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Pentecostes: do tradutor universal ao labarúxias

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Já faziam alguns dias que Jesus subiu aos céus. A igreja na época era apenas Maria, os apóstolos e poucas pessoas que não lotariam sequer uma capela atual. Mas nem capela eles tinham e se reuniam no andar de cima de uma sinagoga local. Os pontos de interrogação sobre suas cabeças deviam ser tão grandes que podiam ser vistos da Lua e como veremos, foram vistos dos céus.

É preciso lembrar que naquele momento ser cristão era algo muito constrangedor. Se você acha desconfortável um churrasco em família com aquele tio que odeia o seu partido político, imagine como era para um judeu explicar para seus pais que iria ser batizado. Não havia whatsapp para disseminar fake news, mas olha o que o Talmude da Babilônia falava sobre cristãos:

“Na véspera da Páscoa, Yeshu o Nazareno foi pendurado e um arauto foi anunciado quarenta dias antes dizendo ” Yeshu o Nazareno será apedrejado porque praticou magia e instigou e seduziu Israel a idolatria. Quem quer que saiba qualquer coisa em sua defesa deve pronunciar-se. Mas desde que ninguém veio em sua defesa eles o penduraram na véspera da Páscoa. Ulla disse: “Vocês acham que Yeshu de Nazaré é alguém de quem uma defesa pode ser feita? Ele foi um instigador de idolatria, de quem o Misericordioso diz: “Não mostre compaixão e não o defenda “ (Sanhedrin 43a)

Foi nesse clima tenso que chegou o Pentecostes, o dia que marca hoje a festa de aniversário da Igreja. Cinquenta dias depois da Páscoa judaica era época da “Festa das Primícias”.  Pentecostes quer dizer literalmente “quinquagésimo” e havia uma razão para essa espera, judeus de todo o mundo antigo iriam para Jerusalém celebrar a primeira colheita do ano, dando ao que iria ocorrer em seguida um público internacional.

Após a animação inicial com a ressurreição de Cristo, os apóstolos estavam tímidos e acovardados sem saber o que fazer. Conta a bíblia que neste dia um som veio do céu e um forte vento entrou no cômodo onde os discípulos estavam reunidos. E sobre a cabeça de cada um deles foi vista uma língua de fogo. A imagem de uma língua de fogo é muito apropriada porque depois disso cada um deles começou a falar em uma língua diferente: latim, árabe, russo, esperanto, mandarim, klingon, só quem estava lá pode dizer. Fato é que saíram a falar e isso atraiu toda aquela multidão de peregrinos, mostrando logo no primeiro dia o caráter universal da Igreja.

Gosto de pensar que o Pentecostes foi como uma Torre de Babel ao contrário. No antigo testamento um rei tenta chegar aos céus por meios humanos e Deus mostrou pela primeira vez o que achava do pelagianismo (a crença de que a humanidade pode salvar a si mesma). O mito conta que Deus dividiu naquele momento às raízes da linguagem humanas e os trabalhadores da torre passaram a falar línguas diferentes não podendo mais se entender. 

Mas em Pentecostes ocorreu exatamente o contrário. Os apóstolos, não tendo nenhuma ambição, experimentaram um dom que só os personagens de Star Trek tem, um tradutor universal. Eles ganharam a habilidade de falar com qualquer  línguas que antes desconheciam. Estavam tão contentes e tagarelas que algumas pessoas acharam que eles estavam bêbados.

Além da perícia em idiomas ganharam grande entendimento sobre o papel que tinham a executar e não demorou para se espalharem pelo mundo. São Pedro, percebendo a nova situação dirige a multidão um sermão com a eloquência de Homero. O mesmo pescador que havia negado Cristo por três vezes estava agora transformado e falava com autoridade sobre assuntos que antes parecia não entender. Dali em diante os apóstolos não seriam apenas parte da plateia, mas rockstars da fé.  Depois daquele sermão três mil pessoas foram batizadas. Um crescimento de mais de 23000% nos membros da igreja.

O dom das línguas não foi uma mera demonstração de poder do Espírito Santo e certamente não foi uma forma de meditação ou terapia para relaxar os apóstolos. Foi sim uma vantagem estratégica para a consolidação do cristianismo como uma religião mundial. Se não falassem suas línguas locais seria impossível aos apóstolos pregar, como fizeram, em lugares tão distantes como Etiópia, Pérsia e Índia.

É isso o que significa o dom de línguas. Aquele “labaxurias chupa bala halls” que vemos pessoas balbuciar nas igrejas é alguma outra coisa difícil de classificar. Algo entre o teatro amador e a terapia em grupo, mas que pode ser prejudicial se faz o cristão sincero pensar que tem algo errado com ele – afinal, não fala desse jeito. Ou pior, se o constrange a participar de uma farsa. Fazer isso é de novo, tentar por meios humanos chegar a Deus. O Didaquê, o primeiro catecismo, chega a dizer que fingir um dom é o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão. Quando isso ocorre não temos a língua dos anjos, mas uma incompreensível paródia do Pentecostes. Uma torre de babel em miniatura.

Thiago Tamosauskas autor de Santos Inesperados, Principia Alchimica e colaborador frequente do Morte Súbita inc.


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