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Em 1987 ouvi “boatos” sobre um grupo pagão que trabalhava com o Sete Peles em São Tomé das Letras. Nas férias de fim de ano fui para lá, buscando o grupo que trabalhavam com o Homem Negro.
Antes de mais nada é necessário se ter em mente que na década de 1980 computadores, quando muito, eram usados para se rodar jogos toscos. Não havia uma internet que você pudesse buscar coisas. Conheci o trabalho de Lovecraft em 1982, e as obras traduzidas para o português eram raras, difíceis de serem encontradas. As obras estrangeiras então, valiam mais do que ouro para os fãs. As fontes de informação – o equivalente aos fóruns e sites de hoje em dia – eram os sebos e os livreiros. As informações sempre vinham cercadas de mistério e era comum você ouvir uma história contada 10 vezes antes que você encontrasse uma edição, geralmente em espanhol, para se ler.
Assim não era parte da realidade do pesquisador se sentar em um lugar, digitar Nyarlathotep, e conseguir uma lista de todos os nomes pelo qual ele é conhecido na literatura e fora dela. Você garimpava, coletava “lendas”, “certezas”, e tentava montar a sua colcha de retalhos a partir dai.
Na época um conhecido, envolvido com os ensinamentos de Rajneesh -que mais tarde seria conhecido como Osho – e da Grande Besta 666, Aleister Crowley, começou a conversar sobre um texto escrito por Blavatsky, em que mostrava que lúcifer não era o Diabo Cristão, como muitos acreditavam. Que grande parte dos nomes do “coisa-ruim” eram tirados de outras divindades. Lúcifer o Portador da Luz, o Pastor de Sóis, era uma divindade Romana, como Diabo era uma derivação de Devas – de onde vinha o “devil” em inglês – dos hindus, e muitas outras. Foi então que alguém perguntou sobre a alcunha de Sete Peles. Que Deus ou divindade antiga e estrangeira era originalmente conhecida como Sete Peles? A resposta dele foi algo nas linhas de: “Não uma Divindade! Mas é conhecido, até Lovecraft escreveu sobre ele! Ele vem do Egito.” Foram anos buscando o conto “Os Sonhos Na Casa da Bruxa”, ouvindo versões de boca a boca da história.
Foi lá que li sobre Nyarlathotep pela primeira vez. Naquela época qualquer coisa relacionada com Lovecraft era tratado com a mais absoluta reverência. Quando falaram de um grupo de bruxas em São Tomé que evocavam O Lavrador de Lágrimas e, através das descrições, me pareceu estarem falando de Nyarlathotep, quase enlouqueci. No fim de 87 consegui o dinheiro da passagem e fui para lá apenas com um boato na cabeça e a idéia de rituais sexuais envolvendo conhaque barato e um bando de ninfomanícas que praticavam uma forma secreta e sombria de ocultismo. O sonho de qualquer adolescente que cresceu lendo os livros de Eliphas Levi e Crowley.
O que se segue são as informações que consegui coletar naquele ano, em 1988, quando voltei para reencontrar o grupo. Quando tornei a retornar a São Tomé em 1990 o grupo aparentemente havia desaparecido, e não consegui contato com nenhum dos membros.
O Grupo não possuia um nome oficial, seus membros, na maioria mulheres, apenas se referiam a si como O Clã – “nosso clã se reunirá”, “hoje o clã terá um encontro”, “resolvendo assuntos do clã”.
São Tomé era – e é – considerado um local mágico. Muitos o associam com o Visuddha Chakra do planeta, “o que se fala aqui, se torna real”. Não sei se o fundador do Clã tinha conhecimento dos trabalho de Lovecraft ou não. Muita coisa eu simplesmente acabei supondo baseado no que me era contado. Mas foi graças a essa característica mágica de São Tomé que a cidade foi escolhida como sede.
O primeiro trabalho mágico do grupo foi a criação de uma porta astral – O Portal das Lágrimas, como o chamavam – para entrar em contato com o Homem Negro. Ele então levaria todos a um local impossível de ser localizado, onde o Sabat em si tomaria lugar. Esse portal foi criado através de rituais para se erguer um construto onírico. Um espaço de sonhos, onde através de meditação, do consumo de “drogas” ou da prática de sonhos lúcidos, os membros se encontrariam. Era uma Gestalt, compartilhada por todos os membros, que podia ser alcançado ao se afinarem em uma ressonância psíquica correta.
O Sabat astral – ou onírico – é uma imagem primal muito poderosa dentro das tradições ocultas, especialmente as pagãs. O objetivo da prática é se encontrar com Mestres ou Guias que não tem como se manifestar neste plano.
Em seu conto “Sonhos na Casa da Bruxa”, Lovecraft escreveu:
“Ele deve se encontrar com o Homem Negro e segui-los até o trono de Azathoth, no centro do Caos Derradeiro. Foi isso o que ela disse. Ele deve assinar o livro de Azathoth com seu próprio sangue e adotar um novo nome secreto, agora que seus estudos e experimentos o haviam levado tão longe”.
O Clã acreditava que seu portal onírico era um elo com o Homem Negro, que os levaria ao Sabat. E novos membros tinham que se praticar a meditação para conseguir acesso ao portal. Uma maneira de se fazer isso era se criando um Grimório Onírico, chamado por eles de Livro dos Sonhos. Cada noite
Cada noite, os membros tentariam, através de seus métodos, chegar ao umbral do Portal das Lágrimas, para se encontrarem com o Homem Negro e ele pudesse levá-los ao Sabat. O Livro dos Sonhos era confeccionado da seguinte maneira:
1- O membro criava uma série de colagens de descrições do Sabat. As descrições eram as clássicas, o cenário eram o topo de montanhas ou em cavernas profundas. Você chegava voando até lá e o culto e a celebração se seguiam. E não apenas textos, mas imagens que exercessem a fascinação do membro – gravuras medievais, clássicas, etc.
2- O uso de “desenhos mágicos” que hoje são chamados de sigilos.
3- O uso de imagens mágicas – fetiches – que representassem o Portal.
4- Visitar locais físicos que se mostravam – na percepção do membro – ideais para a realização do Sabat. E então trazer de lá algum objeto (uma folha, uma pequena pedra, galhos, lascas de tinta, etc.) para servir de elo entre o sonho e o sabat.
5- Assinar o diário com o próprio sangue – alguns faziam isso de forma elaborada, usando o sangue como tinta, outros simplesmente deixavam o próprio sangue marcar uma página interna do Diário.
Mesclado a essas informações, o membro registrava também seus próprios sonhos e viagens astrais, com ênfase em sensações – cheiros, sons e imagens visuais recorrentes – que pudessem servir de base para um Sabat “coletivo”. Ou seja, sempre que experienciassem algo, uma pedra, um símbolo ou perfume que fosse relatado por mais de um membro, registravam no Livro, como evidência de características reais do Sabat.
Coloco aqui um dos exemplos que coletei de uma irmã do Clã:
“Eu estou de novo na velha casa abandonada ao pé do morro. Mas sei que não posso entrar na casa, a porta está podre e posso ver o interior pelas frestas, mas se abrir aquela porta entrarei na casa ‘falsa’. Tenho que dar a volta por trás do morro, encontrar o velho carvalho e descer ao labirinto. Descendo pelo oco do tronco chego nos túneis, repletos de bifurcações e cômodos assombrados por poltergeists, sigo o caminho correto indo sempre em direção ao símbolo do clã, desenhado nas paredes com tinta negra, indicando a direção correta. No fim dos corredores encontro a escada. Como sempre ela parece levar para baixo, para um porão que não existe nos túneis, mas cada degrau para baixo leva mais e mais para cima. Ainda não me acostumei com a sensação. Quando termino de descer/subir vejo que estou no centro da sala da casa. a parede mais afastada da porta é menor do que as outras, de novo tenho medo de me aproximar e ir encolhendo no caminho. Quando me aproximo da parede sinto uma presença ameaçadora, perto cantos. Luis me disse que são os cães, mas que não preciso me preocupar, tenho que abrir o Portal. Dentro do meu sonho me sento no chão e tento meditar para entrar em transe. Depois de algum não-tempo eu me levanto e é como se virasse do avesso. Atravessar o portal não é como atravessar uma porta, é como se o seu lado de dentro virasse seu lado de fora, e eu estou do outro lado do portal, e o Feiticeiro Elétrico está lá, me esperando. Ele me chama por meu nome mágico e partimos para o local de encontro.”
O sonho/jornada registrado é repleto de imagens/paisagens recorrentes no ocultismo: um labirinto subterrâneo, o encontro com um iniciador, um nome secreto, criaturas que guardam a passagem, etc.
O que me impressionou na época era a semelhança entre as experiências dos membros e as descrições de Lovecraft. Ângulos estranhos, escadas que levam para cima quando se desce, até os “Cães” me remeteram aos Cães de Tíndalos.
Como disse, o objetivo do grupo não era parodiar Lovecraft, ou criar práticas espelhadas em seus contos. Eles de fato parecem ter encontrado um ser místico real, que faz parte de um mundo místico real que foi descrito por Lovecraft em alguns de seus contos. A irmã me disse que ela chamava o Homem Negro de Feiticeiro Elétrico, mas que cada membro do Clã lhe dava um nome diferente.
Como era de se esperar, outros membros também descreviam a passagem pelo labirinto, apesar do local onde tinham que entrar não ser sempre a mesma casa. Todos eles falam que o labirinto era a única forma de se entrar no local “real”, se apenas usassem a porta de entrada iriam parar num cômodo falso.
De início, muitos membros se perdiam no labirinto, que parece mudar de forma cada vez que o encontram, mas com a prática – e as marcações – começaram a chegar ao final de forma mais rápida. As escadas descritas também não eram constantes. Para alguns era uma rampa que parecia subir e levava para baixo, para outros uma protuberância que se revelava uma buraco. Sempre uma ilusão de ótica sensorial. Também dentro do local, como no conto Sonhos na Casa da Bruxa, uma das paredes parecia estar em desacordo com a arquitetura do lugar, mostrando ângulos diferentes em suas quinas. E conseguindo meditar – dentro do sonho – são transportados para o outro lado da parede, onde o Homem Negro espera.
Outro ponto é que com a prática, os membros começaram a se encontrar no local do Sabat. Era comum que chegassem e se vissem cercado de animais, como corujas, cães, macacos… e então esses animais se transformavam em membros do clã. Diferentes membros relatavam os mesmos encontros dos próprios pontos de vista.
A fim de aumentar esta fusão crescente das experiências oníricas entre os membros, era costume que ao menos durante uma noite por mês todos se reunissem para realizar um ritual com todos presentes fisicamente no mesmo cômodo. Eles então se reuniam para dormir e sonhar. Quando despertavam compartilhavam suas histórias, era uma forma de aumentar ainda mais o entrosamento e intimidade entre os irmãos e irmãs do Clã.
Com o tempo, eles começaram a perceber que o Sabat não era atendido apenas por eles, outras presenças eram percebidas, descritas como elementais, incubi, sucubbi, etc. Alguns membros às vezes eram levados a outro lugar, um deserto árido que eles tinha certeza ser em outro planeta.
Assim que decidiram criar o Clã, e haviam estabelecido o trabalho de desenvolvimento onírico eles criaram um sigilo para o grupo. Era esse o símbolo que usavam para marcar o caminho correto pelo labirinto. Assim que chegavam ao local do Sabat, todos meditavam no sigilo, fazendo-o brilhar com a maior intensidade possível. O objetivo era que servisse como um farol na escuridão, atraindo outros membros para o local.
Uma série de fitas cassete com colagens dos membros lendo fórmulas mágicas e textos que julgassem serem pertinentes à atmosfera do Sabat.
Eu nunca soube há quanto tempo o Clã havia sido criado. O objetivo, como o de qualquer coven moderno, era o de praticar o paganismo. Nos Sabats tinham acesso à sabedoria arcana, insights e fórmulas de poder. Quando os encontrei pela primeira vez algo que todos com quem conversei foram unânimes em dizer que com a prática, vários “objetos” que viam em seus sonhos começaram a surgir no mundo desperto. Alguns chegaram a ver o Homem Negro caminhando pela cidade, em algumas noites, furtivo, muito mais alto do que um ser humano normal, uma figura negra e sem rosto.
Nunca houve uma ligação direta com o nome Nyarlathotep, nem com Lovecraft, mas os relatos, descrições e experiências que tive – nenhuma orgia no final das contas – me deixaram desconsertado. Parecia que Lovecraft havia conversado com os membros do grupo para escrever sua história, na época inclusive a crença geral era de que Lovecraft fosse um mago iniciado, algo que pode ser descartado hoje em dia. Como disse, quando voltei à cidade pela terceira vez, não encontrei ninguém. É como se eles tivessem se mudado de lá para outro lugar, ou outro plano.
por Sr. Vandemar
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