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O universo criado por Lovecraft não é tão distante da ficção que chamamos de realidade.
Segundo Lovecraft, apenas duas coisas estariam em ressonância direta com o Universo: a fome e a loucura. O universo foi criado por um ser formado de puro caos, e seu nome proibido é Azathoth. Sendo Ele, um deus “cedo e estupido” ele cria e destrói qualquer coisa no universo sem nenhum motivo para isso.
Alias, a própria existência humana não possui nenhuma razão.
Seguindo contra a corrente das doutrinas misticas que acreditam que o mundo é um local florido e que todos os homens são divinos, Lovecraft acentua que é irrelevante a vida do ser humano e suas relações interpessoais. Para o mesmo, apenas a relação do homem com o cosmo é que pode tornar um ser humano realmente destacável dentro da multidão da especie. Entenda que por cosmos, não significa “verdadeira vontade”, “lenda pessoal” ou os jargões utilizados com razoável relevância pelos misticos modernos – os cosmos é a metáfora que Lovecraft utiliza para conhecimento e para os mais crentes, magia.
Na primeira página de O Chamado de Cthulhu, Lovecraft escreve:
“Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros mares de infinito, e não está escrito pela Providência que devemos viajar longe. As ciências cada uma progredindo em sua própria direção, têm até agora nos causado pouco dano; mas um dia a junção do conhecimento dissociado abrirá visões tão terríveis da realidade e de nossa apavorante situação nela, que provavelmente ficaremos loucos por causa dessa revelação ou fugiremos dessa luz mortal rumo à paz e à segurança de uma nova Idade das Trevas.”
É interessante notar que Lovecraft deixava subliminar sua inclinação ao ocultismo. Por toda sua vida negou veemente enquanto em cartas para seus amigos mais próximos fazia afirmações que poderiam incrimina-lo. Em uma carta a Reinhardt Kleiner, em 4 de dezembro de 1921, ele escreve:
“Nyarlathotep é um pesadelo – um fantasma real, cujo primeiro parágrafo foi escrito antes de eu estar totalmente desperto. Tenho me sentido execrável durante a tarde – semanas inteiras se passaram sem alívio das dores de cabeça e das tonturas, e por um longo prazo de três horas estive no meu limite para continuar a obra… Adicionado aos meus males constantes há um problema ocular diferente que me impediu de ler as letras miúdas – um puxão curioso dos nervos e músculos que me assustou bastante durante as semanas em que persistiu. Em meio a essa escuridão veio o pesadelo dos pesadelos – o mais realista e horrível que eu experimentei em vida – cujo horror e opressão medonha gritante eu pude debilmente espelhar na minha fantasia escrita…
Conforme fui atraído para o abismo emitia um grito retumbante … e a imagem cessou. Estava com muita dor – a testa cingindo e um zumbido nos ouvidos – mas tinha apenas um impulso automático – para escrever e preservar a atmosfera de medo sem precedentes; e antes que eu soubesse que eu estava novamente desperto, eu já estava rabiscando desesperadamente o papel. Do que eu estava escrevendo eu tinha pouca ideia, e depois de um tempo desisti e banhei minha cabeça. Quando fiquei totalmente acordado me lembrei de todos os incidentes, mas havia perdido a emoção requintada do medo – a sensação real da presença do desconhecido hediondo.
Olhando o que eu havia escrito eu fiquei surpreendido com a minha coerência. No primeiro parágrafo do manuscrito fechado, apenas três palavras tiveram que ser alteradas.”
Esse sonho é descrito como “o mais realístico e horrível (pesadelo) que já experienciei” – que serviu como base do seu poema em prosa “Nyarlathotep”. Em sonho, ele recebeu uma carta do seu amigo Samuel Loveman que dizia:
Não deixes de ver Nyarlathotep se ele vier a Providence. Ele é horrível – horrível além do que possa imaginar – mas maravilhoso. Ele irá caçar alguém mais tarde. Eu ainda estremeço com o que ele mostrou.
Lovecraft comentou:
Eu nunca tinha ouvido o nome Nyarlathotep antes, mas pareci compreender a alusão. Nyarlathotep era uma espécie de diretor de circo itinerante ou conferencista que se mantinha guardado em salões públicos, despertou um medo e discussão muito difundidos com as suas exibições. Estas exibições consistiam em duas partes:
Primeiro, uma horrível – possivelmente profética – bobina de cinema; e mais tarde algumas experiências extraordinárias com aparelhos eléctricos e científicos.
Quando recebi a carta, parecia lembrar-me que Nyarlathotep estava já em Providence… Pareci lembrar-me que pessoas me tinham sussurrado em receio dos seus horrores, e avisado para não me aproximar dele. Mas o meu sonho com Loveman me fez decidir… Enquanto saía de casa vi multidões de homens andando pela noite, todos murmurando receosamente e curvados numa direção. Juntei-me a eles, medroso, contudo, ansioso para ver e ouvir o grande, o obscuro, o indescritível Nyarlathotep.
É interessante notar que Lovecraft estava de certo modo convencido que Nyarlathotep era Nikolas Tesla. Tesla que na época fazia aparições públicas demonstrando suas descobertas com a eletricidade, angariava consigo uma multidão de curiosos. Por toda a sua vida, Lovecraft foi atormentado por pesadelos aos quais, via criaturas e formas abomináveis. Seus contos, praticamente foram todos baseados nessas sonhos. Ele escrevia cartas para seus amigos contando alguns detalhes e vira e mexe reafirmava que eram apenas sonhos, nada mais.
Pode se afirmar que ou ele fugia da possibilidade de realmente ter contato com o oculto ou ele escondia isso.
A Matemágika Lovecraftiana
Seu material foi parar nas mãos de ocultistas nos anos 60. A Church of Satan, o Temple of Set, a OTOA e a OTOT começaram a desconfiar que seu material era muito mais que meramente ilustrativo. E estavam certos. A magia desse sistema acabou se espalhando e se tornando febre nos círculos ocultos. Grant Morrison, Phill Hine, Kenneth Grant, Anton Szandor LaVey, Michael Beartiux… Praticamente todos os grandes nomes do ocultismo da década de 60 adiante, se entregaram as forças abissais canalizadas por Howard Phillips Lovecraft.
Por estranho que pareça, maior parte dos ocultistas que afirmam manter contato com essas forças, mostram uma diferente abordagem das mesmas:
a) ao invés de insanos, sedentos por destruição, eles aparecem como extremamente inteligentes, com afirmações que desafiam o senso comum.
b) as formas costumam ser todas o mesmo padrão: uma escuridão com tentáculos e alguns olhos.
Outro fator estranho é que eles também parecem afirmam que elas podem ter efeitos benéficos – Phil Hine, um dos maiores autores de magia do Caos, afirma em seu Psiconomicon, que teria evocado Tsathogga para curar uma doença. Teria Lovecraft estimado demais as forças que entrou em contato? Ou apenas agregava características insanas a essas forças para agregar horror aos seus mitos? Ou mais, será que essas entidades não estão enganando esses ocultistas?
“-Era sobretudo um tipo de força que não pertence à nossa parte do espaço; um tipo de força que age, cresce e toma forma por outras leis, diferentes daquelas da nossa espécie de natureza. Não devemos chamar essas coisas do exterior, somente pessoas muito perversas e cultos muito obscuros é que fazem isso.”
-Horror de Dunwich
Essas entidades diferentes das entidades comuns encontradas, pertencem a “outro plano”. Elas precisam rasgar o espaço-tempo para chegar até nós. No mundo ocultista existem vários tipos de entidades que alcançam com certa facilidade o mundo dos homens: dragões e fadas, costumam estar mais perto de pessoas que trabalham com o a magia natural. Anjos e demônios, dentro da cabala. Espíritos de rua, doutrinados em religiões afro-brasileiras. Já para as entidades lovecraftianas, eles precisam de mentes potencialmente perturbadas para vir para a terra. E sua vinda rasga o que eles chamam de espaço-tempo, causando desastres, psicose e loucura para todos os envolvidos nessas evocações.
Frank Long, um discípulo de Lovecraft escreveu um conto chamado “Cães de Tíndalos”aonde cita umas passagens extremamente interessantes:
-Nós estamos chegando à conclusão agora que os velhos alquimistas e bruxos tinham razão em setenta cinco por cento, e os biólogos e o materialistas modernos estão enganados em noventa por cento.
-Você sempre fez pouco da ciência de hoje em dia – disse, com uma expressão clara de impaciência.
-Não – respondeu – eu apenas tiro um sarro com o dogmatismo dela. Eu sempre fui um rebelde, um campeão da originalidade e das causas perdidas. Não se sinta estranho por ter decidido rejeitar as conclusões dos biólogos contemporâneos.
-E o que me diz de Einstein? – eu perguntei.
-Sacerdote da matemática transcendental! – murmurou com respeito.
-Um místico profundo, um explorador de reinos imensos dos quais a existência só agora se começa a suspeitar.
Essa ligação entre a mecânica quântica, matemática e a magia podem ser notados em outro conto, Sonhos na Casa da Bruxa, de Lovecraft. A seguir, transcrevo alguns trechos:
O modo como Gilman tratou desse tema encheu todos de admiração, apesar de algumas de suas ilustrações hipotéticas provocarem um reforço nos sempre abundantes rumores sobre suas excentricidades, nervosismo e solidão, O que deixou os alunos reticentes foi a sua sensata teoria de que o homem poderia — com um conhecimento matemático superior a tudo que o homem conseguira adquirir — sair deliberadamente da Terra para qualquer outro corpo celeste existente em um dos pontos de uma infinidade de pontos específicos da configuração cósmica.
Os sonhos iam muito além do terreno da sanidade e Gilman sentia que eles deviam ser o resultado conjunto de seus estudos de matemática e de folclore.
O professor Upham apreciou especialmente sua demonstração da filiação da matemática superior a certas fases da sabedoria mágica transmitida ao longo das eras desde uma inefável antiguidade —humana ou pré-humana — cujos conhecimentos do cosmos e de suas leis eram superiores aos nossos.
Em seu delírio onírico, Gilman ouviu o ritmo alienígena do canto infernal do Sabá chegando de uma distância infinita, e sabia que o homem negro devia estar lá. Lembranças confusas misturavam-se com suas fórmulas matemáticas e ele acreditava ter em seu subconsciente os ângulos de que precisava para guiá-lo de volta ao mundo normal sem ajuda, pela primeira vez.
A magia que Lovecraft descreve não é uma arte que precisa de emoção, devoção ou culto. Ao que aparenta, é uma magia tão logica quanto a própria matemática. Uma das bases do ocultismo ocidental é a alteração de consciência como fator base para contatar espíritos. Sobre isso, no mesmo conto Lovecraft diz:
Se os sonhos ocasionaram a febre ou se a febre ocasionou os sonhos, Walter Gilman não sabia.
Talvez Gilman não devesse ter estudado tanto. O cálculo não-euclidiano e a física quântica bastam para esgotar qualquer cérebro, e quando alguém os mistura com folclore e tenta identificar um fundo estranho de realidade multidimensional por trás das sugestões demoníacas das narrativas góticas e das desvairadas histórias sussurradas ao pé do fogo, dificilmente poderia evitar alguma tensão mental. Gilman viera de Haverhill, mas só depois de ter entrado na universidade de Arkham foi que ele começou a relacionar suas pesquisas matemáticas com as lendas fantásticas de magia ancestral.
Esgotamento, estados de febre, sonhos… Tudo isso deve ter lembrado um único fator: a gnosis, os estados alterados de consciência que são praticados pela magia do caos. Nesse conto, Walter Gilman se projeta constantemente para outras dimensões através do sonho, sendo sugado por uma bruxa. As visões da bruxa vão se tornando cada vez mais fortes, assim como os sonhos, assim como a febre. No xamanismo, existe uma técnica chamada “Cabana de Suor” – essa técnica, consiste em montar uma especie de sauna, aonde os participantes vão se purificando conforme vão suando. Mais ainda, alegam que o estado de calor constante induz visões e descobertas. O próprio Lovecraft tinha um estilo de vida que causaria profundas alterações na consciencia, facilitando assim ele ser contatado por entidades. (Link aqui)
Em Azathoth, um pequeno texto-poesia, Lovecraft descreve uma pratica comum no ocultismo ocidental – entrar em transe através da imaginação:
“Depois de anos ele começou a chamar as estrelas pelos seus nomes e segui-las em sua mente quando elas pesarosamente deslizavam para fora do alcance de sua vista; até que finalmente a sua visão se abriu para muitas vistas secretas, cuja existência nenhum olho comum suspeitava. E uma noite um abismo poderoso foi atravessado e os céus assombrados por sonhos se inclinou até a janela do observador solitário para se fundir com o ar de seu quarto e torná-lo uma parte de sua fabulosa maravilha.”
Esse pequeno trecho mostra em seu conteúdo, os fatores bases do xamanismo: o processo de isolação e transe. O texto termina com o sonhador sendo levado pela força que ele descobriu, uma referencia clara sobre o que os praticantes de magia alegam para não buscar transe profundo sem ajuda de algum tutor.
No que consta nas biografias do mesmo, além de suas cartas, Lovecraft nunca teve contato com ordens esotéricas. Ele viveu praticamente isolado, grande parte de sua vida. Se Lovecraft realmente teve contato com magia ou não, não há nada além dessas evidencias apresentadas e outras que o leitor atento encontrará em seus contos para provar. Contos como “O Caso de Dexter Ward” contam com referencias diretas a magia medieval – evocações de grimórios cabalísticos, referencias ao Eliphas Levi e necromancia – o qual o Rev. Óbito fez um texto extenso sobre. Link aqui.
Sendo uma forma de magia praticada pelos maiores magistas da mão esquerda do século XX creio ser valido o aviso encontrado no conto “O Caso de Charles Dexter Ward”:
Não invoque nada que não possa banir.
A tradução da carta ao Reinhardt Kleiner feita por Nathalia Claro.
por King
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