poderes dos sete céus do caos. Agora, o pai primordial Ialdabaoth, como possuía grandes autoridades, criou céus para cada um de seus descendentes por meio da expressão verbal — criou-os belos, como lugares de morada — e em cada céu ele criou grandes glórias, sete vezes excelentes. Tronos e mansões e templos, e também carruagens e espíritos virgens até um ser invisível e suas glórias — cada um possui isso em seu céu; poderosos exércitos de deuses e senhores e anjos e arcanjos — miríades incontáveis — para que pudessem servi-lo.”
Saturno também é diretamente associado a Ialdabaoth no texto gnóstico O Livro Secreto de João, que identifica Saturno com os reinos planetários e os dias da semana. O texto diz:
> “Ialdabaoth é o primeiro governante, que tomou grande poder de sua mãe. Então ele a deixou e afastou-se do lugar onde nasceu. Ele tomou o controle e criou para si outros reinos com fogo luminoso, que ainda existe. Ele acasalou com a insensatez dentro de si e produziu autoridades para si… Ialdabaoth posicionou sete reis, um para cada esfera celestial, para reinar sobre os sete céus, e cinco para reinar sobre a profundidade do abismo… Os governantes criaram sete poderes para si… Esta é a natureza sete vezes dobrada da semana.”
A associação planetária dos sete poderes com os sete céus também é evidente em outros textos gnósticos (ou anti-gnósticos). O autor cristão Orígenes investigou a seita gnóstica dos ofitas, entrevistando seus membros e lendo alguns de seus textos como parte de sua pesquisa sobre movimentos “heréticos”. É claro, tanto pelos evangelhos gnósticos quanto pelos escritos de autores como Orígenes, que Saturno e os outros seis Arcontes planetários eram considerados forças controladoras do cosmos material, bem como criadores da vida material. Após a morte, a alma do iniciado gnóstico deveria ascender através dos reinos planetários sucessivos, munida de várias senhas que lhe permitiriam atravessar cada reino. É lógico pensar que, se alguém tivesse aprendido apenas as três primeiras senhas, poderia entrar no reino celestial do quarto Arconte, mas não conseguiria prosseguir além dele. Por contraste, a alma de um não-iniciado não conseguiria ascender além do reino celestial mais baixo (o lunar) e seria forçada a reencarnar no mundo material.
Surpreendentemente, Orígenes registra algumas das (supostamente) encantamentos gnósticos ofitas utilizados para acessar o reino saturnino, presumivelmente após a morte. Em sua obra polêmica Contra Celso, ele compartilha parte da tradição gnóstica de sua época (6.31):
> “Além disso, se alguém quiser entender melhor as práticas desses magos, por meio das quais eles tentam enganar as pessoas com segredos arcanos — com sucesso variável — então ouça o ensinamento secreto que os gnósticos recebem após passarem pelos portões espirituais, que são governados pelos arcontes. No Primeiro Portão, diga: ‘Salve, Rei Solitário! Tu és o primeiro poder, o obscurecimento da visão, a destruição total, sustentado pela sabedoria e pela previsão, pela qual sou purificado. […] Salve, senhor, que assim seja!’ No Segundo Portão, eles encontrarão Ialdabaoth. Diga: ‘Salve, Ialdabaoth, primeiro e sétimo, destemido e nascido para reinar. Tua mente é clara e pura. Tu és um filho perfeito [do Caos], portador do sigilo da vida, e abridor do portão selado do teu reino. Mais uma vez, passo por teu reino. Paz sobre mim, senhor, que assim seja!’”
É importante esclarecer que, embora a maioria dos grupos gnósticos considerasse o Demiurgo um ser inferior à unidade perfeita do pleroma/kenoma, a divindade saturnina (Ialdabaoth) não é uma inimiga da humanidade — na verdade, essa divindade é considerada o progenitor do cosmos material. No entanto, a maioria dos gnósticos, ao rejeitar o cosmos material, rejeitava também seu criador, e por isso Ele é vilificado como sendo de alguma forma “estúpido” ou “tolo” — o que é uma visão curiosa. De fato, a divindade saturnina é entendida como uma emanação do Caos, mas o Caos é a origem do Cosmos no pensamento gnóstico — não há antagonismo entre eles. A vida cósmica é sujeita à mudança (Caos), enquanto o pleroma representa a estase espiritual perfeita.
Curiosamente, os gnósticos valentinianos apresentaram um paradigma semelhante, porém distinto, no qual o Demiurgo governa todos os reinos celestiais, exceto a Terra, que está sob domínio de um Arconte rebelde (o Diabo). Assim, os sete reinos planetários estão em conflito com a Terra, e Saturno é o rei distante que busca “salvar” o iniciado do ciclo de renascimentos. É raro que Saturno assuma um caráter salvífico, mas nesta tradição (ao menos) é o que ocorre.
As descrições de Ialdabaoth o retratam como uma grande serpente com cabeça de leão, razão pela qual ele às vezes é chamado de “Ariael” (leão de Deus). Trata-se claramente de uma imagem dracônica, encontrada em algumas gemas e pergaminhos gnósticos; isso indica que alguns magos da tradição hermética utilizavam a imagem do Demiurgo como talismã. Como arquiteto e controlador do cosmos material, o Demiurgo e seus Arcontes seriam as forças lógicas às quais se poderia recorrer para provocar mudanças eficazes no mundo. A ideia de recorrer aos Arcontes horrorizaria muitos gnósticos, mas Orígenes, mesmo assim, conseguiu acessar e citar os encantamentos acima mencionados, e a frequência da imagem leão-serpente em textos e talismãs herméticos indica que Orígenes não estava fabricando a ideia de que alguns gnósticos dissidentes rejeitavam o modelo plerômico, preferindo servir ao Demiurgo em vez de resistir a Ele.
Em resumo, a divindade saturnina teve uma poderosa influência na formação do gnosticismo, embora os diversos movimentos gnósticos variassem consideravelmente quanto à natureza e ao papel de Saturno/Ialdabaoth. É evidente que essa divindade estava ligada ao Caos e era compreendida como arquiteta e construtora do mundo material, dos céus celestiais associados a ele e de seus habitantes. O Demiurgo também era acreditado interagir com os humanos tanto por meio da magia quanto por meio das tradições religiosas (como o Judaísmo), buscando cultivar uma relação positiva com a humanidade.
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