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No que acreditam os Cristãos?

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C.S. Lewis

1.AS CONCEPÇÕES CONCORRENTES DE DEUS

Pediram para que eu lhes dissesse em que os cristãos acreditam, mas vou falar antes sobre uma coisa em que eles não precisam acreditar. Se você é cristão, não preci­sa acreditar que todas as outras religiões estão simples­mente erradas de cabo a rabo. Se você é ateu, é obrigado a acreditar que o ponto de vista central de todas as reli­giões do mundo não passa de um gigantesco erro. Se você é cristão, está livre para pensar que todas as religiões, mes­mo as mais esquisitas, possuem pelo menos um fundo de verdade. Quando eu era ateu, tentei me convencer de que a raça humana sempre estivera enganada sobre o as­sunto que lhe era mais caro; quando me tornei cristão, pude adotar uma opinião mais liberal sobre o assunto.

É claro, no entanto, que, pelo fato de sermos cristãos, nós temos efetivamente o direito de pensar que, onde o cristianismo difere das outras religiões, ele está certo e as outras, erradas. É como na aritmética: para uma de­terminada soma, só existe uma resposta certa, e todas as outras estão erradas; porém, algumas respostas erradas estão mais próximas da certa do que as outras.

A primeira grande divisão da humanidade se dá en­tre a maioria que acredita em alguma espécie de Deus, ou deuses, e a minoria que não acredita. Nesse ponto, os cristãos se juntam à maioria – os gregos e romanos da Antigüidade, os selvagens modernos, os estóicos, os pla­tônicos, os hindus, os maometanos etc, contra o materialismo europeu ocidental moderno.

Passo agora à grande divisão seguinte. As pessoas que acreditam em Deus podem ser agrupadas de acordo com o tipo de Deus em que acreditam. Neste assunto, existem duas concepções bem diferentes uma da outra. Uma delas é a de que ele está acima do Bem e do Mal. Nós, seres humanos, dizemos que uma coisa é má e outra é boa. De acordo com alguns, porém, esse é um mero ponto de vista humano. Essas pessoas diriam que, quanto mais sábios nos tornamos, menos nos interes­samos por classificar as coisas dessa maneira, e nos da­mos conta com clareza cada vez maior de que tudo é bom sob certo ponto de vista e mau sob outro, e que nada poderia ser diferente do que é. Em conseqüência, essas pessoas crêem que, antes mesmo de nos aproximarmos do ponto de vista divino, essa distinção desaparece to­talmente. Nós consideramos o câncer mau, diriam elas, porque ele mata pessoas; mas poderíamos igualmente chamar um cirurgião de mau porque ele mata o câncer. Tudo depende do ponto de vista. A outra idéia, oposta a esta, é de que Deus é definitivamente “bom” ou “jus­to”, é um Deus que toma partido, que ama o amor e odeia o ódio, que quer que nos comportemos de uma forma e não de outra. O primeiro ponto de vista – o de um Deus acima do Bem e do Mal – é chamado panteísmo. Foi sustentado por Hegel, o grande filósofo prus­siano, e, na medida em que posso compreendê-los, pe­los hindus. O outro ponto de vista é sustentado pelos judeus, maometanos e cristãos.

Essa grande diferença entre o panteísmo e a idéia cristã de Deus normalmente traz outra a reboque. Os panteístas em geral acreditam que Deus, para usar uma metáfora, anima o universo como nós animamos o cor­po: o universo quase é Deus, de tal modo que, se o uni­verso não existisse, Deus também não existiria, pois todos os seres do universo fazem parte dele. A idéia cristã é bem diferente. Os cristãos pensam que Deus inventou e criou o universo como um homem que pinta um quadro ou compõe uma música. Um pintor não é o que ele pinta e não vai morrer se o quadro for destruído. Quando di­zemos que “ele infundiu sua alma na pintura”, só que­remos dizer que a beleza e o fascínio que o quadro des­perta vieram da mente dele. A habilidade dele não está presente na tela da mesma forma que está presente em sua cabeça ou mesmo em suas mãos. Acho que você já compreendeu que a diferença entre panteístas e cristãos segue essa mesma linha. Se você não leva muito a sério a distinção entre o Bem e o Mal, é fácil dizer que qual­quer coisa que encontra no mundo é uma parte de Deus. Por outro lado, se acha que certas coisas são realmente más e Deus é realmente bom, já não pode falar dessa ma­neira. Tem de acreditar que existe uma separação entre Deus e o mundo e que certas coisas que vemos são con­trárias à sua vontade. Confrontado com o câncer ou com a miséria, o panteísta pode dizer: “Se pudéssemos ver as coisas do ponto de vista divino, nos daríamos conta de que isso também é Deus.” O cristão retruca: “Não diga essa maldita asneira!”[1] O cristianismo é uma religião aguerrida. Para o cristão, Deus criou o mundo – “tirou de sua cabeça” o espaço e o tempo, o calor e o frio, todas as cores e sabores, todos os animais e vegetais, como um homem que cria uma história. Por outro lado, para o cristianismo, muitas das coisas criadas por Deus caíram no erro, e Deus insiste – aliás, de forma enfática – em co­locá-las de volta no lugar.

Com isto, é claro, surge uma pergunta difícil. Se um Deus bom criou o mundo, por que esse mundo deu errado? Por muitos anos, recusei-me a ouvir as respos­tas cristãs à pergunta, pois tinha a sensação persistente de que “o que quer que vocês digam, por mais astutos que sejam seus argumentos, não é muito mais simples e mais fácil afirmar que o mundo não foi feito por um poder dotado de inteligência? As argumentações de vo­cês não são apenas uma complicada tentativa de fugir ao óbvio?” Mas, através disso, acabei deparando com outra dificuldade.

Meu argumento contra Deus era o de que o uni­verso parecia injusto e cruel. No entanto, de onde eu tirara essa idéia de justo e injusto? Um homem não diz que uma linha é torta se não souber o que é uma linha reta. Com o que eu comparava o universo quando o cha­mava de injusto? Se o espetáculo inteiro era ruim do começo ao fim, como é que eu, fazendo parte dele, po­dia ter uma reação assim tão violenta? Um homem sen­te o corpo molhado quando entra na água porque não é um animal aquático; um peixe não se sente assim. E claro que eu poderia ter desistido da minha idéia de justiça dizendo que ela não passava de uma idéia particular minha. Se procedesse assim, porém, meu argu­mento contra Deus também desmoronaria – pois de­pende da premissa de que o mundo é realmente injusto, e não de que simplesmente não agrada aos meus capri­chos pessoais. Assim, no próprio ato de tentar provar que Deus não existe – ou, por outra, que a realidade como um todo não tem sentido -, vi-me forçado a ad­mitir que uma parte da realidade – a saber, minha idéia de justiça- tem sentido, sim. Ou seja, o ateísmo é uma solução simplista. Se o universo inteiro não tivesse sen­tido, nunca perceberíamos que ele não tem sentido – do mesmo modo que, se não existisse luz no universo e as criaturas não tivessem olhos, nunca nos saberíamos imer­sos na escuridão. A própria palavra escuridão não teria significado.

 

2. A INVASÃO

Pois bem, então o ateísmo é simplista. E vou lhes fa­lar de outro ponto de vista igualmente simplista que chamo de “cristianismo água-com-açúcar”. De acordo com ele, existe um bom Deus no Céu e tudo o mais vai muito bem, obrigado – o que deixa completamente de lado as doutrinas difíceis e terríveis a respeito do pecado, do inferno, do diabo e da redenção. Os dois pontos de vista são filosofias pueris.

Não convém exigir uma religião simples. Afinal de contas, as coisas no mundo real são complexas. Parecem simples, mas não são. A mesa à qual estou sentado pa­rece simples, mas peça a um cientista que diga do que ela é realmente feita: você ouvirá uma longa história a respeito dos átomos e de como as ondas luminosas refle­tem-se neles e chegam ao nervo óptico, provocando um efeito no cérebro. Assim, o que chamamos de “enxergar a mesa” nos leva a mistérios e complicações aparentemen­te inesgotáveis. Uma criança que faz uma oração infantil é algo singelo. Se você estiver disposto a parar por aí, ótimo. Mas, se você não se contentar com isso (coisa que acontece bastante no mundo moderno) e quiser levar avante o questionamento sobre o que realmente acon­tece, tem de estar preparado para enfrentar dificuldades. Se exigimos algo que vá além da simplicidade, é tolice nos queixarmos de que esse algo a mais não é simples. Com muita freqüência, entretanto, esse procedi­mento tolo é adotado por pessoas que não têm nada de tolas, mas que, consciente ou inconscientemente, que­rem destruir o cristianismo. Essas pessoas apresentam uma versão da religião cristã própria para crianças de seis anos e fazem dela o objeto de seu ataque. Quando tentamos explicar a doutrina cristã tal como é entendida por um adulto instruído, elas se queixam de que estamos dando um nó na cabeça delas, de que tudo o que dize­mos é complicado demais e de que, se Deus realmente existisse, teria feiro a “religião” simples, pois a simplici­dade é bela etc. Esteja sempre em guarda contra este tipo de gente, sujeitos que trocam de argumento a cada minuto e só nos fazem perder tempo. Note o absurdo da idéia de um Deus que “faz uma religião simples”: co­mo se a “religião” fosse algo inventado por Deus, e não a sua afirmação de certos fatos inalteráveis a respeito de sua própria natureza.

A experiência me diz que a realidade, além de com­plicada, é quase sempre estranha. Não é precisa, nem óbvia, nem previsível. Por exemplo, quando você des­cobre que a Terra e os outros planetas giram em torno do Sol, pensa naturalmente que todos os planetas de­vem se comportar da mesma maneira, que são separa­dos por distâncias iguais ou distâncias que aumentam proporcionalmente, ou que devem aumentar ou dimi­nuir de tamanho à medida que se afastam do Sol. No en­tanto, não encontramos nem métrica nem método (que possamos compreender) nos tamanhos ou nas distâncias. Além disso, alguns planetas possuem uma lua; outros, quatro; alguns, nenhuma; e um planeta tem um anel.

A realidade, com efeito, é algo que ninguém poderia adivinhar. Este é um dos motivos pelo qual acredito no cristianismo. E uma religião que ninguém poderia adi­vinhar. Se ela nos oferecesse o tipo de universo que es­peraríamos encontrar, eu acharia que ela havia sido in­ventada pelo homem. Porém, a religião cristã não é nada daquilo que esperávamos; apresenta todas as mudanças inesperadas que as coisas reais possuem. Deixemos de lado, portanto, todas as filosofias pueris e suas respostas simplistas. O problema não é nada simples, e a respos­ta tampouco.

E qual é o problema? E um universo cheio de coi­sas evidentemente más e aparentemente sem sentido, mas que ao mesmo tempo contém criaturas como nós, que têm a consciência dessa maldade e desse absurdo. Existem só dois pontos de vista que conseguem con­templar todos esses fatos. Um deles é o cristianismo, se­gundo o qual estamos num mundo bom que se perdeu, mas que ainda assim conserva a memória de como de­veria ser. O outro ponto de vista chama-se dualismo. Dualismo é a crença de que, na raiz de todas as coisas, há duas forças iguais e independentes, uma delas boa, a outra má. O universo é o campo de batalha no qual travam uma guerra sem fim. Creio que, ao lado do cris­tianismo, o dualismo é a crença mais viril e sensata exis­tente no mercado. Porém, traz em si uma armadilha.

Os dois poderes, ou espíritos, ou deuses – o bom e o mal – são tidos como independentes um do outro. Ambos existem eternamente. Nenhum deles gerou o ou­tro, nenhum deles tem mais direito que o outro de cha­mar a si mesmo de “Deus”. Cada um deles, presumi­velmente, considera a si mesmo o Bem, e ao outro, o Mal. Um deles aprecia o ódio e a crueldade; o outro, o amor e a misericórdia; e cada qual sustenta sua própria visão das coisas. No entanto, o que temos em mente quando chamamos um deles de Poder Benigno, e o outro, de Poder Maligno? Talvez queiramos dizer simplesmen­te que preferimos um ao outro — como alguém pode preferir uma cerveja a um vinho doce; ou então queira­mos dizer que o que quer que cada um deles pense a seu respeito, e independentemente de nossas preferên­cias humanas imediatas, um deles está efetivamente er­rado, enganado ao se considerar benigno. Ora, se tudo o que queremos dizer é que preferimos o primeiro po­der, temos de desistir definitivamente dessa conversa de Bem e de Mal, pois o Bem é aquilo que devemos preferir quaisquer que sejam os nossos sentimentos momentâ­neos. Se “ser bom” significasse apenas aderir ao lado que por acaso nos agrada, o Bem não mereceria ser chama­do assim. Logo, o que queremos dizer é que um dos po­deres está errado, enquanto o outro está certo.

Mas no momento em que dizemos isto, insere-se no universo um terceiro fator, distinto dos outros dois poderes: uma lei, ou padrão, ou regra geral do Bem à qual o primeiro poder se submete, e o outro, não. Se os dois poderes são julgados por esse padrão, então o próprio padrão ou o Ser que o criou está além e acima de qual­quer um dos poderes. E ele o Deus verdadeiro. Na rea­lidade, quando dizemos que um poder é bom e o outro é mau, entendemos que um está em relação harmonio­sa com o Deus verdadeiro e supremo, e o outro, não.

O mesmo argumento pode ser apresentado de ou­tra maneira. Se o dualismo é real, o poder maligno deve ser um ente que ama o Mal pelo Mal. Na realidade, po­rém, não encontramos ninguém que aprecie o Mal só porque é o Mal. O mais próximo disso seria a crueldade. Mas, na vida real, as pessoas são cruéis por um de dois motivos: por sadismo, ou seja, por causa de uma perver­são sexual que faz da dor um objeto de prazer sensual, ou pela busca de algum benefício externo – dinheiro, poder, segurança. O prazer, o dinheiro, o poder e a se­gurança, considerados em si mesmos, são coisas boas. A maldade consiste em tentar obtê-los pelos métodos errados, ou de forma errada, ou em excesso. Não quero dizer, de modo algum, que não sejam terrivelmente per­versas as pessoas que agem assim. Digo apenas que a perversidade, quando a examinamos de perto, revela-se como um jeito errado de buscar o Bem. Podemos deci­dir ser bons por amor à própria bondade, mas não po­demos ser maus por amor à maldade. Podemos agir de forma bondosa mesmo quando não nos sentimos bon­dosos e não há uma recompensa para agir assim; a bonda­de é simplesmente a atitude correta. Ninguém, no en­tanto, é cruel simplesmente porque a crueldade é má; só o é porque ela lhe parece agradável ou lhe é útil. Em outras palavras, a maldade não consegue sequer ser má como a bondade é boa. A bondade, por assim dizer, é ela mesma, ao passo que a maldade é apenas o Bem per­vertido. E, para que haja uma perversão, é preciso que antes haja uma perfeição. Chamamos o sadismo de per­versão sexual, mas, para chamá-lo assim, temos de ter a idéia de uma sexualidade normal. Conseguimos distin­guir claramente um do outro porque a perversão pode ser explicada pela normalidade, mas a normalidade não pode ser explicada pela perversão. Segue-se que o Po­der Maligno, que supostamente está em pé de igualdade com o Poder Benigno e ama o Mal pelo Mal como aque­le ama o Bem pelo Bem, não passa de um bicho-papão. Para ser mau, ele tem de querer algo de bom e buscá-lo da forma errada: tem de ter impulsos originariamente bons para depois pervertê-los. Mas, se é mau, não pode fornecer a si mesmo nem as coisas boas e desejáveis nem os bons impulsos passíveis de perversão. Tem de receber ambos do Poder Benigno. Nesse caso, não é independen­te. Faz parte do mundo do Poder do Bem: ou foi gerado por este, ou por um poder superior a ambos.

Vamos colocar o assunto de forma mais clara ainda. Para que seja mau, esse poder tem de existir e ter inte­ligência e vontade. Ora, a existência, a inteligência e a vontade são, em si mesmas, coisas boas. Logo, esse po­der tem de receber essas qualidades do Poder do Bem: mesmo para ser mau, tem de emprestá-las ou roubá-las do seu opositor. Você começa a perceber agora por que o cristianismo sempre disse que o diabo é um anjo caí­do? Isto não é apenas uma historieta para crianças. E o reconhecimento real do fato de que o Mal é um para­sita, não um ente original. As forças que fazem com que o Mal possa subsistir foram dadas pelo Bem. Todas as coisas que propiciam que um homem mau seja efetiva­mente mau são, em si mesmas, qualidades: resolução, esperteza, boa aparência, a própria existência. E por cau­sa disso que o dualismo, a rigor, não funciona.

Devo admitir, por outro lado, que o verdadeiro cristianismo (o qual não deve ser confundido com o cristianismo água-com-açúcar) é bem mais próximo do dualismo do que as pessoas imaginam. Uma das coisas que me surpreenderam quando pela primeira vez li a sério o Novo Testamento são as menções freqüentes a uma Força Negra em ação no universo — um poderoso espírito maligno, causa principal da morte, da doença e do pecado. A diferença é que o cristianismo pensa que essa Força Negra foi criada por Deus e que no momento da criação era benigna, tendo-se perdido depois. O cris­tianismo concorda com o dualismo em que o universo está em guerra, mas discorda que seja uma guerra en­tre forças independentes. Considera-a antes uma guer­ra civil, uma rebelião, e afirma que vivemos na parte do universo ocupada pelos rebeldes.

Um território ocupado pelo inimigo — assim é este mundo. O cristianismo é a história de como o rei por direito desembarcou disfarçado em sua terra e nos cha­ma a tomar parte numa grande campanha de sabota­gem. Quando você vai à igreja, na verdade vai receber os códigos secretos mandados pelos nossos amigos: não é por outro motivo que o inimigo fica tão ansioso para nos impedir de freqüentá-la. Ele apela à nossa vaidade, preguiça e esnobismo intelectual. Sei que alguém vai me perguntat: “Você quer mesmo, na época em que vi­vemos, trazer de novo à baila a figura do nosso velho amigo, o diabo, com seus chifres e seu rabo?” Bem, o que a “época em que vivemos” tem a ver com o assunto, não sei. Quanto aos chifres e ao rabo, não faço muita questão deles. Quanto ao mais, porém, minha resposta é “sim”. Não afirmo conhecer coisa alguma sobre a apa­rência pessoal do diabo, mas, se alguém realmente qui­sesse conhecê-lo melhor, eu diria a essa pessoa: “Não se preocupe. Se você realmente quiser travar relações com ele, vai conseguir. Se vai gostar ou não da experiência, isso é outro assunto.”

 

3. A ALTERNATIVA ESTARRECEDORA

Os cristãos acreditam, portanto, que um poder ma­ligno se alçou, por enquanto, ao posto de Príncipe des­se Mundo. E inevitável que isso levante alguns proble­mas. Esse estado de coisas está de acordo com a vontade de Deus ou não? Se a resposta for “sim”, você dirá que esse Deus é bastante esquisito. Se for “não”, como pode acontecer algo que contrarie a vontade de um ser dotado de poder absoluto?

Quem quer que tenha exercido um papel de auto­ridade, no entanto, sabe que algo pode estar de acordo com sua vontade por um lado e em desacordo por outro. É bastante sensato que a mãe diga a seus filhos: “Não vou mandá-los arrumar o quarto de brinquedos toda noite. Vocês têm de aprender a fazer isso sozinhos.” Quan­do, certa noite, ela encontra o quarto todo bagunçado, com o urso de pelúcia, as canetinhas e o livro de gramá­tica espalhados pelo chão, isso contraria a sua vontade; afinal, ela preferia que os filhos fossem mais organiza­dos. Por outro lado, foi a sua vontade que permitiu que as crianças ficassem livres para deixar o quarto desorgani­zado. A mesma questão surge em qualquer regimento, sindicato ou escola. Quando algo é opcional, metade das pessoas não o cumprirá. Não era isso que queríamos, mas nossa vontade o tornou possível.

Provavelmente, o mesmo acontece no universo. Deus criou coisas dotadas de livre-arbítrio: criaturas que po­dem fazer tanto o bem quanto o mal. Alguns pensam que podem conceber uma criatura que, mesmo desfru­tando da liberdade, não tivesse possibilidade de fazer o mal. Eu não consigo. Se uma coisa é livre para o bem, é livre também para o mal. E o que tornou possível a existência do mal foi o livre-arbítrio. Por que, então, Deus o concedeu? Porque o livre-arbítrio, apesar de possibi­litar a maldade, é também aquilo que torna possível qualquer tipo de amor, bondade e alegria. Um mundo feito de autômatos — criaturas que funcionassem como máquinas – não valeria a pena ser criado. A felicidade que Deus quis para suas criaturas mais elevadas é a fe­licidade de estar, de forma livre e voluntária, unidas a ele e aos demais seres num êxtase de amor e deleite ao qual os maiores arroubos de paixão terrena entre um ho­mem e uma mulher não se comparam. Por isso, essas criaturas têm de ser livres.

E claro que Deus sabia o que poderia acontecer se a liberdade fosse usada de forma errada. Aparentemente, ele achou que valia a pena correr o risco. Talvez quei­ramos discordar dele. Existe, porém, um empecilho para se discordar de Deus. Ele é a fonte da qual vem toda a nossa faculdade de raciocínio: não podemos estar certos e ele, errado, assim como uma onda não pode mudar o sentido da maré. Quando discutimos com ele, esta­mos na verdade discutindo contra o próprio poder que nos tornou capazes de discutir: é como se cortássemos o galho no qual estamos sentados. Se Deus pensa que o estado de guerra no universo é um preço justo a pagar pelo livre-arbítrio – ou seja, pela criação de um mundo vivaz no qual as criaturas podem fazer tanto um grande bem quanto um grande mal, no qual acontecem coisas realmente importantes, em vez de um mundo de mario­netes que só se movem quando ele puxa as cordinhas -, devemos igualmente consentir que o preço é justo.

Quando compreendemos a questão do livre-arbítrio, vemos o quanto é tolo perguntar o que alguém certa vez me perguntou: “Por que Deus criou um ser de ma­téria tão corrompida, condenando-o ao erro?” Quanto melhor for a matéria da qual for feita uma criatura -quanto mais ela for inteligente, forte e livre -, tanto me­lhor será ela quando tender para o certo, e tanto pior quando tender para o errado. Uma vaca não pode ser nem muito boa, nem muito má; um cachorro já pode ser um pouco melhor ou um pouco pior; uma criança pode ser ainda melhor ou pior; um homem comum, ainda melhor ou pior; um homem de gênio, melhor ou pior ainda; um espírito sobre-humano, melhor – ou pior — do que todos os demais.

Como pôde o Poder das Trevas ter caído no erro? Para essa pergunta, sem dúvida, nós, seres humanos, não conseguimos formular uma resposta com absoluta cer­teza. Podemos, entretanto, oferecer um palpite razoável (e tradicionalmente aceito) baseado em nossas próprias experiências de erro. No momento em que possuímos um ego, temos a possibilidade de nos colocar em pri­meiro lugar – de querer ser o centro de tudo — de que­rer, na verdade, ser Deus. Esse foi o pecado de Satanás, e foi esse o pecado que ele ensinou à raça humana. Cer­tas pessoas julgam que a queda do homem teve algo a ver com o sexo, mas estão enganadas. (A história con­tada no Livro do Gênesis sugere, isto sim, que nossa na­tureza sexual foi corrompida após a queda, como uma conseqüência desta, e não uma causa.) O que Satanás colocou na cabeça dos nossos remotos ancestrais foi a idéia de que poderiam “ser como deuses” — poderiam bastar-se a si mesmos como se fossem seus próprios cria­dores; poderiam ser senhores de si mesmos e inventar um tipo de felicidade fora e à parte de Deus. Dessa ten­tativa, que não pode dar certo, vem quase tudo o que chamamos de história humana: o dinheiro, a miséria, a ambição, a guerra, a prostituição, as classes, os impé­rios, a escravidão – a longa e terrível história da tenta­tiva do homem de descobrir a felicidade em outra coisa que não Deus.

A razão pela qual essa tentativa não pode ser bem-sucedida é a seguinte: Deus nos criou como um ho­mem inventa uma máquina. Um carro é feito para ser movido a gasolina. Deus concebeu a máquina humana para ser movida por ele mesmo. O próprio Deus é o com­bustível que nosso espírito deve queimar, ou o alimento do qual deve se alimentar. Não existe outro combustível, outro alimento. Esse é o motivo pelo qual não podemos pedir que Deus nos faça felizes e ao mesmo tempo não dar a mínima para a religião. Deus não pode nos dar uma paz e uma felicidade distintas dele mesmo, porque fora dele elas não se encontram. Tal coisa não existe.

Essa é a chave da história humana. Despende-se uma energia incrível, erguem-se civilizações, concebem-se excelentes instituições, mas algo sempre dá errado. Uma falha fatal sempre permite que as pessoas mais egoístas e cruéis subam ao poder, trazendo a derrocada, a des­graça e a ruína. A máquina, em outras palavras, emper­ra, Ela parece engrenar bem e rodar por alguns metros, mas então se quebra. Tentamos fazê-la funcionar com o combustível errado. E isso que Satanás fez para nós, seres humanos.

E o que Deus fez? Em primeiro lugar, nos deu uma consciência, o sentido do certo e do errado. Ao longo da história, certas pessoas tentaram obedecê-la (algumas, com muito esforço); nenhuma delas conseguiu obede­cê-la totalmente. Em segundo lugar, enviou à raça hu­mana o que chamo de “sonhos bons”: as histórias extraor­dinárias espalhadas por todas as religiões pagãs sobre um deus que morre e ressuscita e que, por sua morte, dá nova vida ao homem. Em terceiro lugar, Ele escolheu um certo povo e, por séculos a fio, martelou na cabeça desse povo que tipo de Deus ele era, que não havia ou­tro fora dele e que ele exigia a boa conduta. Esse povo foi o povo judeu, e o Antigo Testamento nos dá a nar­rativa de como foi esse martelar.

O verdadeiro choque vem depois. Entre os judeus surge, de repente, um homem que começa a falar como se ele próprio fosse Deus. Afirma categoricamente per­doar os pecados. Afirma existir desde sempre e diz que voltará para julgar o mundo no fim dos tempos. Deve­mos aqui esclarecer uma coisa: entre os panteístas, como os indianos, qualquer um pode dizer que é uma parte de Deus, ou é uno com Deus, e não há nada de muito es­tranho nisso. Esse homem, porém, sendo um judeu, não estava se referindo a esse tipo de divindade. Deus, na sua língua, significava um ser que está fora do mundo, que criou o mundo e é infinitamente diferente de tudo o que criou. Quando você entende esse fato, percebe que as coisas ditas por esse homem foram, simplesmente, as mais chocantes já pronunciadas por lábios humanos.

Há um elemento do que ele afirmava que tende a passar despercebido, pois o ouvimos tantas vezes que já não percebemos o que ele de fato significa. Refiro-me ao perdão dos pecados. De todos os pecados. Ora, a me­nos que seja Deus quem o afirme, isso soa tão absurdo que chega a ser cômico. Compreendemos que um ho­mem perdoe as ofensas cometidas contra ele mesmo. Você pisa no meu pé, ou rouba meu dinheiro, e eu o per­dôo. O que diríamos, no entanto, de um homem que, sem ter sido pisado ou roubado, anunciasse o perdão dos pisões e dos roubos cometidos contra os outros? Pre­sunção asinina é a descrição mais gentil que podemos dar da sua conduta. Entretanto, foi isso o que Jesus fez. Anunciou ao povo que os pecados cometidos estavam perdoados, e fez isso sem consultar os que, sem dúvida alguma, haviam sido lesados por esses pecados. Sem hesitar, comportou-se como se fosse ele a parte interessada, como se fosse o principal ofendido. Isso só tem sentido se ele for realmente Deus, cujas leis são trans­gredidas e cujo amor é ferido a cada pecado cometido. Nos lábios de qualquer pessoa que não Deus, essas pa­lavras implicam algo que só posso chamar de uma im­becilidade e uma vaidade não superadas por nenhum outro personagem da história.

No entanto (e isto é estranho e, ao mesmo tempo, significativo), nem mesmo seus inimigos, quando lêem os evangelhos, costumam ter essa impressão de imbeci­lidade ou vaidade. Quanto menos os leitores sem pre­conceitos. Cristo afirma ser “humilde e manso”, e acre­ditamos nele, sem nos dar conta de que, se ele fosse so­mente um homem, a humildade e a mansidão seriam as últimas qualidades que poderíamos atribuir a alguns de seus ditos.

Estou tentando impedir que alguém repita a rema­tada tolice dita por muitos a seu respeito: “Estou dispos­to a aceitar Jesus como um grande mestre da moral, mas não aceito a sua afirmação de ser Deus.” Essa é a úni­ca coisa que não devemos dizer. Um homem que fosse somente um homem e dissesse as coisas que Jesus dis­se não seria um grande mestre da moral. Seria um lu­nático – no mesmo grau de alguém que pretendesse ser um ovo cozido — ou então o diabo em pessoa. Faça a sua escolha. Ou esse homem era, e é, o Filho de Deus, ou não passa de um louco ou coisa pior. Você pode querer calá-lo por ser um louco, pode cuspir nele e matá-lo co­mo a um demônio; ou pode prosternar-se a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas que ninguém venha, com paternal condescendência, dizer que ele não pas­sava de um grande mestre humano. Ele não nos deixou essa opção, e não quis deixá-la.

 

4. O PENITENTE PERFEITO

Somos confrontados, então, com uma alternativa assustadora. Ou esse homem de quem estamos falando era (e é) o que dizia ser, ou era um lunático ou coisa pior. Ora, parece-me óbvio que ele não era nem um lunático nem um demônio; conseqüentemente, por mais estra­nho, assustador ou insólito que pareça, tenho de aceitar a idéia de que ele era, e é, Deus. Deus chegou sob for­ma humana no território ocupado pelo inimigo.

Agora, qual o sentido disso tudo? O que ele veio fazer aqui? Bem, veio ensinar, é claro. No entanto, assim que começamos a examinar o Novo Testamento ou qualquer outro escrito cristão, descobrimos que eles falam constan­temente de algo bem diferente: falam de sua morte e ressurreição. É evidente que os cristãos julgam estar aí o ponto central da história. Acreditam que Jesus veio à Terra especificamente para sofrer e ser morto.

Ora, antes de me tornar cristão, eu tinha a impres­são de que a primeira coisa em que os cristãos tinham de acreditar era uma teoria particular sobre o propósito dessa morte. De acordo com essa teoria, Deus queria castigar os homens por terem desertado e se unido à Grande Rebelião, mas Cristo se ofereceu para ser puni­do em lugar dos homens, e Deus não nos puniu. Hoje admito que nem mesmo essa teoria me parece mais tão imoral e pueril quanto me parecia, mas não é essa a ques­tão que me ocupa. O que vim a perceber mais tarde é que o cristianismo não é nem essa teoria nem nenhuma outra. A principal crença cristã é que a morte de Cristo de algum modo acertou nossas contas com Deus e nos deu a possibilidade de começar de novo. As teorias so­bre como isso ocorreu são outro assunto. Várias teorias foram formuladas a esse respeito; o que todos os cristãos têm em comum é a crença na eficácia dessa morte. Vou lhes dizer o que penso do assunto. Toda pessoa de juí­zo sabe que, quando estamos cansados e famintos, um prato de comida nos fará bem. Já a teoria moderna da nutrição, com suas vitaminas e proteínas, é coisa bem di­ferente. As pessoas já comiam para sentir-se bem muito antes de ouvir falar de vitaminas. Se algum dia a teoria das vitaminas for abandonada, continuarão almoçando e jantando como sempre fizeram. As teorias a respeito da morte de Cristo não são o cristianismo: são explica­ções de como ele funciona. Os cristãos não precisam to­dos concordar com a importância delas. Minha própria igreja, a Anglicana, não propõe nenhuma delas como a única teoria correta. A Igreja Romana vai um pouco mais longe. Creio, porém, que todas concordam que a coisa em si é infinitamente mais importante que qualquer explicação produzida pelos teólogos. Elas provavelmen­te admitiriam que nenhuma explicação é perfeitamen­te adequada à realidade. Como disse no prefácio do livro, no entanto, eu sou apenas um leigo, e nesse ponto as águas começam a ficar profundas. Só posso lhes dizer como eu, pessoalmente, encaro o assunto.

Do meu ponto de vista, o que se pede que aceite­mos não são as teorias. Sem dúvida, muitos de vocês já leram os trabalhos de Jeans ou de Eddington[2]. O que eles fazem, quando tentam explicar o átomo ou coisa parecida, é nos dar uma descrição a partir da qual po­demos elaborar uma imagem mental. Em seguida, nos advertem de que não é nessas imagens que de fato acre­ditam, mas sim numa fórmula matemática. As imagens só existem para nos ajudar a compreender a fórmula.

Não são verdadeiras como a fórmula é verdadeira; não representam a realidade, mas algo que se lhe assemelha. Têm a função de ajudar; se não ajudam, podem ser deixadas de lado. A realidade em si não pode ser repre­sentada em imagens, só pode ser expressa em termos matemáticos. Estamos numa situação parecida. Acredi­tamos que a morte de Cristo é o ponto exato da história no qual algo externo a nós, absolutamente inimaginá­vel, se manifestou em nosso mundo. Se não consegui­mos nem mesmo fazer uma imagem dos átomos que compõem esse mundo, é claro que não conseguiremos imaginar essa realidade superior. Aliás, se nos constatás­semos capazes de compreendê-la integralmente, esse fato por si só mostraria que ela não é o que afirma ser – o inconcebível, o incriado, algo de fora da natureza que penetra nela como um raio. Você talvez pergunte de que isso nos serve se não podemos compreendê-lo. A resposta, porém, é fácil. Um homem pode jantar sem saber exatamente de que modo os alimentos o nutrem. Da mesma forma, pode aceitar a obra de Cristo sem en­tender como ela funciona; aliás, é certo que, para enten­dê-la, tem de aceitá-la primeiro.

Dizem-nos que Cristo morreu por nós, que sua mor­te nos lavou de nossos pecados e que, morrendo, ele destruiu a própria morte. Essa é fórmula. Esse é o cris­tianismo. E nisso que acreditamos. A meu ver, todas as teorias que construímos para explicar como a morte de Cristo operou tudo isso são perfeitamente dispensá­veis: meros esquemas ou diagramas que podem ser dei­xados de lado quando não nos ajudam e que, mesmo quando são úteis, não devem ser tomados pela própria realidade. Não obstante, algumas teorias merecem um exame mais detido.

A que a maioria das pessoas conhecem é a que já mencionei – a de que fomos absolvidos do castigo por­que Cristo se ofereceu para ser castigado em nosso lugar. Ora, à primeira vista, parece uma teoria bastante tola. Se Deus estava disposto a nos perdoar, por que não nos perdoou de antemão? E por que, além disso, castigou um inocente em lugar dos culpados? Se pensarmos o castigo na acepção policial e judicial da palavra, isso não tem sentido nenhum. Por outro lado, se pensarmos numa dívida, é muito natural que uma pessoa, possuindo bens, salde os compromissos daquela que não os possui. Ou, se tomarmos a expressão “cumprir a pena” não no sentido de ser punido, mas sim no de “agüentar as conseqüências” e “pagar a conta” – ora, todos sabem que, quando uma pessoa cai num buraco, o problema de tirá-la de lá geral­mente recai sobre os ombros de um bom amigo.

Em que tipo de “buraco” caíra o homem? Ele pro­curara ser auto-suficiente e se comportara como se per­tencesse a si mesmo. Em outras palavras, o homem decaído não é simplesmente uma criatura imperfeita que precisa ser melhorada; é um rebelde que precisa depor as armas. Depor as armas, render-se, pedir perdão, dar-se conta de que tomou o caminho errado, estar disposto a começar uma vida nova do zero — só isso pode nos “tirar do buraco”. Esse processo de rendição, movimen­to de marcha a ré a toda velocidade, é o que o cristia­nismo chama de arrependimento. Mas, veja só, o arre­pendimento não é nada agradável. E bem mais difícil que simplesmente engolir um sapo. Significa desapren­der toda a presunção e a obediência à vontade própria que nos foram incutidas por milhares de anos; signifi­ca matar uma parte de si mesmo e submeter-se a uma espécie de morte. Na verdade, só um homem bom pode arrepender-se. E isso nos leva a um paradoxo. Só uma pessoa má precisa do arrependimento, mas só uma pes­soa boa consegue arrepender-se perfeitamente. Quan­to pior você é, mais precisa do arrependimento e me­nos é capaz de arrepender-se. A única pessoa capaz de arrepender-se perfeitamente seria uma pessoa perfeita – e não precisaria fazê-lo em absoluto.

Lembre que esse arrependimento, essa entrega vo­luntária à humilhação e a um tipo de morte não é algo que Deus exige de nós para que nos aceite de volta ou algo do qual pode nos livrar, se assim decidir. É simples­mente uma descrição de como é o próprio retorno a Deus. Se pedimos que ele nos aceite sem esse arrepen­dimento, estamos na verdade pedindo para voltar sem voltar. Não é possível. Pois muito bem, temos de nos arrepender. Entretanto, a maldade que nos faz precisar disso nos impede de fazê-lo. Será que podemos arre­pender-nos se Deus nos ajudar? Sim, mas o que signi­fica essa ajuda? Significa que Deus, por assim dizer, co­loca um pouco de si mesmo em nós. Empresta-nos um pouco da sua razão e assim nos tornamos capazes de pensar; nos dá um pouco do seu amor e, dessa maneira, amamos uns aos outros. Quando ensinamos uma crian­ça a escrever, seguramos-lhe a mão, ajudando-a a dese­nhar as letras. Ou seja, ela só pode formar as letras por­que nós as formamos. Nós amamos e raciocinamos porque Deus ama e raciocina e, enquanto isso, segura a nossa mão. Se não tivéssemos caído, tudo iria de vento em popa. Infelizmente, em nosso estado atual, precisa­mos da ajuda de Deus para fazer algo que, pela sua pró­pria natureza, ele nunca faz: render-se, sofrer, subme­ter-se e morrer. A natureza divina não condiz em nada com esse processo. A estrada em que mais precisamos ser guiados por Deus é uma estrada que Deus, em sua própria natureza, nunca trilhou. Deus só pode partilhar conosco o que tem; mas ele não tem essas coisas em sua própria natureza.

Suponha, no entanto, que Deus se torne homem. Suponha que nossa natureza humana seja amalgamada com a divina na forma de uma pessoa. Essa pessoa pode­ria nos ajudar. Poderia submeter-se à vontade de Deus, sofrer e morrer, porque seria um ser humano. Poderia fazer tudo isso perfeitamente, porque concomitante­mente seria Deus. Você e eu só podemos percorrer esse processo se Deus o fizer ocorrer em nós; mas Deus só pode fazê-lo se for um homem. Assim como nosso pen­samento só pode ir adiante por ser uma gota tirada do oceano da inteligência divina, assim também nossa ten­tativa de morrer só dá certo se participarmos da morte de Deus. Porém, só podemos participar dessa morte se ele morrer; e ele só pode morrer se for um homem. E nesse sentido que ele paga as nossas dívidas e sofre por nós aquilo que, por sua própria natureza, não precisa­ria sofrer de modo algum.

Certas pessoas se queixam de que, se Jesus foi ao mesmo tempo Deus e homem, seus sofrimentos e sua morte não têm valor nenhum, “pois tudo isso foi fácil para ele”. Outras pessoas podem (com toda razão) pro­testar veementemente contra a ingratidão e a grosseria dessa objeção. O que me deixa espantado é a incom­preensão que ela revela. Em certo sentido, os adeptos dessa objeção não só têm razão como mesmo foram tí­midos em explorar a idéia. A submissão perfeita, o so­frimento perfeito e a morte perfeita não foram somente mais fáceis para Jesus porque ele era Deus; só foram possíveis porque ele era Deus. Mas não será essa uma ra­zão muito estranha para não aceitar essa submissão, esse sofrimento e essa morte? O professor é capaz de ajudar as crianças a formar as letras porque é adulto e sabe es­crever. Evidentemente, para o professor é fácil escrever, e é essa mesma facilidade que o habilita a ajudar a crian­ça. Se ele fosse rejeitado com a desculpa de que essa ta­refa “é fácil para adultos”, e a criança quisesse aprender a escrever com outra criança igualmente analfabeta (o que anularia qualquer vantagem “injusta”), o progresso dela não seria lá muito rápido. Se eu estivesse me afo­gando numa corredeira, um homem que tivesse um dos pés solidamente plantado na margem do rio poderia estender a mão e salvar-me a vida. Será que eu deveria (entre um engasgo e outro) gritar: “Não! Isso não é jus­to! Você tem uma vantagem! Ainda está com um dos pés em terra firme!”? A vantagem — chame-a de “injus­ta”, se quiser — é o único motivo pelo qual esse homem me pode ser útil. Em quem buscaremos socorro, senão em alguém mais forte do que nós?

Essa é minha própria maneira de ver o que os cris­tãos chamam de Expiação. Lembre-se, porém, de que se trata apenas de mais uma imagem, que não deve ser confundida com a realidade. Se ela não lhe for útil, dei­xe-a de lado.

 

5.A CONCLUSÃO PRÁTICA

Cristo entregou-se à submissão e à humilhação per­feitas: perfeitas porque era Deus; submissão e humilha­ção porque era um homem. Ora, a crença dos cristãos está em que, se partilharmos de algum modo da humil­dade e do sofrimento de Cristo, partilharemos também do seu triunfo sobre a morte, encontraremos nova vida após a morte e nela seremos criaturas perfeitas e per­feitamente felizes. Isso implica bem mais que tentar se­guir seus ensinamentos. As pessoas se perguntam quando ocorrerá o próximo passo da evolução — um passo para além do próprio homem —, mas, segundo o cristianis­mo, esse passo já foi dado. Em Cristo, um novo homem surgiu; e o novo tipo de vida que começou nele deve ser instilado em nós.

Como isso pode ocorrer? Lembremo-nos, antes de mais nada, de como adquirimos a nossa forma ordiná­ria de vida. Recebemo-la de outras pessoas, de nossos pais e de todos os nossos ancestrais, independentemente de um consentimento nosso e mediante um processo muito curioso, que envolve o prazer, a dor e o perigo: um processo que nunca teríamos imaginado. A maioria das pessoas passa boa parte da infância tentando ima­ginar como a vida se originou, e, quando a resposta lhes é dada, de início não acreditam nela. Não as culpo por isso, já que é mesmo um processo bastante estranho. Ora, o Deus que criou esse processo é o mesmo que pla­neja como o novo tipo de vida — a vida de Cristo — será difundido. Não devemos nos surpreender se também esse processo for estranho. Assim como Deus não quis ouvir nossa opinião quando inventou o sexo, também não nos consultou a respeito dessa vida nova.

Há três coisas que infundem a vida de Cristo em nós: o batismo, a fé e essa ação misteriosa que os cristãos chamam por vários nomes — a Santa Ceia, a Eucaristia, a Ceia do Senhor. São esses três, pelo menos, os méto­dos mais comuns, o que não quer dizer que não haja casos especiais em que essa vida nos possa ser dada na ausência de um ou mais deles. Não tenho tempo para me deter nos casos especiais e não tenho conhecimento suficiente para fazê-lo. Se você tentar explicar para alguém, em poucos minutos, como chegar em Edimbur­go, dirá quais os trens que deve pegar. É claro que essa pessoa pode chegar à cidade de navio ou de avião, mas dificilmente você levantará essas opções. E não vou dizer coisa alguma sobre qual das três coisas citadas é a mais essencial. Meu amigo metodista queria que eu falasse mais a respeito da fé e menos a respeito das outras duas, mas não vou fazer isso. Qualquer um que pretenda en­sinar a doutrina cristã vai, sem dúvida, dizer que os três meios devem ser utilizados, e isso é suficiente para nos­sa finalidade imediata.

Eu mesmo não consigo entender como tais coisas podem nos conduzir ao novo tipo de vida. Mas até aí, se ninguém tivesse me dito nada a respeito da procria­ção, eu jamais teria estabelecido um nexo entre um certo prazer de ordem física e o nascimento de um novo ser humano no mundo. Temos de aceitar a realidade tal como ela se nos apresenta: não devemos fazer conside­rações vãs sobre como as coisas deveriam ser ou como esperaríamos que elas fossem. No entanto, mesmo sem saber por que as coisas são assim, posso lhes dizer por que acredito nisso, já expliquei por que sou obrigado a crer que Jesus era (e é) Deus. Ora, o fato de ele ter en­sinado a seus seguidores que a nova vida é transmitida dessa forma é tão claro para nós quanto qualquer ou­tro fato da história. Em outras palavras, acredito na autoridade dele. Não tenha medo da palavra “autorida­de”. Se você acredita em algo por causa da autoridade de alguém significa apenas que você acredita porque a pessoa que lhe deu a informação é confiável. Noventa e nove por cento das coisas em que acreditamos são cri­das em função da autoridade de alguém. Acredito, por exemplo, que exista um lugar chamado Nova York, mesmo sem ter estado lá e mesmo sem conseguir pro­var sua existência pelo raciocínio abstrato. Acredito nisso porque pessoas confiáveis assim o garantem. O ho­mem comum acredita no sistema solar, nos átomos, na evolução e na circulação do sangue por causa da auto­ridade de alguém – porque os cientistas o afirmam. A única prova que temos de qualquer declaração históri­ca é também a autoridade. Nenhum de nós testemu­nhou a conquista normanda ou a derrota da Invencí­vel Armada. Nenhum de nós poderia provar pela lógica pura que essas coisas aconteceram como se pode pro­var uma equação matemática. Acreditamos nelas sim­plesmente porque algumas testemunhas deixaram relatos escritos a seu respeito: na verdade, acreditamos nelas por causa de uma autoridade. Um homem que demons­trasse ceticismo em relação à autoridade em outros as­suntos, como certas pessoas o fazem em relação à reli­gião, teria de se contentar com não saber absolutamen­te nada.

Não pense que estou apresentando o batismo, a fé e a Santa Ceia como substitutos do próprio esforço para imitar a Cristo. A vida natural é recebida de nossos pais, mas isso não significa que permaneceremos vivos sem fazer nada. Você pode perder a vida por negligência ou pode dar-lhe fim com o suicídio. Tem de alimentá-la e cuidar dela, sempre lembrando que não a criamos, mas simplesmente conservamos uma vida recebida de ter­ceiros. Do mesmo modo, o cristão pode perder a vida de Cristo que lhe foi infundida, e tem de fazer esforço para mantê-la. Porém, nem mesmo o melhor cristão que já existiu age por força própria – só pode nutrir ou pro­teger uma vida que jamais poderia ter sido adquirida por esforço pessoal. Disso decorrem certas conseqüên­cias práticas. Enquanto a vida natural anima o corpo, ela trabalha para conservar esse corpo. Quando ele so­fre um ferimento, pode, até certo ponto, cicatrizar, o que não ocorre com um corpo morto. O organismo vivo não se caracteriza por nunca se ferir, mas sim por ter um po­der, mesmo que limitado, de recuperação. Da mesma forma, o cristão não é um homem que nunca erra, mas um homem capaz de se arrepender, de levantar a cabe­ça e seguir em frente após cada queda. Ele é assim por­que a vida de Cristo está dentro dele, sempre pronta para recuperá-lo, habilitando-o a imitar (em certa medida) a morte voluntária que o próprio Cristo levou a cabo.

É por isso que o cristão se encontra numa situação diferente da de outras pessoas que tentam ser boas. Es­tas esperam, por ser boas, agradar a Deus, quando nele acreditam; ou, caso não acreditem, esperam pelo me­nos receber a aprovação dos homens bons. Já o cristão pensa que todo bem que faz advém da vida de Cristo que o anima interiormente. Não pensa que Deus nos amará mais por sermos bons, mas que Deus nos fará bons porque nos amou primeiro, do mesmo modo que o teto de uma estufa não atrai o sol por ser brilhante, mas brilha porque o sol irradia sobre ele.

Gostaria de deixar bem claro que, quando os cris­tãos dizem que a vida de Cristo está dentro deles, não se referem simplesmente a algo mental ou moral. Quan­do dizem que “estão em Cristo” ou que o Cristo “está neles”, não é uma mera maneira de dizer que estão pen­sando em Cristo ou tentando imitá-lo. Querem dizer que Cristo opera de fato através deles; que a massa dos cristãos é o organismo físico pelo qual Cristo age — que nós somos seus dedos e músculos, as células de seu cor­po. E talvez isso explique algumas coisas. Explica por que essa nova vida nos é infundida não apenas median­te atos puramente mentais, como a fé, mas também me­diante atos corporais, como o batismo e a Santa Ceia. Não se trata simplesmente da difusão de uma idéia; an­tes, é como a evolução — um fato biológico ou superbiológico. Não vale a pena tentar ser mais espiritual do que o próprio Deus, que nunca teve a intenção de que fôssemos criaturas puramente espirituais. Esse é o mo­tivo pelo qual se vale de meios materiais como o pão e o vinho para infundir em nós essa nova vida. Há quem diga que esses meios são pouco refinados e desespiritualizados. Deus não acha: ele inventou o ato de comer. Ele gosta da matéria; afinal, foi ele mesmo que a inventou.

Eis outra coisa que me intrigava: não é terrivelmente injusto que essa vida nova só chegue às pessoas que ouvi­ram falar de Cristo e acreditaram nele? A verdade, porém, é que Deus não nos deixou a par de seus desígnios a res­peito das outras pessoas. O que sabemos é que nenhum homem pode ser salvo a não ser por meio de Cristo; ninguém nos disse que só os que o conhecem podem ser salvos por ele. Nesse ínterim, se você está preocupa­do com as pessoas de fora, a coisa menos insensata a fazer é permanecer de fora também. Os cristãos são o corpo de Cristo, o organismo através do qual ele trabalha. Cada acréscimo a esse corpo permite que ele trabalhe mais. Se você quer ajudar os que estão de fora, tem de acres­centar sua pequena célula ao corpo de Cristo, o único que pode ajudá-los. Decepar o dedo de um homem se­ria uma forma excêntrica de levá-lo a trabalhar mais.

Vamos a outra objeção possível. Por que Deus quis entrar sob disfarce neste mundo ocupado pelo inimigo, fundando uma espécie de sociedade secreta para minar o demônio? Por que não invade o território com força total? Será que ele não é forte o suficiente? Bem, os cristãos acreditam que Deus vai utilizar a força total; apenas não se sabe quando. Mas podemos adivinhar o porquê do atraso. Agindo assim, ele nos dá uma chan­ce de aderirmos à sua causa livremente. Não acho que você e eu teríamos em alta estima um francês que es­perasse os aliados marcharem Alemanha adentro para só então anunciar que estava do nosso lado. E certo que Deus vai invadir. Mas não sei se as pessoas que pedem que Deus interfira aberta e diretamente em nosso mun­do sabem exatamente o que estão pedindo. Quando ele fizer isso, será o fim do mundo. Quando o autor sobe ao palco, é porque a peça já terminou. A invasão divina vai acontecer, não há dúvida quanto a isso; mas o que vamos ganhar se só então anunciarmos que estávamos do lado dele? De que nos valerá isso quando o univer­so se dissolver como um sonho e algo até então incon­cebível para nossa mente sobrevier com estrépito — algo tão magnífico para alguns e tão terrível para outros? De que isso nos valerá quando não pudermos mais escolher? Dessa vez, Deus se apresentará sem disfarce, e virá com tamanho poder que causará em cada criatura um amor irresistível ou um irresistível horror. Será tarde demais, então, para escolher um dos lados. Quando não é mais possível ficar em pé, de nada adianta você dizer que de­cidiu ficar deitado. Aquele não será o tempo das esco­lhas, mas sim da revelação do lado a que pertencíamos, tivéssemos consciência disso ou não. Hoje, agora, nes­te momento, temos a oportunidade de escolher o lado correto. Deus tarda a aparecer para nos dar essa chance, que não durará para sempre. E pegar ou largar.

[1] Um ouvinte queixou-se do uso da palavra damned (maldita), que seria uma imprecação le­viana. Mas eu quis dizer literalmente o que disse: uma asneira maldita é a que sofre a mal­dição de Deus e que (exceto pela graça divina) leva à morte eterna os que nela acreditam.

[2] Provável menção aos astrônomos ingleses Arthur Stanley Eddington (1882-1944) e James Hopwood Jeans (1877-1946). (N. do R. T.)


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