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por André Correia
Quando buscamos as práticas de Bruxaria Tradicional, inevitavelmente passamos pela interferência do tempo e pela influência das culturas que as transportaram até os dias atuais. O próprio registro escrito das práticas pagãs antigas já pode ter passado através do prisma influenciado pelos valores, crenças e julgo de seus observadores cristãos. Não é possível afirmar que o objetivo dos letrados homens da elite eclesiástica era apenas registrar, sem distorcer — intencionalmente ou por ignorância — a realidade dos povos do campo.
Portanto, a bruxaria tradicional que chega até nós é profundamente pautada em registros, litografias, pinturas e práticas populares que viajaram pelo tempo através dos seus povos, em tradições familiares ou festividades populares. Em muitos casos, para sobreviverem à presença de seus dominadores, as práticas folclóricas foram mescladas e sincretizadas com a finalidade de camuflar suas crenças originárias por meio da iconografia e liturgia da religião opressora. Por esse motivo, boa parte do paganismo italiano e ibérico passou por processos sincréticos com o cristianismo, adquirindo uma identidade peculiar: de aparência cristã totalmente herética e de raiz totalmente folclórica e pagã.
Com o passar do tempo, o que era um disfarce tornou-se uma característica dos povos daquelas regiões da Europa. O catolicismo popular e o paganismo trocaram olhares — sem o aval da Igreja, mas também sem a repressão direta da mesma. Isso porque tal opressão afastaria a população conectada com suas raízes culturais das práticas do cristianismo em detrimento de suas origens. Soa controversa a existência de uma “bruxaria cristã”? Talvez sim, talvez não. Mas funciona tanto quanto a mistura de crenças africanas e cristãs que deram origem à Umbanda, por exemplo.
Na atualidade, existem movimentos radicais que buscam descristianizar o paganismo tradicional. Se, por um lado, compreendo que é coerente afastar as instituições cristãs — que oprimiram (e ainda oprimem) as mulheres, que torturaram, enforcaram, afogaram e queimaram em suas fogueiras inquisitoriais —, por outro lado entendo que essa ruptura é impossível, pois trata-se de um processo histórico de séculos que não se desfará somente pela vontade de alguns indivíduos e grupos. Até mesmo os bruxos e bruxas que levantam bandeiras satanistas e prestam honras e devoção a uma figura diabólica antagônica a Jesus se amparam nos textos bíblicos para existir. Sem a existência do livro sagrado cristão, toda essa mitologia diabólica iria pelo ralo — ou precisaria de outra mitologia para combater.
Gosto da forma como a escritora Naamah escreve em seu livro Bruxaria Diabólica, no qual trata o diabolismo no sentido antinomiano, ou seja, quase anárquico. Dessa forma, concede autonomia para que a bruxaria exista como um fenômeno popular, questionando a todos — inclusive a si mesma. Como eu gosto de dizer (e já a vi usar o mesmo termo), trata-se da liberdade de uma bruxaria “vira-lata”, marginal. E o uso desse termo não tem nenhum demérito, pois o entendo como o resultado espontâneo da mistura de diversos fragmentos ancestrais que culminam no fenômeno espontâneo moderno. Na verdade, penso ser fenomenologicamente próximo do paganismo originário, que se fundamenta na relação do indivíduo ou do coletivo com a natureza onde se está inserido e nas influências ancestrais.
Penso também que até mesmo a bruxaria dita tradicional é contemporânea. Não como a bruxaria Wiccana Gardneriana ou Alexandrina, mas como uma prática que se modernizou através das influências transgeracionais.
Por fim, a bruxaria é viva e não é possível enjaulá-la ao bel-prazer. Ela continuará se criando, se modificando, ficando pelo caminho, se renovando e continuando. Aceitar ou não aceitar só vai ditar o quanto isso vai acelerar — ou evitar — o surgimento de rugas de estresse nas suas expressões.
Dica? Cuide das suas práticas e dedique-se a elas. Se a prática alheia não diz respeito a você, não interfere direta ou indiretamente nas suas crenças, por qual motivo se meter?
A instituição padece do mal que tenta combater.
André Correia
www.andrecorreiatambores.com.br
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