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Por que não podemos deixar de nos dizer cristãos

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Ensaio publicado em La Critica por Benedetto Croce. 1942 d.C.

Tradução de Marcelo Consentino

Reivindicar a si mesmos o nome de cristãos é coisa que normalmente não vem desacompanhada de uma certa suspeita de piedosa unção e de hipocrisia, porque no mais das vezes a adoção do tal nome serviu à auto-complacência e para cobrir coisas assaz diversas do espírito cristão, como se poderia comprovar com referências que aqui deixamos de lado para não dar azo a juízos e contestações que nos distrairiam do objeto deste discurso. No qual se quer unicamente afirmar, com o apelo à história, que nós não podemos não nos reconhecer e não nos dizer cristãos, e que esta denominação é simples observância à verdade.

O cristianismo foi a maior revolução que a humanidade jamais realizou: tão grande, tão abrangente e profunda, tão fecunda de consequências, tão inesperada e irresistível em seu atuar-se, que não espanta que tenha aparecido e que ainda possa aparecer como um milagre, uma revelação do alto, uma intervenção direta de Deus nas coisas humanas, que Dele receberam lei e um sentido de fato novo.

Todas as outras revoluções, todas as maiores descobertas que marcam épocas na história humana, não se sustentam confrontadas com ela, mostrando-se diante dela particulares e limitadas. Todas, não excluída aquela que a Grécia realizou na poesia, na arte, na filosofia, na liberdade política, e Roma no direito: para não falar das mais remotas no alfabeto e na arte de escrever, na matemática, na ciência astronômica, na medicina e tudo o mais que devemos ao Oriente e ao Egito. E as revoluções e descobertas que se seguiram nos tempos modernos, enquanto não foram particulares e limitadas à maneira das suas precedentes na antiguidade, mas empenharam o homem todo, a própria alma do homem, não podem ser pensadas sem a revolução cristã, em uma relação de dependência para com ela, à qual pertence o primado porque o impulso originário foi e perdura sendo o seu.

A razão disto é que a revolução cristã se realizou no centro da alma, na consciência moral, e, sobrelevando o íntimo e o característico de tal consciência, foi como se lhe conferisse uma nova virtude, uma nova qualidade espiritual, que até então faltara à humanidade. Os homens, os gênios, os heróis que existiram antes do cristianismo, realizaram ações estupendas, obras belíssimas, e nos legaram um riquíssimo tesouro de formas, de pensamentos e de experiências; mas em tudo isso se deseja precisamente aquele toque próprio que nos comunga e irmana, e que o cristianismo, e só ele, deu à vida humana.

E, contudo, este não foi um milagre que irrompeu no curso da história e nela se inseriu como força transcendente e estrangeira; e não foi tampouco aquele outro e milagre metafísico que alguns filósofos (Hegel sobretudo) construíram quando se deram a pensar a história como um longo processo no qual o espírito adquire uma após a outra as partes constitutivas de si mesmo, as suas categorias – a um certo ponto o conhecimento científico ou o Estado ou a liberdade, e, com o cristianismo, a intimidade moral –, porque o espírito é sempre a plenitude de si mesmo, e sua história são as suas criações, contínuas e infinitas, com as quais o eterno celebra a si mesmo. E como nem os gregos nem os romanos nem os orientais introduziram no mundo aquelas formas universais das quais, por ênfase, diz-se que são criadores, mas em virtude das quais produziram somente as obras e as ações com as quais tocaram altitudes antes não tocadas e assinalaram solenes crises na história humana; assim também a revolução cristã foi um processo histórico, que está no processo geral histórico como a mais solene das suas crises. Tentativas, preâmbulos, preparações do cristianismo foram notadas, como o são para toda e qualquer obra humana – para um poema tanto quanto para uma ação política –; mas a luz que tais fatos parecem assim irradiar eles a recebem por reflexo, da obra posteriormente realizada, posto que não a tinham em si, porque nenhuma obra jamais nasce por agregação ou concurso de outras que não sejam ela, mas sempre e somente por um ato original e criativo: nenhuma obra preexiste em seus antecedentes.

A consciência moral, com a emergência do cristianismo, foi avivada, exultada e reconfigurada em modos novos, toda ela férvida e confiante, com o senso do pecado sempre insidioso e com a posse da força que sempre se lhe opõe e sempre o vence, humilde e alta, e reencontrando na humildade a sua exaltação e no servir ao Senhor a alegria. E manteve-se incontaminada e pura, intransigente para com toda lassidão que a levasse para fora de si e a pusesse em contraste consigo mesma, vigilante mesmo contra a estima e o louvor e o esplendor social; e a sua lei rebentou unicamente da voz interior, não de comandos ou preceitos externos, pois todos se mostram insuficientes ao nó que de quando em quando se deve desatar, ao fim moral a ser conquistado, e todos, por uma via ou por outra, acabam por recair na planície sensual e utilitária. E o seu afeto foi de amor, amor por todos os homens, sem distinção de pessoas e de classes, de livres e escravos; por todas as criaturas; por todo o mundo, que é obra de Deus e Deus que é Deus de amor, e não está separado do homem, e rumo ao homem desce, e no qual todos somos, vivemos e nos movemos.

De tal experiência, que era a um só tempo sentimento, ação e pensamento, surgia uma nova visão e uma nova interpretação da realidade, não mais encontrável no objeto, alheio ao sujeito e posto em lugar do sujeito, mas naquele que é o eterno criador das coisas e o único princípio de explicação; e instaurava-se o conceito de espírito, e Deus mesmo já não mais foi concebido como indiferenciada unidade abstrata, e, enquanto tal, imóvel e inerte, mas uno e distinto ao mesmo tempo, porque vivo e fonte de toda vida, uno e trino.

Esta nova atitude moral e este novo conceito apresentaram-se em parte envolvidos em mitos – reino de Deus, ressurreição dos mortos, batismo de preparação, expiação e por aí afora –; passaram laboriosamente dos mitos mais corpulentos a outros mais finos e transparentes de verdade; intrigaram-se em pensamentos não sempre levados à harmonia e chocaram-se em contradições perante as quais se estacaram hesitantes e perplexos; mas nem por isso deixam de ser substancialmente aqueles que enunciamos brevemente e que cada um sente ressoar dentro de si quando pronuncia a si mesmo o nome de “cristão”. Uma nova ação, um novo conceito, uma nova criação de poesia não é e não deve ser concebida, uma vez que se configura na abstração e na imaginação conjunta, como qualquer coisa objetivamente concluída e circunscrita, mas como uma força que abre seu caminho entre outras forças, e por vezes encalha, e por outras se perde, e por outras ainda avança lenta e tenazmente ou mesmo se deixa aqui e ali ultrapassar por outras forças que não pode pelo momento vencer de todo submetendo-as e assimilando-as a si, e nos fracassos se retempera e dos fracassos se reergue combativa. E quem a queira compreender em seu caráter próprio e original deve distingui-la dos fatos a ela alheios, ultrapassar aqueles que são incidentais, vê-la não em seus impasses e bloqueios, em suas aporias e contradições, em suas errâncias e desvios, mas em seu ímpeto primeiro e em sua tensão dominante, tal como uma obra de poesia vale por aquilo que tem em si de poético e não pelo impoético que se lhe mistura ou que vem em sua companhia, pelas maculae que existem mesmo em Homero e Dante. Costuma-se opor, com sentimento de descrença e com palavra de crítica severa, que deste modo se “idealizam” as doutrinas e os fatos, e não se lhes respeita em sua realidade integral; mas este “idealizar” (que de modo algum fecha os olhos aos elementos alheios e incidentais, e, por isso mesmo, não os nega) outra coisa não é, como dizíamos, que a “inteligência” que os entende. Tome-se por prova o caminho contrário, e ponha-se no mesmo plano os logos e os mitos, as coerências e as incoerências, as certezas e as incertezas de um pensador; e a conclusão será necessariamente que aquela obra não foi realmente uma obra, mas um nada, contraditória, viciada e corroída do alto ao fundo pelos erros: o que de bom grado costumam fazer não poucos críticos e historiadores prontos, ao que parece, para encontrar nos grandes fatos e pensamentos e obras do passado a mesma dispersão mental e a mesma inércia moral, que neles há[1].

Foi outrossim natural e necessário que o processo formativo da verdade, que o cristianismo tinha tão extraordinariamente intensificado e acelerado, se detivesse provisoriamente a um certo ponto, e que a revolução cristã tivesse um alento de repouso (alento que em história pode ser cronologicamente de séculos) conferindo a si mesma uma ordenação estável. E também aqui foi acusada e lamentada, e ainda hoje se lamenta, a queda da alteza na qual o entusiasmo cristão se movia, e a cristalização, a pragmatização, a politização do pensamento religioso, o bloqueio do seu fluxo, a solidificação que é morte. Mas a polêmica contra a formação e a existência da Igreja ou das Igrejas é tão pouco razoável quanto seria aquela contra a universidade e as outras escolas nas quais a ciência, que é contínua crítica e autocrítica, cessa de ser tal, sendo fixada em catecismos e manuais e sendo ensinada bella e fatta [pronta e acabada], seja para ser empregada em fins práticos, seja, nos espíritos bem dispostos, como matéria a se ter presente para os novos progressos científicos a serem realizados ou tentados. Não se deve eliminar da vida do espírito este momento, no qual se fecha o processo cogitativo da investigação com a fé conquistada e se abre aquele da ação prática, no qual a fé se transfunde. E se tal fechamento por um lado parece ser, e em certo sentido é, a morte (e, seja, a eutanásia, a boa morte) da verdade, porque a verdade genuína está unicamente no processo do seu fazer-se, é, por outro lado, uma conservação da verdade para a sua nova vida e para a retomada daquele processo, quase sempre protegido e escondido, que germinará e desabrochará em novos ramos. Assim a Igreja cristã católica forjou os seus dogmas, não temendo formular por vezes o não pensável porque não plenamente resolvido na unidade do pensamento, o seu culto, o seu sistema sacramental, a hierarquia, a disciplina, o patrimônio terreno, a economia, as finanças, o seu júri e os seus tribunais e a correlativa casuística legal, e estudou e concretizou acomodações e transações com necessidades que não podia extinguir ou reprimir e nem deixar livres e desenfreadas; e benéfica foi a sua ação, vencendo o politeísmo do paganismo e os novos adversários que vieram do Oriente (do qual ela mesma provinha e que havia superado), sendo estes particularmente perigosos porque traziam impressos muitos traços de sua própria fisionomia, como os gnósticos e os maniqueístas, e entregando-se à construção sobre novos alicerces espirituais do decadente e decaído império de Roma, e, deste, como de toda a cultura antiga, acolhendo e conservando a tradição. E teve uma longa época de glória que foi chamada Idade Média (partição histórica e denominação em aparência nascida como que por acaso, mas com efeito guiada por uma segura intuição da verdade), na qual não só levou a termo o processo de cristianização e romanização e civilização dos germânicos e de outros bárbaros, não só conteve as renovadas insídias e os danos certos das novas-velhas heresias, dualistas, pessimistas e ascéticas, acósmicas e negadoras da vida, não só animou à defesa conta o Islam, que ameaçava toda a civilização europeia, mas manteve as partes da exigência moral e religiosa que supera aquela unilateralmente política e a si a dobra, e, enquanto tal, a justo título, ela afirmou o seu direito de domínio sobre o mundo inteiro, fossem quais fossem, nas situações de fato, as frequentes perversões ou as inversões deste direito.

Tampouco são válidas as outras acusações usuais contra a Igreja cristã católica em razão da corrupção que dentro de si deixou penetrar e frequentemente de modo assaz grave alargar; porque toda instituição carrega em si o perigo da corrupção, das partes que usurpam a vida do todo, dos motivos privados e utilitários que se substituem aos morais, e toda instituição sofre de fato estas vicissitudes e continuamente se esforça por superá-las e por restituir as condições de saúde. Ocorre o mesmo, conquanto em modo menos escandaloso ou mais mesquinho, nas Igrejas que contra a sua primogênita católica, acusando-lhe a corrupção, se ergueram, nas várias confissões evangélicas e protestantes. A Igreja cristã católica, como se sabe, mesmo durante a Idade Média, valendo-se dos espíritos cristãos que se inflamavam espontaneamente dentro e fora de seus quadros e integrando-os à sua missão, se revigorou e se reformou tacitamente por diversas vezes; e quando, mais tarde, através da corrupção de seus papas, de seu clero e de seus frades, através da transformação da condição política geral, que lhe tomara o domínio por ela exercido na Idade Média e neutralizara as suas armas espirituais, e, enfim, através do novo pensamento crítico, filosófico e científico, que tornava antiquada a sua escolástica, ela esteve a ponto de perder-se, reformou-se uma vez mais com prudência e com política, salvando de si aquilo que a prudência e a política são capazes de salvar, e continuando a sua obra, que registraria seus maiores triunfos nas terras recém descobertas do Novo Mundo. Uma instituição não morre por seus erros acidentais e superficiais, mas somente quando não satisfaz mais nenhuma necessidade, ou na medida em que se reduz a quantidade e se abaixa a qualidade das necessidades que esta satisfaz. E quais sejam, neste sentido, as presentes condições da Igreja católica, é questão alheia ao discurso que aqui conduzimos.

Reatando este discurso ao ponto do qual nos afastamos para fornecer os supracitados esclarecimentos sobre a verdade que é própria do cristianismo e sobre a sua relação com a Igreja e com as Igrejas, e reconhecida a necessidade de que o processo formativo e progressivo do pensamento cristão deveria provisoriamente ser concluído (como se faz, no fundo, seja-me lícito traduzir em benefício da clareza o grande no pequeno, quando, escrito um livro, o enviamos ao prelo e ao público resistindo à loucura do infinitum perfectionis), não é menos verdade, por outro lado, que o mesmo processo deveria ser reaberto, revisto e conduzido mais além e mais ao alto. Aquilo que pensamos, não por isto chega a ser pensado por completo: o fato não é jamais fato árido, acometido de esterilidade, mas está sempre em gestação, é sempre, para adotar um moto de Leibniz, gros de l’avenir [prenhe do futuro]. Aqueles gênios da ação profunda, Jesus, Paulo, o autor do quarto evangelho, e os outros que com esses variamente cooperaram na primeira época cristã, pareciam, com o seu próprio exemplo, posto que férvidos e sem repouso foram os esforços de seu pensamento e de sua vida, pedir que os ensinamentos oferecidos por eles fossem tomados não somente por uma fonte de água transbordante a jorrar eternamente, ou por algo similar às videiras de cujos ramos brotam frutos, mas por uma obra incessante, viva e plástica, a dominar o curso da história e a satisfazer as novas exigências e as novas questões com as quais eles mesmos não se confrontaram e que não propuseram e que só viriam a ser geradas posteriormente no seio da realidade. E posto que este prolongamento, que é a um só tempo transformação e crescimento, não pode jamais ser concretizado sem melhor determinar, corrigir e modificar os primeiros conceitos, e sem incrementá-los com novos e realizar novas sistematizações, e por isso não podem ser nem repetição nem um impossível comentário literal e, em suma, trabalho mecânico (como, em geral, salvo esparsos espasmos e raras centelhas, no período medieval), mas trabalho genial e congenial, continuadores efetivos da obra religiosa do cristianismo devem ser considerados aqueles que, partindo de seus conceitos e integrando-os com a crítica e com a ulterior investigação, produziram progressos substanciais no pensamento e na vida. Foram, portanto, não obstante alguns traços anticristãos, os homens do humanismo e do Renascimento, que compreenderam a virtude da poesia e da arte e da política e da vida mundana, reivindicando-lhe a plena humanidade contra o sobrenaturalismo e o ascetismo medievais, e, em certos aspectos, ao ampliarem a um significado universal as doutrinas de Paulo, desligando-as de referências particulares, das esperanças e das expectativas do tempo dele, os homens da Reforma; foram os severos fundadores da ciência físico-matemática da natureza, com as descobertas que suscitaram novos meios à civilização humana; os porta-estandartes da religião natural e do direito natural e da tolerância, antecessores das ulteriores concepções liberais; os iluministas da razão triunfante, que reformaram a vida social e política, desmantelando o que ainda restava do feudalismo medieval e dos privilégios medievais do clero, e dissipando trevas espessas de superstições e preconceitos, e inflamando um novo ardor e um novo entusiasmo pelo bem e pela verdade e um renovado espírito cristão e humanitário; e, após eles, os práticos revolucionários que da França propagaram a sua eficácia a toda Europa; e, depois, os filósofos, que procuraram dar forma cristã e especulativa à idéia do Espírito, que o cristianismo substituíra ao antigo objetivismo, Vico e Kant e Fichte e Hegel, os quais, direta ou indiretamente, inauguraram a concepção da realidade como história, concorrendo na superação do radicalismo dos enciclopedistas com a idéia do desenvolvimento e do libertarismo abstrato dos jacobinos com o liberalismo institucional, e o seu cosmopolitismo abstrato com o respeito e a promoção da independência e da liberdade de todas as várias e singulares civilizações dos povos ou, tal como foram chamadas, das nacionalidades: – estes, e tantos outros como eles, que a Igreja de Roma, pronta (como não podia deixar de ser) a proteger a sua instituição e a estrutura que dera aos seus domínios no concílio de Trento, devia por consequência desconhecer e perseguir e, em última instância, condenar junto com toda a idade moderna em um seu sílabo, sem, no entanto, ser capaz de contrapor à ciência, à cultura e à civilização moderna secular uma outra e sua própria e vigorosa ciência, cultura e civilização. E devia e deve reprimir com horror, como blasfêmia, o nome que a estes tais bem cabe de cristãos, de operários na vinha do Senhor, que fizeram frutificar com seus esforços, com seus sacrifícios e com seu sangue a verdade de Jesus primitivamente anunciada e elaborada pelos primeiros pensadores cristãos, mas não diversamente de qualquer outra obra do pensamento, que é sempre um esboço a que perpetuamente se deve acrescentar novos retoques e novas linhas. Nem pode, de modo algum, dobrar-se à ideia de que haja cristãos fora de cada uma das Igrejas, não menos genuínos do que aqueles que estão dentro, e tanto mais intensamente cristãos, porque livres. Mas nós – que não escrevemos nem para agradar, nem para desagradar, aos homens das Igrejas, e que compreendemos, com o obséquio devido à verdade, a lógica da sua posição intelectual e moral e a lei de seu comportamento –, devemos confirmar o uso daquele nome que a história nos demonstra legítimo e necessário.

Uma prova deveras significante que se extrai desta interpretação histórica é o fato de que a contínua e violenta polêmica anti-eclesiástica, que percorre os séculos de nossa era moderna, sempre se estacou, calando-se reverentemente, à lembrança da pessoa de Jesus, sentindo que a ofensa a ele seria ofensa a si mesma, às razões de seu ideal, ao coração de seu coração. Mesmo alguns poetas, os quais, pela licença que aos poetas se concede de plasmar fantasticamente em símbolos e metáforas os ideais e os contra-ideais conforme os impulsos da sua paixão, entreviram em Jesus – em Jesus que amou e quis a alegria – um negador da felicidade e um difusor da tristeza, acabaram por oferecer a palinódia do seu primeiro dito, como é o caso com o alemão Goethe e com o italiano Carducci. Impressões e fantasias de poetas foram, outrossim, as nostalgias pelo sereno paganismo antigo, de ordinário contraditas com as opostas impressões e fantasias daqueles mesmos que delas se haviam ocupado por pouco [2]. O despreocupado gáudio e a gozação, que parecia inocente aonde quer que se voltasse e se derramasse, fosse sobre qual fosse o fato ou personagem glorioso da história e da poesia, não pareceu inocente e jamais foi permitida em torno à figura de Jesus, que também resistiu constantemente a ser levada aos palcos dos teatros, salvo, na ingenuidade das sacras representações medievais e de seus arremedos populares, aos quais a Igreja foi sempre indulgente, quando não os promoveu ela mesma. E uma outra prova pode, quiçá, ser extraída da atitude e das simbologias de colorido cristão, com as quais foram frequentemente revestidos os motivos políticos e sociais da era moderna, mesmo aqueles de caráter mais distintamente anti-eclesiástico, de modo que se pôde falar da “cidade celeste”, que os racionalistas setecentescos, os voltairianos, haviam edificado, do “jardim do Éden”, por eles transferidos à antiga Roma ou à felicidade arcádica da “Razão” e da “Natureza”, que tinham em si o papel da Bíblia e da Igreja, e coisas similares; e as revoluções dos tempos modernos invocam os seus “reveladores”, enviam os seus “apóstolos” e glorificam os seus “mártires” [3].

Fato está que, ainda que toda a história passada conflua em nós e de toda história sejamos filhos, a ética e a religião antigas foram superadas e resolvidas na idéia cristã da consciência e da inspiração moral, e da nova idéia de Deus na qual existimos, vivemos e nos movemos, e que não pode ser nem Zeus nem Jahve, e nem mesmo (não obstante as adulações que em nossos dias se lhe quis prestar) o Wohtan germânico; e por isso nós, especificamente na vida moral e no pensamento, nos sentimos diretamente filhos do cristianismo. Ninguém pode saber se uma outra revelação e religião, parelha ou maior do que esta que Hegel definia a “religião absoluta”, virá à humanidade, em um futuro do qual não se vê pelo momento nem o mais minúsculo lampejo; mas se vê perfeitamente bem que, em nosso presente, não estamos de modo algum fora dos confins estabelecidos pelo cristianismo, e que nós, como os primeiros cristãos, continuamos a labutar na composição dos sempre renascentes e ásperos e ferozes contrastes entre imanência e transcendência, entre a moral da consciência e aquela do comando e das leis, entre a eticidade e a utilidade, entre a liberdade e a autoridade, entre o celeste e o terrestre que estão no homem, e ao conseguirmos compô-los em tal ou qual forma particular surge em nós a alegria e a tranquilidade interior, e da consciência de não podermos mais compô-las em plenitude e exaurir-lhes, o sentimento viril do perpétuo combatente ou do perpétuo operário, ao qual, e aos filhos de seus filhos, não faltará jamais matéria para o trabalho, isto é, para a vida. E conservar e reacender e alimentar o sentimento cristão é a nossa sempre recorrente necessidade, hoje mais do que nunca pungente e tormentosa, entre a dor e a esperança. E o Deus cristão é ainda o nosso, e as nossas refinadas filosofias o chamam Espírito, que sempre nos supera e sempre é nós mesmos; e se nós já não o adoramos como mistério é porque sabemos que Ele sempre será mistério aos olhos da lógica abstrata e intelectualista, imerecidamente creditada e dignificada como “lógica humana”, mas que Ele é límpida verdade aos olhos da lógica concreta, que poderia bem ser chamada “divina”, entendendo-a no sentido cristão como aquela à qual o homem continuamente se eleva, e que, continuamente conjugando-o a Deus, o faz verdadeiramente homem.

Notas

[1] Mas seja-me consentido notar que a hodierna literatura italiana possui nos livros de Omodeo sobre as origens cristãs uma obra na qual o vigilante senso histórico das transições e gradações se esposa, coisa assaz rara, com o robusto pensamento filosófico, e a percepção dos eventos em sua determinação com as percepções dos nexos que os ligam ao seu passado e ao seu futuro.
[2] Aquilo que os admiradores do neopaganismo não consideravam pode ser expresso com as palavras que Jacob Burckhardt põe nos lábios do Hermes do Vaticano, imaginando que pense assim: “Nós tínhamos tudo: fulgores de deuses celestes, beleza, eterna juventude, indestrutível contentamento; mas não eramos felizes, porque não éramos bons”. Que é o mesmo que dizer: “não éramos cristãos”.
[3] Ver o livro de Carl L. Becker, The Heavenly City of the eighteenth century philosophers (New Hale, 1932).

OriginalPerché non possiamo non dirci “cristiani” 


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