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Lovecraft deixou de lado os fundamentos sobrenaturais e religiosos do literatura sobrenatural clássica, buscando a ciência para fornecer as bases do horror. Chamando Lovecraft de o “Copérnico dos contos de horror”, o escritor de fantasia Fritz Leiber Jr. escreveu que Lovecraft foi o primeiro fantasista que “associou de fato a emoção de medo espectral a conceitos como espaço, os confins do cosmos, seres alienígenas, dimensões insuspeitas e os universos concebíveis que existem fora do nosso continuum espaço-tempo”. Como o próprio Lovecraft registrou em uma carta:” chegou o momento em que a revolta contra o tempo, o espaço e a matéria deve assumir uma forma não abertamente incompatível com o que se conhece da realidade – quando deve ser gratificada por imagens formando suplementos ao invés de contradições do universo visível e mensurável”.
Para Lovecraft, não é o sono da razão produz monstros, mas a razão com os olhos escancarados. Ao fundir ciência de ponta com material arcaico, Lovecraft cria um materialismo distorcido em que o “progresso” científico nos traz de volta para o abismo atávico e pesquisas pragmáticas revivem a base factual de mitos esquecidos e descartados. Daí a obsessão de Lovecraft com a arqueologia, as escavações que desenterram artefatos alienígenas e cidades bizarramente angulares são simultaneamente históricas e imaginárias. Na história “Um Sussurro nas Trevas”, de 1930, Lovecraft identifica o planeta Yuggoth (a partir do qual os fungoides Mi-Go lançam sua invasão clandestina da Terra) com o planeta recém-descoberto Plutão. Para o leitor de 1930 – provavelmente o tipo de pessoa que iria vibrar com as narrativas populares de C.W. Thompson da descoberta do nono planeta naquele mesmo ano – esta referência factual “abre” a ficção de Lovecraft para um mundo real que está, ele próprio, se abrindo para o cosmos ilimitado.
O maior exemplo de fusão consciente, embora um pouco forçada, de folclore oculto e ciência bizarra ocorre em 1932 com a história ” Os sonhos na Casa da Bruxa”. As personagens demoníacas que o folclorista Walter Gilman vislumbra em seus primeiros pesadelos são ghouls clássicos: a velha bruxa malvada Keziah Mason, seu espírito familiar Brown Jenkin, e um ” homem negro “, que é talvez a mais inequivocamente satânica figura de Lovecraft. Essas figuras, eventualmente, invadem o espaço real da sala curiosamente angular de Gilman. Mas Gilman também é um estudante de física quântica, espaços de Riemann e matemática não- euclidianas, e seus sonhos são manifestações quase psicodélicas de seu conhecimento abstrato. Dentro destes ” abismos cujas propriedades materiais e gravitacionais … ele não podia nem começar a explicar”, um reino “indescritivelmente angular” de “prismas titânicos, labirintos, aglomerados de planos e cubo e quase-edifícios”, Gilman continua encontrando uma pequeno poliedro e uma massa de ” bolhas esféricas oblonga”. No final do conto que ele percebe que estes são ninguém menos do que Keziah e seu espírito familiar. Clichês demoníacos clássicos traduzidos para a dimensão mais estranha da ciência especulativa: o hiperespaço.
Nos dias de hoje, é possível se encontrar o tema do hiperespaço na ficção científica, na cosmologia pop, no design de interfaces do computador, em profecias canalizadas de OVNIs e no xamanismo pós-moderno de viajantes psicodélicos de alta octanagem – todos os discursos que alimentam a magia do caos contemporâneo. O próprio termo provavelmente foi cunhado pelo escritor de ficção científica de John W. Campbell Jr. em 1931, embora as suas origens como conceito se encontrem em explorações matemáticas do século XIX da quarta dimensão.
Mas Lovecraft foi, de muitas maneiras, o primeiro mitógrafo do conceito. Do ponto de vista do hiperespaço, nossos espaços normais e tridimensionais são construções exaustas e insuficientes. Mas a nossa incapacidade de imaginar vividamente esta nova dimensão em termos humanistas cria uma crise de representação, uma crise pela qual Lovecraft evoca nossos medos mais antigos do desconhecido. “Todos os objetos … estavam totalmente além de qualquer descrição ou mesmo compreensão”, Lovecraft escreve sobre o pesadelo febril de Gilman, antes de prosseguir, paradoxalmente, para descrever estes objetos horríveis. Em suas descrições, Lovecraft enfatiza a incomensurabilidade deste espaço através de justaposições quase sem sentido como “ângulos obscenos” ou geometria “errada”, uma técnica retórica que um mago Chaos chama de “Angularidade Semiótica”.
Lovecraft tem o hábito de rotular seus horrores como “indescritíveis”, “inomináveis”, invisíveis”, “inefáveis”, “desconhecidos” e “sem forma”. Embora superficialmente fraco, essa tática também pode ser vista como uma espécie de macabra via negativa. Tal como o as oposições apofáticas de teólogos negativos, como os Pseudo-Dionísio ou São João da Cruz, Lovecraft marca os limites da linguagem, os limites que, paradoxalmente, apontam para o Além. Para os místicos, este limite é aquele inefável, a “escuridão superluminosa” doa Pseudo-Dionísicos ou o Ain Soph dos cabalistas. Mas não há nenhuma unidade no Além de Lovecraft. É o onívoro exterior, a multiplicidade gritante do hiperespaço cósmico aberta pela razão.
Para Lovecraft, o materialismo científico é a barganha faustiana final, não porque ele nos entrega a tecnologia de Prometeus (como um homem do século XVIII, Lovecraft não tinha interesse em engenhocas), mas porque ele nos leva para além do horizonte do que nossas mentes podem suportar. “A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é a incapacidade da mente para correlacionar todo o seu conteúdo”, diz a linha de abertura famoso “Chamado de Cthulhu”. Ao correlacionar esses contextos, o empirismo abre “vistas aterrorizantes da realidade” – o que Lovecraft chama em outros momentos de “o cosmos cego [que] mói sem rumo eternamente, do nada para algo e de algo para o nada de novo, nem dar atenção nem reconhecimento aos desejos ou à mera existência das mentes que cintilam por um segundo aqui e ali na escuridão”.
Lovecraft deu a este pavor existencialista uma voz criativa, o que ele chamou de “alienação cósmica”. Para Fritz Leiber, o “caos nuclear monstruoso” de Azazoth, entidade suprema de Lovecraft, simboliza “o universo sem propósito, sem sentido, no entanto, todo-poderoso da crença materialista”. Mas este simbolismo não é toda a história, pois, como viajantes de DMT sabem, o hiperespaço é mal-assombrado. As entidades que irrompem de reinos desumanos de Lovecraft parecem sugerir que em um cosmos mecânico e cego, a coisa mais estranha é a própria sensibilidade. Espiando para fora através das rachaduras da consciência “humano” domesticada, um materialista sem compaixão como Lovecraft só poderia reagir com horror, pois a razão deve se acovardam diante dos sonho-dragões mais crus e atávicas da psique.
Os seres humanos modernos costumam reprimir, ignorar ou restringir essas forças à espreita em nosso cérebro réptil. Miticamente, essas forças tomam a forma de demônios presos sob os jugos angelicais do altruísmo, da moralidade e do intelecto. No entanto, se a pessoa não acredita em qualquer propósito universal final, então essas forças primordiais se encontram em sintonia com o cosmos, precisamente porque são amorais e desumanas. No “Horror em Dunwich”, Henry Wheeler ouve um gemido monstruoso de um ritual diabólico e pergunta: “da que insondáveis abismos de consciência extra-cósmica ou obscura hereditariedade há tanto latente, se originaram aqueles estridentes gransnidos meio articulados?” O exterior está dentro.
por Shub-Nigger, A Puta dos Mil Bodes
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