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C.S.Lewis
1. CRIAR E GERAR
Todos me aconselharam a não lhes dizer o que vou dizer neste último livro. Afirmam: “O leitor comum não quer saber de Teologia; dê-lhe somente a religião simples e prática.” Rejeitei o conselho. Não acho que o leitor comum seja um tolo. Teologia significa “a Ciência de Deus”, e creio que todo homem que pensa sobre Deus gostaria de ter sobre ele a noção mais clara e mais precisa possível. Vocês não são crianças: por que, então, lhes tratar como tal?
Em certo sentido, até compreendo por que algumas pessoas se sentem desconcertadas ou até incomodadas pela Teologia. Lembro-me de certa ocasião em que dava uma palestra para os pilotos da R.A.F. e um oficial velho e rijo levantou-se e disse: “Nada disso tem serventia para mim. Mas saiba que também sou um homem religioso. Sei que existe um Deus. Sozinho no deserto, à noite, já senti a presença dele: o tremendo mistério. E é exatamente por isso que não acredito em todas essas fórmulas e esses dogmas a respeito dele. Para qualquer um que tenha conhecido a realidade, todos eles parecem mesquinhos, pedantes e irreais.”
Ora, num sentido, até concordo com esse homem. Creio que ele provavelmente teve uma experiência real de Deus no deserto. Quando se voltou da experiência para o credo cristão, acho que realmente passou de algo real para algo menos real. Da mesma maneira, um homem que já viu o Atlântico da praia e depois olha um mapa do Atlântico também está trocando a coisa real pela menos real: troca as ondas de verdade por um pedaço de papel colorido. Mas é exatamente essa a questão. Admito que o mapa não passa de uma folha de papel colorido, mas há duas coisas que devemos lembrar a seu respeito. Em primeiro lugar, ele se baseia nas experiências de centenas ou milhares de pessoas que navegaram pelas águas do verdadeiro oceano Atlântico. Dessa forma, tem por trás de si uma massa de informações tão reais quanto a que se pode ter da beira da praia; com a diferença que, enquanto a sua é um único relance, o mapa abarca e colige todas as experiências de diversas pessoas. Em segundo lugar, se você quer ir para algum lugar, o mapa é absolutamente necessário. Enquanto você se contentar com caminhadas à beira da praia, seus vislumbres serão mais divertidos que o exame do mapa; mas o mapa será de mais valia que uma caminhada pela praia se você quiser ir para os Estados Unidos.
A Teologia é como o mapa. O simples ato de aprender e pensar sobre as doutrinas cristãs, considerado em si mesmo, é sem dúvida menos real e menos instigante do que o tipo de experiência que meu amigo teve no deserto. As doutrinas não são Deus, são como um mapa. Esse mapa, porém, é baseado nas experiências de centenas de pessoas que realmente tiveram contato com Deus — experiências diante das quais os pequenos frêmitos e sentimentos piedosos que você e eu podemos ter não passam de coisas elementares e bastante confusas. Além disso, se você quiser progredir, precisará desse mapa. Note que o que aconteceu com aquele homem no deserto pode ter sido real e certamente foi emocionante, mas não deu em nada. Não levou a lugar nenhum. Não há nada que possamos fazer. Na verdade, é justamente por isso que uma religiosidade vaga — sentir Deus na natureza e assim por diante — é tão atraente. Ela é toda baseada em sensações e não dá trabalho algum: é como mirar as ondas da praia. Você jamais alcançará o Novo Mundo simplesmente estudando o Atlântico dessa maneira, e jamais alcançará a vida eterna sentindo a presença de Deus nas flores ou na música. Também não chegará a lugar algum se ficar examinando os mapas sem fazer-se ao mar. E, se fizer-se ao mar sem um mapa, não estará seguro.
Em outras palavras, a Teologia é uma questão prática, especialmente hoje em dia. No passado, quando havia menos instrução formal e menos discussões, talvez fosse possível passar com algumas poucas idéias simples sobre Deus. Hoje não é mais assim. Todo mundo lê, todo mundo presta atenção a discussões. Conseqüentemente, se você não der atenção à Teologia, isso não significa que não terá idéia alguma sobre Deus. Significa que terá, isto sim, uma porção de idéias erradas — idéias más, confusas, obsoletas. A imensa maioria das idéias que são disseminadas como novidades hoje em dia são as que os verdadeiros teólogos testaram vários séculos atrás e rejeitaram. Acreditar na religião popular moderna da Inglaterra é a mesma coisa que acreditar que a Terra é plana — um retrocesso.
Pois, na prática, a idéia popular de cristianismo é simplesmente esta: Jesus Cristo foi um grande mestre da moral e, se seguíssemos seus conselhos, conseguiríamos estabelecer uma ordem social melhor e evitar uma nova guerra. Saiba que isso tem seu fundo de verdade. Mas é muito menos que a verdade integral do cristianismo, e na realidade não tem importância prática alguma.
E verdade que, se seguíssemos os conselhos de Cristo, viveríamos em breve num mundo mais feliz. Nem precisaríamos ir tão longe: se déssemos ouvidos ao que disseram Platão, Aristóteles ou Confúcio, estaríamos muito melhor do que estamos. E daí? Nunca seguimos os conselhos dos grandes mestres. Por que começaríamos a segui-los agora? E por que estaríamos mais dispostos a ouvir a Cristo que aos outros? Porque ele é o melhor mestre da moral? Com isso, é ainda menos provável que o sigamos. Se não conseguimos aprender nem as lições elementares, como passaremos às mais adiantadas? Se o cristianismo não passa de mais um bocado de conselhos, ele não tem importância nenhuma. Não nos faltaram bons conselhos nos últimos quatro mil anos. Um pouquinho mais não faz diferença.
No entanto, logo que nos debruçamos sobre os verdadeiros escritos cristãos, vemos que eles falam de algo inteiramente diferente dessa religião popular. Dizem que Cristo é o Filho de Deus (o que quer que isso signifique). Dizem que os que nele depositam sua confiança podem também tornar-se filhos de Deus (o que quer que isso signifique). E dizem ainda que sua morte nos salvou de nossos pecados (o que quer que isso signifique).
Não adianta reclamar que essas afirmações são difíceis. O cristianismo pretende falar-nos de um outro mundo, de algo que está por trás do mundo que podemos ver, ouvir e tocar. Você pode até pensar que essa pretensão é falsa, mas, se for verdadeira, o que o cristianismo nos diz será necessariamente difícil — pelo menos tão difícil quanto a Física moderna, e pela mesma razão.
O ponto mais chocante do cristianismo é a afirmação de que, quando nos ligamos a Cristo, podemos nos tornar “filhos de Deus”. Alguém pergunta: “Mas já não somos filhos de Deus? A paternidade de Deus não é uma das idéias principais do cristianismo?” Bem, em certo sentido não há dúvida de que já somos filhos de Deus. Ou seja, Deus nos trouxe à existência, nos ama e cuida de nós, como um pai. Mas, quando a Bíblia fala que podemos “nos tornar” filhos de Deus, obviamente quer dar a entender algo diferente. E isso nos leva para o próprio coração da Teologia.
Um dos credos diz que Cristo é o Filho de Deus “gerado, não criado”; e acrescenta: “Gerado pelo Pai antes de todos os mundos.” Por favor, ponha na sua cabeça que isto não tem nada que ver com o fato de que, quando Cristo nasceu na terra como homem, foi filho de uma virgem. Não estamos falando aqui do nascimento virginal, mas de algo que aconteceu antes que a natureza fosse criada, antes que o próprio tempo existisse. “Antes de todos os mundos” Cristo é gerado, não criado. O que isso significa?
Não usamos mais as palavras begetting e begotten[1] no inglês moderno, mas todo o mundo ainda sabe o que elas significam. Gerar (to beget) é ser pai de alguém; criar (to create) é fazer, construir algo. A diferença é a seguinte: na geração, o que foi gerado é da mesma espécie que o gerador. Um homem gera bebês humanos, um castor gera castorzinhos e um pássaro gera ovos de onde sairão outros passarinhos. Mas, quando fazemos algo, esse algo é de uma espécie diferente. Um pássaro faz um ninho, um castor constrói uma represa, um homem faz um aparelho de rádio – ou talvez algo um pouco mais parecido consigo mesmo que um rádio: uma estátua, por exemplo. Se for um escultor habilidoso, sua estátua se parecerá muito com um homem. Mas é claro que não será um homem de verdade; terá somente a aparência. Não poderá pensar nem respirar. Não tem vida.
Esse é o primeiro ponto que devemos deixar claro. O que Deus gera é Deus, assim como o que o homem gera é homem. O que Deus cria não é Deus, assim como o que o homem faz não é homem. É por isso que os homens não são filhos de Deus no mesmo sentido em que Cristo o é. Podem se parecer com Deus em certos aspectos, mas não são coisas da mesma espécie. Os homens são mais semelhantes a estátuas ou quadros de Deus.
A estátua tem a forma de um homem, mas não tem vida. Da mesma maneira, o homem tem (num sentido que ainda vou explicar) a “forma” ou semelhança de Deus, mas não o tipo de vida que Deus possui. Vamos examinar o primeiro ponto (a semelhança com Deus) em primeiro lugar. Tudo o que Deus criou tem alguma semelhança com ele mesmo. O espaço se parece com ele em sua vastidão; não que a grandeza do espaço seja do mesmo tipo que a grandeza de Deus, mas é uma espécie de símbolo dela, ou uma tradução dela em termos não-espirituais. A matéria é semelhante a Deus por ter energia: embora a energia física seja diferente do poder de Deus. O mundo vegetal é semelhante a Deus por ter vida, pois ele é o “Deus vivo”. A vida em seu sentido biológico, porém, não é a mesma coisa que a vida em Deus: é como um símbolo ou uma sombra. Já nos animais encontramos outras formas de semelhança com Deus além da vida vegetativa. A intensa atividade e a fertilidade dos insetos, por exemplo, é uma primeira e vaga imagem da atividade incessante e da criatividade de Deus. Nos mamíferos superiores, temos um princípio de instinto afetivo. Não é a mesma coisa que o amor que existe em Deus; mas é semelhante a este – da mesma maneira que uma figura desenhada numa folha plana de papel pode ser “semelhante” a uma paisagem. Quando chegamos ao homem, o mais elevado dos animais, vemos, entre as coisas que nos são conhecidas, a semelhança mais perfeita com Deus. (Pode haver criaturas em outros mundos que se pareçam ainda mais com Deus, mas não as conhecemos.) O homem não apenas vive como também ama e raciocina: nele, a vida biológica atinge o nível mais elevado de que temos notícia. Mas o que o homem, em sua condição natural, não possui, é a vida espiritual — um tipo diferente e superior de vida que existe em Deus. Usamos a mesma palavra — vida – para designar a ambas; mas se você pensa que por isso as duas são a mesma coisa, é como se pensasse que a “grandeza” do espaço e a “grandeza” de Deus são o mesmo tipo de grandeza. Na realidade, a diferença entre a vida biológica e a vida espiritual é tão importante que vou tratá-las por nomes diferentes. A vida biológica, que vem da natureza e que (como tudo o mais no mundo natural) tende a se corromper e a decair -de modo que só pode se conservar através de contínuos subsídios dados pela natureza na forma de ar, água, alimentos etc. – é bíos. A vida espiritual, que é em Deus desde toda a eternidade e que criou o universo natural inteiro, é zoé. É certo que bíos tem uma certa semelhança parcial ou simbólica com zoé: mas é apenas a semelhança que existe entre uma fotografia e um lugar, ou entre uma estátua e um homem. O homem que tinha bíos e passa a ter zoé sofre uma mudança tão grande quanto a de uma estátua que deixasse de ser pedra entalhada e se transformasse num homem real. E é exatamente disso que trata o cristianismo. Este mundo é como o ateliê de um grande escultor. Nós somos as estátuas, e corre por aí o boato de que alguns de nós, um dia, ganharão a vida.
2. UM DEUS EM TRÊS PESSOAS
O capítulo anterior tratou da diferença entre gerar e criar. Um homem gera uma criança, mas cria uma estátua. Deus gerou o Cristo, mas fez o homem. Contudo, quando digo isso, estou apenas ilustrando um aspecto de Deus, a saber, que o que Deus Pai gera é Deus, alguém da mesma espécie que ele. Nesse sentido, esse ato é semelhante ao de um pai humano que gera um filho humano. Mas não é exatamente igual. Por isso, tenho de tentar dar mais algumas explicações.
Hoje em dia, um bom número de pessoas diz: “Acredito em Deus, mas não num Deus pessoal.” Elas pressentem que o mistério por trás de todas as coisas deve ser maior que uma pessoa. Os cristãos concordam com isso. Porém, os cristãos são os únicos que oferecem uma idéia de como seria esse ser que está além da personalidade. Todas as outras pessoas, apesar de dizerem que Deus está além da personalidade, na verdade concebem-no como um ser impessoal: melhor dizendo, como algo aquém do pessoal. Se você está em busca de algo suprapessoal, algo que seja mais que uma pessoa, não se verá obrigado a escolher entre a idéia cristã e as outras idéias, pois a idéia cristã é a única existente no mercado.
Além disso, alguns crêem que depois desta vida, ou talvez de várias, as almas humanas serão “absorvidas” em Deus. No entanto, quando tentam explicar o que isso significa, parecem ter a noção de que a absorção do nosso ser em Deus é como a absorção de um material por outro. Dizem que seria como uma gota d’água que caísse no oceano. E claro, porém, que esse seria o fim da gota. Se é isso que acontece conosco, ser absorvido é o mesmo que deixar de existir. Só os cristãos fazem idéia de como as almas humanas podem ser assumidas pela vida divina e continuar sendo elas mesmas — aliás, ser muito mais “elas mesmas” do que antes.
Avisei que a Teologia é um assunto prático. O objetivo único da nossa existência é ser assumidos pela vida divina. Quando temos idéias erradas sobre o que é essa vida, a realização do objetivo torna-se mais difícil. E agora peço que vocês sigam meu raciocínio com a máxima atenção por alguns minutos.
Todos sabem que, no espaço, podemos nos mover de três maneiras: para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, para cima e para baixo. Toda direção espacial é uma dessas três ou uma combinação delas. São o que chamamos de três dimensões. Agora note o seguinte. Se você usar apenas uma dimensão, poderá desenhar somente uma linha reta. Se usar duas, poderá desenhar uma figura: um quadrado, digamos, que é feito de quatro linhas retas. Vamos dar mais um passo. Se usar três dimensões, você poderá construir o que chamamos de um corpo sólido, como um cubo — um dado, por exemplo, ou um torrão de açúcar. O cubo é composto de seis quadrados.
Compreendeu? Um mundo unidimensional seria uma linha reta. Num mundo bidimensional, ainda haveria linhas retas, mas as linhas poderiam compor figuras. Num mundo tridimensional, ainda existem figuras, mas, combinadas, elas compõem corpos sólidos. Em outras palavras, à medida que avançamos para níveis mais complexos e mais reais, não deixamos para trás as coisas encontradas nos níveis mais simples: elas ainda existem, mas se combinam de maneiras novas — maneiras que nem sequer poderiam ser imaginadas por alguém que só conhecesse os níveis mais simples.
Ora, a noção cristã de Deus envolve o mesmíssimo princípio. O nível humano é um nível simples e mais ou menos vazio. Nele, uma pessoa é um ser e duas pessoas são dois seres separados – da mesma forma que, num plano bidimensional como o de uma folha de papel, um quadrado é uma figura e dois quadrados são duas figuras separadas. No nível divino, ainda existem personalidades; nele, porém, as encontramos combinadas de maneiras novas, maneiras que nós, que não vivemos nesse nível, não podemos imaginar. Na dimensão de Deus, por assim dizer, encontramos um Ser que são três pessoas sem deixar de ser um único Ser, da mesma forma que um cubo são seis quadrados sem deixar de ser um único cubo. E claro que não conseguimos conceber plenamente um Ser como esse. Do mesmo modo, se percebêssemos apenas duas dimensões do espaço, não poderíamos jamais imaginar um cubo. Mesmo assim podemos ter dele uma noção vaga. Quando isso acontece, nós conseguimos ter, pela primeira vez na vida, uma idéia positiva, mesmo que tênue, de algo suprapessoal — algo maior que uma pessoa. É algo que nos surpreende completamente e que, no entanto, quando ouvimos falar dele, quase nos faz sentir que poderíamos tê-lo adivinhado, uma vez que se harmoniza tão bem com as coisas que já conhecemos.
Você pode perguntar: “Se não conseguimos imaginar esse Ser tripessoal, de que adianta falar sobre ele?” Bem, de nada adianta falar sobre ele. O que interessa é sermos atraídos e conduzidos de fato para dentro dessa vida tripessoal. Esse processo pode começar, aliás, a qualquer momento — hoje à noite, se você quiser.
O que quero dizer é o seguinte: o simples cristão ajoelha-se e faz suas orações, tentando entrar em contato com Deus. Porém, se ele é cristão, sabe que o que o induz a orar é também Deus: Deus, por assim dizer, dentro dele. E sabe também que todo o conhecimento real que possui de Deus veio por meio de Cristo, o Homem que foi Deus. Sabe que Cristo está de pé a seu lado, ajudando-o a orar, orando por ele. Você vê o que está acontecendo? Deus é aquilo para o qual ele ora — o objetivo que tenta alcançar. Deus é também aquilo, dentro dele, que o impele — a força motriz. Deus, por fim, é a estrada ou a ponte que ele percorre para chegar a seu objetivo. Assim, toda a vida tríplice do Ser tripessoal entra em ação nesse quarto humilde onde um homem comum faz suas orações. O homem está sendo capturado por um tipo superior de vida — o que chamei de zoé ou vida espiritual: está sendo atraído para dentro de Deus pelo próprio Deus, sem deixar de ser ele mesmo.
E foi assim que começou a Teologia. As pessoas já conheciam Deus de forma mais ou menos vaga. Então veio um homem que dizia ser Deus; um homem que, no entanto, ninguém conseguia rejeitar como um lunático. Esse homem fez com que as pessoas acreditassem nele. Essas pessoas voltaram a encontrar-se com ele depois de tê-lo visto ser assassinado. Por fim, tendo-se constituído numa pequena sociedade ou comunidade, essas pessoas de alguma forma descobriram a Deus dentro de si próprias, dizendo-lhes o que fazer e tornando-as capazes de atos que até então eram impossíveis. Quando entenderam tudo isto, elas chegaram à definição crista do Deus tripessoal.
Essa definição não é algo que inventamos. A Teologia, em certo sentido, é uma ciência experimental. São as religiões simplistas que foram inventadas. Quando digo que ela é uma ciência experimental “em certo sentido”, quero dizer que é igual às outras ciências experimentais sob alguns aspectos, mas não todos. Se você é um geólogo que estuda minerais, você tem de ir a campo para encontrá-los. Eles não irão até você e, quando você os encontra, eles não podem escapulir. Toda a iniciativa cabe a você. Os minerais não podem nem ajudá-lo, nem prejudicá-lo. Agora suponha que você seja um zoólogo que se propôs a tirar fotos de animais em seu hábitat natural. A situação fica um pouco diferente. Os animais selvagens não irão ao seu encontro, mas podem fugir de você, e, se você não ficar bem quieto, certamente o farão. Começa a haver aqui um pouquinho de iniciativa por parte deles.
Passemos a um estágio superior. Suponha que você queira estudar um ser humano. Se ele estiver determinado a não se deixar estudar, você não conseguirá conhecê-lo. Vai ser preciso ganhar-lhe a confiança. Nesse caso, a iniciativa se divide igualmente pelos dois lados – para uma amizade, são necessárias duas pessoas.
Quando se trata do conhecimento de Deus, a iniciativa cabe inteiramente a ele. Se ele não se revelar, nada que você fizer o capacitará a encontrá-lo. E, na verdade, ele se dá a conhecer muito mais a certas pessoas que a outras — não porque tenha predileções, mas porque é impossível que ele se revele ao homem cuja mente e cujo caráter estejam em más condições. Da mesma forma, os raios do sol, apesar de também não terem predileções, não se refletem tão bem num espelho empoeirado quanto num espelho polido.
Podemos dizê-lo de outra forma: enquanto nas outras ciências os instrumentos são externos a nós (como o microscópio e o telescópio), o instrumento pelo qual vemos a Deus é nosso próprio ser, nosso ser inteiro. Se o ser do homem não estiver limpo e brilhante, sua visão de Deus será turva — como a lua vista por um telescópio sujo. E por isso que os povos abomináveis têm religiões abomináveis: eles vêem a Deus através de uma lente suja.
Deus só pode se revelar verdadeiramente para homens de verdade. Isso não significa apenas homens individualmente bons, mas homens unidos entre si num único corpo, amando-se e auxiliando-se mutuamente, revelando Deus uns aos outros. Pois é assim que Deus quer que a humanidade seja: como os músicos de uma orquestra, como os órgãos de um corpo.
Em conseqüência, o único instrumento verdadeiramente adequado para conhecer Deus é a comunidade cristã como um todo, a comunidade dos que juntos o aguardam. Numa analogia, a fraternidade cristã é o equipamento técnico dessa ciência — os apetrechos do laboratório. Por isso, as pessoas que, ano sim, ano não, lançam uma versão flagrantemente simplificada da religião na tentativa de substituir a tradição cristã estão perdendo completamente o seu tempo. São como o sujeito que, contando apenas com um velho binóculo, resolve corrigir toda a comunidade dos astrônomos. Pode ser que esse sujeito seja bastante inteligente, talvez até mais inteligente do que alguns astrônomos de verdade, mas ele próprio se sabota. Em dois anos estará esquecido, enquanto a verdadeira ciência continuará de pé.
Se o cristianismo fosse algo que inventamos, é claro que seria mais fácil. Mas não é. Não podemos competir, em matéria de simplicidade, com as pessoas que inventam religiões. Como poderíamos? Trabalhamos com a realidade como ela é. Só quem não se importa com a realidade pode se dar ao luxo de ser simplista.
3. O TEMPO E ALÉM DO TEMPO
É uma idéia pueril a de que não podemos, na leitura de um livro, “pular” algumas de suas partes. Todas as pessoas sensatas o fazem quando chegam a um capítulo que julgam que não vai ser útil. Neste capítulo, vou falar de algo que talvez ajude alguns leitores, mas que pode ser visto por outros somente como uma complicação desnecessária. Se você pertence ao segundo grupo, aconselho-o a não se preocupar com este capítulo, mas a passar direto para o próximo.
No capítulo anterior, toquei de leve na questão da oração. Enquanto ela está fresquinha tanto na sua mente quanto na minha, vamos tratar de uma dificuldade geral que certas pessoas encontram para orar. Um homem resumiu para mim a situação: “Acredito em Deus, mas não consigo engolir a idéia de que atenda a centenas de milhões de pessoas que se dirigem a ele num mesmo momento.” E constatei que muita gente pensa do mesmo modo.
A primeira coisa a notar é que o problema surge com as palavras num mesmo momento. A maioria das pessoas é capaz de imaginar Deus atendendo a um número infinito de peticionários, desde que cheguem um por vez e ele tenha um tempo infinito para atendê-los. Assim, o que está na raiz desta dificuldade é a idéia de que Deus tenha de fazer muitas coisas numa única fração de tempo.
É isso, evidentemente, que acontece conosco. Nossa vida nos vem momento a momento. Um momento desaparece antes que o outro chegue, e em cada um deles cabe pouquíssima coisa. Essa é a natureza do tempo. E é claro que você e eu temos como certo que essa série temporal – esse arranjo de passado, presente e futuro — não é apenas o modo como a vida se apresenta para nós, mas o modo como funcionam todas as coisas que existem. Costumamos pensar que todo o universo e até o próprio Deus passam do passado para o futuro, como nós fazemos. Muitos homens cultos, no entanto, não concordam com isso. Foram os teólogos que primeiro levantaram a idéia de que muitas coisas não estão submetidas ao tempo. Mais tarde, os filósofos assumiram essa idéia, e agora os cientistas fazem a mesma coisa.
Com quase toda a certeza, Deus não está no tempo. A vida dele não consiste em momentos que são seguidos por outros momentos. Se um milhão de pessoas oram para ele às dez e meia da noite, ele não precisa ouvi-las todas no instantezinho que chamamos de dez e meia. Dez e meia, ou qualquer outro momento ocorrido desde a criação do mundo, é sempre o presente para Deus. Para dizê-lo de outra maneira, Deus tem toda a eternidade para ouvir a brevíssima oração de um piloto cujo avião está prestes a cair em chamas.
Sei que isso é difícil. Vou tentar dar outro exemplo, não exatamente sobre a mesma coisa, mas de algo um pouco parecido. Suponha que eu esteja escrevendo um romance. Escrevo: “Mary largou o trabalho e logo em seguida ouviu baterem à porta.” Para Mary, que vive no tempo imaginário da minha história, não há intervalo entre largar o trabalho e ouvir a batida na porta. Eu, porém, que sou o criador de Mary, não vivo nesse tempo imaginário. Entre o tempo de escrever a primeira metade da frase e a segunda, posso parar o trabalho por umas três horas e ficar imerso em pensamentos sobre Mary. Posso pensar sobre minha personagem como se ela fosse a única personagem do livro e por quanto tempo eu desejar, e no entanto as horas passadas nessa atividade não aparecerão no tempo dela (dentro da história).
Sei muito bem que esse exemplo não é perfeito. Mas ele talvez dê uma pálida noção do que eu acredito seja verdade. Deus não precisa se afobar no fluxo de tempo deste universo, assim como um escritor não precisa viver o tempo imaginário de seu romance. Ele pode dar atenção infinita a cada um de nós. Nunca teve de nos tratar como a uma massa. Você está sozinho na companhia dele como se fosse o único ser que ele tivesse criado. Quando Cristo foi crucificado, ele morreu por você, individualmente, como se você fosse o único homem da Terra.
O meu exemplo falha porque o escritor abandona uma seqüência temporal (a do romance) mas entra em outra (a verdadeira). Creio, porém, que Deus não vive preso a nenhuma seqüência temporal. Sua vida não se escoa momento a momento como a nossa: ele, por assim dizer, ainda está em 1920 mas também já está em 2060[2]. Pois sua vida é ele mesmo.
Se você visualizar o tempo como uma linha reta pela qual viajamos, tem de imaginar a Deus como a página na qual a linha é desenhada. Percorremos uma a uma as partes da linha: temos de deixar o ponto A para alcançar o ponto B, e só alcançamos C depois de deixar B. Deus, por sua vez, está fora e acima disso, contém a linha inteira e vê tudo.
Vale a pena tentar compreender essa idéia porque ela desfaz algumas contradições aparentes do cristianismo. Antes de me tornar cristão, eu propunha a seguinte objeção: os cristãos dizem que o Deus eterno que está em toda parte e governa o universo inteiro se tornou ser humano. Ora pois, eu perguntava, como ele conseguia governar o universo enquanto era bebê ou enquanto dormia? Como podia ele ser ao mesmo tempo o Deus que tudo sabe e o homem que perguntou aos discípulos: “Quem me tocou?” Você há de notar que o problema nasce dos termos relacionados a tempo: “Enquanto era bebê” – “Como podia ser ao mesmo tempo…” Em outras palavras, eu pressupunha que a vida de Cristo enquanto Deus se desenrolava no tempo e que sua vida enquanto Jesus, o homem da Palestina, era um pequeno lapso destacado desse fluxo de tempo – da mesma forma que o período em que servi no exército é um período destacado do total da minha vida. E é assim que a maioria das pessoas, talvez, compreende o assunto. Imaginam que houve um período na existência de Deus em que sua vida na Terra ainda estava no futuro, seguido de um momento em que ela era o presente e passando para um momento em que esse tempo ficou no passado. Provavelmente, essas idéias não correspondem à realidade. Não dá para encaixar a vida terrena de Cristo na Palestina numa relação temporal com sua vida enquanto Deus, pois esta se encontra além do tempo e do espaço. Ouso afirmar que a natureza humana, e a experiência humana da fraqueza, do sono e da ignorância, de algum modo se incluem no todo da vida divina de Deus, e afirmo que essa é uma verdade eterna sobre a sua natureza. Essa vida humana em Deus, vista da nossa perspectiva, corresponde a um período particular da história do nosso mundo (do ano 1 à crucificação). Imaginamos assim que também corresponda a um período da história da própria existência de Deus. Deus, porém, não tem história. Ele é tão absolutamente real que não pode ter. Isso porque ter uma história significa perder uma parte da realidade (que se desvanece no passado) e ainda não gozar de outra parte (que se encontra no futuro): na verdade, ter uma história é não possuir nada a não ser o minúsculo tempo presente, que acaba antes que possamos abrir a boca para falar dele. Deus nos livre de pensar que ele seja assim. Mesmo nós temos a esperança de não ficar limitados dessa forma para sempre.
Outra dificuldade que surge se acreditamos que Deus vive no tempo: todos que crêem em Deus acreditam que ele sabe o que eu e você faremos amanhã. Mas, se ele sabe que farei isto ou aquilo, onde está a minha liberdade de fazer o contrário? Bem, mais uma vez a dificuldade está em pensar que Deus progride como nós numa seqüência temporal, com a única diferença de que ele consegue enxergar o futuro e nós, não. Bem, se isso é verdade, se Deus prevê os nossos atos, fica difícil entender nossa liberdade de não fazer algo. Suponha, no entanto, que Deus esteja fora e acima da linha de tempo. Nesse caso, isso que chamamos “amanhã” é visível para ele da mesma forma que o que chamamos “hoje”. Todos os dias são “agora” aos olhos de Deus. Ele não se lembra de que ontem você fez isto e aquilo; simplesmente vê você fazer essas coisas, porque, embora você tenha perdido para sempre o dia de ontem, ele não perdeu. Ele não “antevê” você fazendo isto e aquilo amanhã; simplesmente vê você fazendo essas coisas, pois, embora o amanhã ainda não exista para você, já existe para ele. Você nunca pensou que os atos que faz agora são menos livres só porque Deus sabe o que você está fazendo. Bem, ele conhece suas ações de amanhã exatamente da mesma maneira — pois já está no amanhã e pode simplesmente observá-lo. Num certo sentido, ele não conhece nossas ações até que elas tenham acontecido; no entanto, o momento em que elas acontecem já é “agora” para ele.
Essa idéia me ajudou muito. Se ela não ajudar você, deixe-a de lado. Ela é uma “idéia cristã” na medida em que grandes sábios cristãos a sustentaram e que nela não há nada de contrário ao cristianismo. Porém, não se encontra nem na Bíblia nem em nenhum dos credos. Você pode ser perfeitamente cristão sem aceitá-la, ou mesmo sem pensar em absoluto neste assunto.
4. A BOA INFECÇÃO
Começo este capítulo pedindo que vocês visualizem uma imagem: a de dois livros sobre uma mesa, um em cima do outro. E óbvio que o livro que está em baixo eleva e sustenta o que está em cima. E por causa do livro de baixo que o de cima fica, digamos, uns cinco centímetros acima da superfície da mesa, e não encostado nela. Vamos chamar o livro de baixo de A, e o de cima, de B. A posição de A é a causa da posição de B, certo? Agora vamos imaginar — isto não poderia acontecer, é claro, mas servirá para nós como ilustração —, vamos imaginar que os dois livros estejam em suas respectivas posições desde toda a eternidade. Nesse caso, a posição de B seria causada desde sempre pela de A. Mas, por outro lado, a posição de A não teria existido antes da posição de B.
Em outras palavras, o efeito não teria ocorrido depois da causa. E claro que, em geral, os efeitos sucedem-se às causas: primeiro você come a salada de pepinos e só depois tem a indigestão. No entanto, isso não ocorre com todas as causas e efeitos. Você verá num instante por que penso que isto é tão importante.
Algumas páginas atrás, eu disse que Deus é um Ser que contém três pessoas sem deixar de ser um único Ser, da mesma forma que o cubo contém seis quadrados e não deixa de ser um único corpo. Contudo, quando eu começar a explicar como essas pessoas estão relacionadas entre si, terei de usar palavras que dão a impressão de que uma delas existe antes das outras. A primeira pessoa é chamada de Pai, e a segunda, de Filho. Dizemos que o primeiro gera, ou produz, o segundo; usamos a palavra gera, e não faz, porque o que foi gerado é da mesma espécie do que o gerou. Assim, a palavra “Pai” é a única apropriada. Infelizmente, porém, ela dá a entender que o Pai é anterior ao Fílho — como um pai humano existe antes de seu filho. Mas isso não é verdade. Nesse caso, não existe antes e depois. E por isso que considero importante deixar o mais claro possível que uma coisa pode ser a fonte, a causa ou a origem de outra sem necessariamente existir antes dela. O Filho existe porque o Pai existe, mas nunca houve um tempo em que o Pai não houvesse ainda gerado o Filho.
Talvez a melhor maneira de entender o assunto seja a seguinte: pedi agora há pouco que vocês imaginassem dois livros, e provavelmente a maioria de vocês imaginou. Ou seja, vocês produziram um ato de imaginação que resultou numa imagem mental. Salta à vista que o ato de imaginação foi a causa, e a imagem mental, o efeito. Isso, porém, não significa que você primeiro fez o esforço imaginativo e depois chegou à imagem. As duas coisas aconteceram simultaneamente. Sua vontade retinha a imagem diante dos olhos de sua mente. Não obstante, o ato de vontade e a imagem se manifestaram no mesmíssimo momento e terminaram igualmente num mesmo momento. Se houvesse um Ser que sempre tivesse existido e tivesse imaginado algo desde a eternidade, seu ato teria produzido desde sempre uma imagem mental; mas a imagem seria tão eterna quanto o ato.
Da mesma maneira, temos de conceber que o Filho, por assim dizer, desde sempre fluí do Pai, como a luz flui da lâmpada, ou o calor do fogo, ou os pensamentos da mente. Ele é a auto-expressão do Pai — o que o Pai tem a dizer. E nunca houve um tempo em que o Pai ficou calado. Mas veja só o que aconteceu: todas essas imagens de luz e de calor fazem com que o Pai e o Filho acabem se parecendo com duas coisas, e não com duas pessoas. Assim, no fim das contas, a imagem de um Pai e de um Filho, que o Novo Testamento nos dá, revela-se muito mais exata que qualquer outra pela qual tentarmos substituí-la. E isso que sempre acontece quando nos afastamos das palavras da Bíblia. Não há nada de errado em nos afastarmos delas por certo tempo para esclarecermos uma questão específica. No entanto, sempre devemos voltar. Naturalmente, Deus sabe descrever-se a si mesmo muito melhor do que nós poderíamos descrevê-lo. Sabe que a relação entre Pai e Filho, aqui descrita, se parece muito mais com a da Primeira e da Segunda Pessoa que qualquer outra que pudéssemos conceber. A coisa mais importante a saber é que ela é uma relação de amor. O Pai se compraz no Filho; o Filho, cheio de admiração, modela-se no Pai.
Antes de seguirmos adiante, perceba o quanto isso é importante do ponto de vista prático. Pessoas de todos os tipos gostam de repetir a afirmação cristã de que “Deus é amor”. Elas não se dão conta de que essas palavras só podem significar alguma coisa se Deus contiver pelo menos duas pessoas. O amor é algo que uma pessoa sente por outra. Se Deus fosse uma única pessoa, não poderia ter sido amor antes da criação do mundo. E claro que, em geral, o que essas pessoas querem dizer é algo bastante diferente: “O amor é Deus.” Querem dizer, na realidade, que nossos sentimentos amorosos, como quer e onde quer que surjam, e quaisquer que sejam seus efeitos, devem ser tratados com todo o respeito. Pode até ser, mas trata-se de algo bem diferente do que os cristãos entendem pela afirmação “Deus é amor”. Eles acreditam que a atividade vivida e dinâmica do amor sempre esteve presente em Deus, desde toda a eternidade, e criou todas as outras coisas.
Aliás, talvez seja essa a diferença fundamental entre o cristianismo e todas as outras religiões: no cristianismo, Deus não é um ente estático – nem mesmo uma pessoa estática -, mas uma atividade pulsante e dinâmica; é uma vida dotada de grande complexidade interna. E quase — por favor, não me julguem irreverente – como uma dança. A união entre o Pai e o Filho é algo tão vivo e concreto que ela mesma é também uma pessoa. Sei que isso é quase inconcebível, mas tente compreender a questão sob este ponto de vista: você sabe que, entre os seres humanos que se unem numa família, num clube ou num sindicato, as pessoas falam do “espírito” dessas agremiações. Falam desse “espírito” porque os membros individuais, quando estão juntos, desenvolvem maneiras particulares de conversar e de se comportar que não desenvolveriam se não estivessem juntos[3]. E como se uma personalidade comunal ganhasse existência. E claro que, nesse exemplo, não se trata de uma pessoa real: é apenas algo que se parece com uma pessoa. Mas essa é somente uma das diferenças entre Deus e nós. Aquilo que nasce da vida conjunta do Pai e do Filho é uma pessoa real; é, com efeito, a terceira das três pessoas de Deus.
Essa Terceira Pessoa é chamada, em linguagem técnica, de Espírito Santo ou “Espírito de Deus”. Não se preocupe nem se surpreenda se acontecer de você achar essa pessoa mais vaga e misteriosa que as outras duas. Penso que existe uma razão para que isso aconteça. Na vida cristã, nós não costumamos olhar para ele. Ele está sempre agindo através de nós, Se você imagina o Pai como algo que está “fora”, à sua frente, e imagina o Filho como alguém que está ao seu lado, ajudando-o a orar, tentando fazer de você também um filho de Deus, então tem de conceber a terceira pessoa como algo dentro de você, ou atrás de você. Talvez algumas pessoas achem mais fácil começar pela terceira pessoa e fazer o caminho inverso. Deus é amor, e esse amor opera através dos homens — especialmente através de toda a comunidade cristã. Mas esse espírito de amor é, desde toda a eternidade, um amor que se dá entre o Pai e o Filho.
Bem, e qual a importância disso? É a coisa mais importante do mundo. A dança, o enredo dramático ou a complexidade interna dessa vida tripessoal deve se desenrolar dentro de cada um de nós. Vendo a questão do outro lado, cada um de nós tem de penetrar nessa complexidade interna, assumir seu lugar nessa dança. Não existe outra maneira de se alcançar e usufruir a felicidade para a qual fomos criados. Saiba você que não só as coisas más, mas também as boas, são contraídas como uma espécie de infecção. Se você quer se aquecer, tem de se aproximar do fogo; se quer se molhar, tem de entrar debaixo d’água. Se quer a alegria, o poder, a paz e a vida eterna, tem de se aproximar ou mesmo penetrar naquilo que as contém. Essas coisas não são prêmios que Deus poderia, se quisesse, simplesmente conceder a qualquer pessoa. São uma grande fonte de energia e de beleza que jorra a partir do próprio centro da realidade. Se você estiver próximo da fonte, as rajadas de água o molharão; se se mantiver afastado, continuará seco. Quando o homem está unido a Deus, como poderia não viver para sempre? Quando está separado de Deus, o que pode fazer senão definhar e morrer?
Mas como pode ele se unir a Deus? Como podemos ser atraídos para dentro da vida trinitária?
Lembre-se do que eu disse no Capítulo 2 sobre a geração e a criação. Nós não fomos gerados por Deus, mas apenas criados: em nosso estado natural, não somos filhos de Deus, mas apenas (por assim dizer) estátuas. Não possuímos zoé, a vida espiritual, mas apenas bíos, a vida biológica, que em breve definhará e morrerá. A oferta que o cristianismo faz se resume no seguinte: se deixarmos Deus agir, poderemos vir a compartilhar da vida de Cristo. Então, partilharemos de uma vida que foi gerada, não criada; uma vida que sempre existiu e sempre existirá. Cristo é o Filho de Deus. Se participarmos desse tipo de vida, também seremos filhos de Deus. Amaremos o Pai como o Filho o ama, e o Espírito Santo despertará em nós. Cristo veio a este mundo e se fez homem a fim de disseminar nos outros homens o tipo de vida que ele possui – por meio daquilo que chamo de “boa infecção”. Todo cristão deve tornar-se um pequeno Cristo. O propósito de se tornar cristão não é outro senão esse.
5. OS TEIMOSOS SOLDADINHOS DE CHUMBO
O Filho de Deus se fez homem para que os homens pudessem tornar-se filhos de Deus. Não sabemos – eu, pelo menos, não sei — como as coisas seriam se a raça humana nunca tivesse se rebelado contra Deus e se aliado ao inimigo. Talvez todos os homens vivessem “em Cristo”, compartilhassem desde o nascimento a vida do Filho de Deus. Talvez a vida que chamamos de bíos, a vida natural, tivesse sido assumida e incorporada a zoé, a vida incriada, de imediato e de uma vez por todas. Mas isso não passa de um palpite. O que nos interessa é a situação tal como se apresenta para nós agora.
O atual estado de coisas é o seguinte: os dois tipos de vida são não apenas completamente diferentes entre si (o que sempre foram e sempre serão), mas também opostos. A vida natural de cada um de nós é uma coisa egocêntrica, que quer ser paparicada e admirada, quer tirar vantagem das outras vidas e usar para seu proveito o universo inteiro. Acima de tudo, ela quer ser deixada em paz: quer distância de tudo que possa ser melhor, mais forte ou mais elevado que ela, tudo que possa revelar a sua pequenez. Tem medo da luz e do ar fresco do mundo espiritual, da mesma forma que as pessoas que foram criadas sem higiene não gostam de tomar banho. Num sentido, ela tem toda a razão, pois sabe que, se cair nas garras da vida espiritual, seu egocentrismo e sua vontade própria serão exterminados. Assim, luta com unhas e dentes para que isso não aconteça.
Você nunca imaginou, quando era pequeno, como seria divertido se seus brinquedos ganhassem vida? Bem, imagine que você tivesse efetivamente o poder de dar-lhes vida. Imagine que pudesse transformar um soldadinho de chumbo num homenzinho de verdade. O chumbo teria de transformar-se em carne. Imagine que o soldadinho não gostasse da mudança. A carne não o interessa; tudo o que ele vê é o chumbo arruinado. Pensa que você quer matá-lo e fará tudo o que puder para impedi-lo. Se isso estiver ao seu alcance, não se deixará transformar em homem de jeito nenhum.
O que você faria com esse soldadinho eu não sei, mas o que Deus fez com o gênero humano foi o seguinte: a Segunda Pessoa de Deus, o Filho, tornou-se ele mesmo um homem: nasceu em nosso mundo como um homem — uma pessoa real, que falava determinada língua, tinha determinada altura, determinado peso e uma certa cor de cabelo. O Ser Eterno, que tudo sabe e criou todo o universo, tornou-se não apenas um homem, mas (antes disso) um bebê e, antes disso ainda, um feto dentro do corpo de uma mulher. Se quer saber como ele deve ter se sentido, imagine se você se transformasse numa lesma ou num caranguejo.
Como resultado, houve um homem que foi de fato como todos os seres humanos deveriam ser: um homem cuja vida criada, herdada de sua mãe, deixou-se assimilar completa e perfeitamente pela vida gerada. Nele, a criatura humana natural foi plenamente assumida pelo divino Filho. Assim, num caso particular, a humanidade chegou, por assim dizer, aonde tinha de chegar: passou à vida de Cristo. E, uma vez que toda a nossa dificuldade reside no fato de que, em certo sentido, a vida natural tem de ser “morta”, ele escolheu um caminho terreno marcado pela morte cotidiana de todos os seus desejos humanos — escolheu a pobreza, a incompreensão de sua própria família, a traição de um de seus amigos íntimos, a zombaria e o espancamento nas mãos da polícia e a execução mediante tortura. E então, depois de ser morta – morta, de certa maneira, a cada dia -, a criatura humana que nele havia, por ser unida ao divino Filho, voltou de novo à vida. O homem em Cristo ressuscitou: não apenas o Deus. Tudo se resume a isto. Pela primeira vez vimos um homem de verdade. Um soldadinho de brinquedo – feito de chumbo como todos os outros – se tornou esplêndida e totalmente vivo.
E aqui, como seria de esperar, chegamos ao ponto em que minha analogia fica imperfeita. Se um soldadinho ou uma estátua ganhasse vida, isso não faria grande diferença para o resto dos soldadinhos ou das estátuas, pois uns estão separados dos outros. Os seres humanos, no entanto, não são assim. Parecem separados porque andam todos por aí, cada um para seu lado. O problema é que somos constituídos de tal modo que só conseguimos ver o momento presente. Se pudéssemos enxergar o passado, tudo teria para nós uma aparência muito diferente, porque houve um tempo em que todo homem fazia parte da sua mãe e (num passado ainda mais distante) de seu pai; e um outro tempo em que estes faziam parte dos avós. Se pudéssemos enxergar a humanidade no decorrer do tempo, como Deus a vê, ela não nos pareceria um pontilhado de muitos entes distintos, mas sim uma única coisa viva, que não pára de crescer – como uma frondosa árvore. Cada indivíduo afigurar-se-ia ligado a todos os outros. E mais: assim como estão todos ligados uns aos outros, estão todos ligados a Deus. Agora mesmo, neste exato momento, todos os homens, mulheres e crianças do mundo inteiro só respiram e sentem porque Deus, por assim dizer, os “mantém funcionando”.
Logo, quando o Cristo se torna homem, não é o mesmo que se você se tornasse um determinado soldadinho de chumbo. E como se algo que sempre afetou toda a massa da humanidade passasse, num determinado ponto, a afetá-la de maneira nova. A partir desse ponto, o efeito se espalha por todo o gênero humano. Afeta não só as pessoas que viveram depois de Cristo, mas também as que viveram antes dele; afeta inclusive as que nunca ouviram falar dele. E como pingar num copo d’água uma gota de uma substância que desse novo sabor e nova cor a todo o líquido. Porém, é claro que nenhum desses exemplos ilustra a realidade de forma perfeita. No fim das contas, só Deus é igual a ele mesmo, e o que ele faz não se assemelha a nenhuma outra coisa. Nem seria de esperar que se assemelhasse.
De que modo, então, ele afetou toda a massa da humanidade? Da seguinte maneira: toda a tarefa de nos tornarmos filhos de Deus, de transformarmo-nos de seres criados em seres gerados, de passarmos de uma vida biológica provisória para uma vida “espiritual” eterna — toda essa tarefa já foi feita para nós. Deus se encarregou dela. A humanidade já foi “salva” em princípio. Nós, indivíduos, temos de nos apropriar dessa salvação. Mas o trabalho pesado – que nunca conseguiríamos levar a cabo sozinhos – já foi feito. Não precisamos tentar escalar a vida espiritual pela nossa própria força, pois ela já desceu sobre a raça humana. Se simplesmente nos abrirmos ao Homem que a possuiu em sua plenitude, Homem que, apesar de ser Deus, também é verdadeiramente humano, ele a fará funcionar em nós e por nós. Lembre-se do que eu disse sobre a “boa infecção”. Um Ser da nossa raça já foi infectado por essa nova vida; se nos aproximarmos dele, seremos infectados também.
Não há dúvida de que podemos expressar essa verdade de diversas maneiras. Podemos dizer que Cristo morreu por nossos pecados. Podemos dizer que o Pai nos perdoou porque Cristo fez por nós o que deveríamos ter feito por conta própria. Podemos dizer que fomos banhados no sangue do Cordeiro. Ou, ainda, que Cristo venceu a morte. Tudo isso é verdade. Se alguma dessas formulações não lhe agrada, deixe-a de lado e adote a que mais lhe agradar. E, qualquer que seja a escolhida, não comece a discutir com as pessoas pelo simples fato de usarem fórmulas diferentes da sua.
6. DUAS NOTAS
A fim de evitar mal-entendidos, resolvi acrescentar notas a duas questões suscitadas pelo capítulo anterior:
(1) Um crítico bastante sensato me perguntou por que, se Deus queria que fôssemos seus filhos e não “soldadinhos de brinquedo”, ele não gerou muitos filhos desde o começo em vez de criar bonequinhos e depois dar-lhes vida por meio de um processo tão difícil e doloroso. Uma parte da resposta é bastante fácil; a outra provavelmente está acima da compreensão humana. Vamos à parte fácil: o processo de transformação do homem de criatura em filho não seria difícil nem doloroso se a raça humana não tivesse se afastado de Deus séculos atrás. O homem pôde afastar-se porque Deus lhe deu o livre-arbítrio; e Deus deu-lhe o livre-arbítrio porque um mundo de meros autômatos não poderia conhecer o amor e, portanto, não poderia tampouco conhecer a felicidade infinita. Agora a parte difícil: todos os cristãos concordam em que, no sentido pleno e original da palavra, só existe um “Filho de Deus”. Se insistirmos em perguntar “Não poderia ter havido muitos?”, nos veremos entranhados num mistério profundo. Será que as palavras “poderia ter havido” têm algum sentido quando aplicadas a Deus? Podemos dizer que uma coisa finita “poderia ter sido” diferente do que é, e podemos dizê-lo porque ela efetivamente teria sido diferente se uma outra coisa também tivesse sido diferente; e esta outra coisa teria sido diferente se uma terceira coisa também o tivesse sido, e assim por diante. (As letras que compõem esta página teriam sido vermelhas se o tipógrafo tivesse usado tinta vermelha, e ele teria usado tinta vermelha se o chefe da gráfica o tivesse mandado fazê-lo, e por aí afora.) Mas, quando falamos a respeito de Deus — a respeito do Fato irredutível do qual todos os outros dependem e no qual se sedimentam -, é absurdo perguntar se as coisas poderiam ter se dado de outra maneira. Com Deus, as coisas são o que são, e fim da história. Mesmo sem levar isso em conta, encontro um problema na própria idéia de o Pai gerar muitos filhos desde toda a eternidade. Para que houvesse muitos filhos, eles teriam de ser diferentes uns dos outros. Duas moedas de um penny têm o mesmo formato. Como podem ser duas? Ora, ocupando posições diferentes no espaço e contendo átomos diferentes. Em outras palavras, para concebê-las como distintas entre si, tivemos de introduzir os conceitos de espaço e matéria; na verdade, tivemos de introduzir toda a “natureza”, o universo criado. Posso compreender a diferença entre Pai e Filho sem utilizar os conceitos de espaço e a matéria, porque um gera e o outro é gerado. A relação do Pai com o Filho não é idêntica à relação do Filho com o Pai. Porém, se houvesse muitos filhos, todos teriam a mesma relação entre si e a mesma relação com o Pai. Como difeririam entre si? Essa dificuldade não se evidencia de imediato. De início, imagino que sou capaz de conceber a idéia de diversos “filhos”. Mas, quando me ponho a pensar, constato que isso só é possível porque os imagino vagamente como figuras humanas reunidas numa espécie qualquer de espaço. Em outras palavras, embora quisesse pensar em algo que existia antes que o universo fosse criado, introduzi aí, inadvertidamente, a idéia do universo físico e coloquei dentro dela esse algo. Quando paro de fazer isso e ainda assim tento pensar no Pai gerando muitos filhos “antes de todos os mundos”, vejo que, na realidade, não estou pensando em nada. A idéia se desvanece em meras palavras. (Será que a natureza — o espaço, o tempo e a matéria — foi criada precisamente a fim de tornar possível a multiplicidade? Será que, para haver uma multidão de espíritos eternos, não é preciso antes fazer muitas criaturas naturais, num universo, para depois espiritualizá-las? E claro que tudo isso são especulações.)
(2) A idéia de que toda a raça humana é, em certo sentido, um único corpo – um imenso organismo, como uma árvore – não deve ser confundida com a noção de que as diferenças individuais não importam ou que as pessoas reais, como Tom, Nobby e Kate, são menos importantes que entes coletivos como classes, raças etc. Na verdade, as duas idéias são opostas. Os órgãos que compõem um organismo são muito diferentes uns dos outros; já os entes que não formam um organismo podem ser bastante parecidos. Seis moedas de um penny são totalmente separadas, mas bastante semelhantes; meu nariz e meu pulmão são completamente diferentes, mas só estão vivos porque fazem parte do meu corpo e partilham uma vida comum. O cristianismo não concebe os indivíduos humanos como meros membros de um grupo, ou itens numa lista, mas como órgãos num corpo – uns diferentes dos outros, e cada qual oferecendo uma contribuição própria e insubstituível. Quando você se flagrar tentando transformar seus filhos, alunos ou até vizinhos em pessoas exatamente iguais a você, lembre-se de que Deus provavelmente não quis que eles fossem assim. Você e eles são órgãos diferentes, com finalidades diferentes. Por outro lado, quando você se sentir tentado a não se incomodar com os problemas de alguém porque eles “não lhe dizem respeito”, lembre-se de que, apesar de essa pessoa ser diferente de você, ela faz parte do mesmo organismo. Se esquecer esse fato, você se tornará um individualista. Se, por outro lado, esquecer que ela é um órgão diferente, quiser suprimir as diferenças e fazer todas as pessoas iguais, tornar-se-á um totalitário. O cristão não deve ser nem uma coisa nem outra. Sinto o forte desejo de lhe dizer — e acho que você sente a mesma coisa — qual dos dois erros é o pior. Essa é a estratégia do diabo para nos pegar. Ele sempre envia ao mundo erros aos pares — pares de opostos. E sempre nos estimula a desperdiçar um tempo precioso na tentativa de adivinhar qual deles é o pior. Sabe por quê? Ele usa o fato de você abominar um deles para levá-lo aos poucos a cair no extremo oposto; Mas não nos deixemos enganar. Temos de manter os olhos fixos em nosso objetivo, que está bem à nossa frente, e passar reto no meio de ambos os erros. Nem um nem outro nos interessam.
7.O DIVINO FINGIMENTO
Peço licença ao leitor para iniciar novamente o capítulo com duas imagens, ou histórias. Uma das histórias você já deve ter lido; chama-se A Bela e a Fera. Você há de se lembrar que a garota, por alguma razão, tem de se casar com o monstro. Depois de casada, beija-o como a um homem e então, para seu alívio, ele se torna um rapaz e eles vivem felizes para sempre. A segunda história é sobre uma pessoa que teve de usar uma máscara, uma máscara que a tornava muito mais bonita do que era de fato. Teve de usá-la por anos a fio. Quando finalmente a tirou, descobriu que sua face tinha se adaptado, crescido e se tornado igual à máscara. Assim, se tornara muito bonita. O que começara como um disfarce terminou como a própria realidade. Tenho a impressão de que ambas as histórias podem ajudar a ilustrar (dentro dos limites da fantasia, é claro) o que tenho a dizer neste capítulo. Até aqui, tentei descrever fatos – o que é Deus e o que ele fez. Agora, gostaria de passar para a prática – o que fazer a seguir. Qual a importância de toda essa Teologia? Ela pode começar a ter importância hoje à noite. Se você teve interesse suficiente para ler o livro até aqui, provavelmente terá interesse suficiente para fazer suas orações à noite; e, quaisquer que sejam essas orações, uma delas certamente será o Pai-nosso.
Suas primeiras palavras são justamente essas, Pai nosso. Você percebe, por acaso, o que elas significam? Significam, na verdade, que você se põe na posição de um filho de Deus. Sem meias-palavras, é como se você se fantasiasse de Cristo. Você finge. Porque é evidente que, no momento em que se dá conta do significado das palavras, você percebe que não é um filho de Deus. Não é um ser como o Filho de Deus, cuja vontade e cujos interesses estavam em uníssono com os do Pai: é um feixe de medos egocêntricos, de esperanças vãs, de cobiça, de ciúmes, de vaidade, fadados à morte. Sob um certo ponto de vista, portanto, fantasiar-se de Cristo é uma tremenda desfaçatez. O estranho nisso tudo é que ele ordenou que agíssemos assim.
Por quê? Qual a vantagem de fingir ser o que não somos? Bem, na esfera humana existem dois tipos de fingimento. Existe um ruim, em que o fingir toma o lugar da própria coisa, como quando um homem diz que vai nos ajudar, mas não ajuda. Mas também existe um bom, quando o fingimento nos leva à realidade. Quando você não está se sentindo muito amigável, mas sabe que deveria sê-lo, em geral a melhor coisa a fazer é adotar modos agradáveis e se comportar como se fosse uma pessoa melhor do que realmente é. Em poucos minutos, como todos sabemos por experiência própria, passará a se sentir, de fato, mais amistoso. Com muita freqüência, a única maneira de adquirir uma qualidade consiste em comportar-se como se já a tivesse. E por isso que as brincadeiras infantis são tão importantes. As crianças fingem ser adultos – brincando de soldado e de dona-de-casa. Estão sempre retesando os músculos e afiando a inteligência, de modo que, fingindo ser adultos, acabam tornando-se adultos de verdade.
No momento em que você se dá por si e diz “Aqui estou, nos trajes de Cristo”, é bem provável que vislumbre de imediato algum modo pelo qual o fingimento possa deixar de ser tão fingido e se torne mais real. Flagrará, por exemplo, diversos pensamentos passando pela sua mente, pensamentos que não deveriam ocorrer a um filho de Deus. Ora, pare de pensá-los. Ou senão perceberá que, em vez de estar orando, deveria estar na sala escrevendo uma carta ou ajudando sua esposa com a louça. Ora, faça isso.
Você já entendeu o que está acontecendo. O próprio Cristo, Filho de Deus, que é homem (como você) e Deus (como seu Pai), está na verdade a seu lado e já desde aquele momento começa a transformar seu fingimento em realidade. Esta não é simplesmente uma maneira rebuscada de dizer que a sua consciência está lhe ditando o que fazer. Se você simplesmente perguntar à consciência o que deve fazer, terá uma resposta; se recordar que está sob as vestes de Cristo, terá outra resposta bem diferente. Há uma porção de coisas que sua consciência não vai achar especialmente erradas (especialmente coisas que passam pela sua cabeça), mas que você percebe de imediato que são inaceitáveis para quem faz um esforço sério para ser como o Cristo. Você não está mais pensando simplesmente em certo e errado; está tentando contrair a boa infecção de uma Pessoa. E uma atividade mais próxima da pintura de um quadro que da obediência a um código de regras. E o curioso é que, de um lado, ela é bem mais difícil que a obediência, mas, de outro, é muito mais fácil.
O verdadeiro Filho de Deus está ao seu lado. Ele está começando a transformar você em algo semelhante a ele. Está começando, por assim dizer, a “injetar” seu tipo de vida e pensamento, sua zoé, em você; está começando a transformar o soldadinho de chumbo num homem vivo. A parte de você que não gosta disso é a parte que ainda é feita de chumbo.
Alguns de vocês podem achar que isto está muito distante de suas experiências pessoais. Talvez digam: “Nunca senti a presença invisível de Cristo a meu lado me ajudando, mas várias vezes fui ajudado por outros seres humanos.” Mal comparando, é como a mulher que, na Primeira Guerra, disse que não se importava com uma possível carestia de pão, pois em sua casa só comiam torradas. Se não houver pão, não haverá torrada. Da mesma forma, sem a ajuda de Cristo, os outros seres humanos também não vão nos ajudar. Ele opera em nós de diversas maneiras: não apenas dentro dos limites do que chamamos de “vida religiosa”, mas também por meio da natureza, do nosso próprio corpo, dos livros, às vezes inclusive mediante experiências que poderiam ser vistas (na hora em que ocorreram) como anticristãs. Quando um jovem que freqüenta a igreja de forma rotineira se dá conta de que realmente não acredita no cristianismo e pára de freqüentá-la – pressupondo que se trate de uma atitude honesta e sincera, e não de algo que ele faz só para aborrecer os pais -, o Espírito de Cristo está mais próximo dele do que jamais esteve antes – pressupondo que tomou essa atitude de coração, e não para incomodar os seus pais. Porém, acima de tudo, Cristo opera em nós através dos outros seres humanos, e neles através de nós.
Os seres humanos são espelhos ou “portadores” de Cristo para os outros seres humanos. Às vezes, portadores inconscientes. A “boa infecção” pode ser transmitida até mesmo pelos que não foram infectados. Certas pessoas que não eram cristas me ajudaram a abraçar o cristianismo. Em geral, porém, são os que conhecem o Cristo que o levam às outras pessoas. Esse é o motivo pelo qual a Igreja é tão importante – o corpo inteiro dos cristãos, que revelam o Cristo uns aos outros. Pode-se dizer que, quando dois fiéis juntos seguem Jesus Cristo, o cristianismo não se fortalece apenas em dobro, comparado ao tempo em que os dois o seguiam separados, mas sim dezesseis vezes.
Não se esqueça de uma coisa: é natural que uma criança de colo, a princípio, beba o leite do seio materno sem saber que quem lhe dá o leite é sua mãe. É igualmente natural que vejamos o homem que nos ajuda sem perceber o Cristo por trás dele. Porém, não devemos permanecer bebês para sempre. Temos de crescer e reconhecer o verdadeiro Doador. Seria loucura não fazer isso, pois, nesse caso, tudo o que nos restaria seria confiar apenas em seres humanos como nós, o que nos levaria à decepção. Os melhores entre eles cometem erros, e todos estão fadados à morte. Devemos ser gratos a todas as pessoas que nos ajudaram, devemos honrá-las e amá-las. Mas nunca, nunca deposite toda a sua fé num ser humano, mesmo que seja a melhor e a mais sábia pessoa do mundo. Existe uma porção de coisas interessantes que você pode fazer com areia; mas não vá construir uma casa sobre ela.
Nesse ponto começamos a entender o que o Novo Testamento quer dizer quando assevera que os cristãos “nascem de novo”, que “se revestem de Cristo”, que Cristo “é formado em nós” e que aos poucos passamos a “ter a mente de Cristo”.
Devemos repelir a idéia de que tudo isso não passa de uma forma figurada de dizer que o cristão é aquele que lê os ensinamentos de Cristo e os segue, como o homem comum que lê Platão ou Marx e tenta seguir o que eles disseram. O que o Novo Testamento pretende é bem mais que isso: que uma Pessoa real, o Cristo, aqui e agora, no aposento em que você ora, está fazendo algo em você. E não se trata apenas de um homem bom que morreu há dois mil anos. Trata-se de um Homem vivo, ainda tão homem quanto você e ainda tão divino quanto era quando criou o mundo, que realmente chega para interferir em seu eu mais profundo, para matar em você o homem velho e substituí-lo pelo tipo de alma que ele mesmo tem. No início, ele só faz isso em alguns momentos. Depois, por períodos mais prolongados. Por fim, se tudo corre bem, transforma-o permanentemente num ser de espécie diferente e nova, num pequeno Cristo, num ser que, à sua humilde maneira, possui a mesma espécie de vida que Deus, comungando de seu poder, de sua felicidade, do seu saber e de sua eternidade. E logo descobrimos duas outras coisas.
(1) Passamos a notar não apenas nossos atos pecaminosos particulares, mas nossa atitude pecaminosa em geral; ficamos incomodados não apenas com o que fazemos, mas com o que somos. Isso pode ser um pouco difícil de compreender, e assim vou tentar explicá-lo a partir da minha experiência pessoal. Nas minhas orações noturnas, quando tento contabilizar os pecados do dia, nove em dez vezes pequei contra a caridade: pelo acabrunhamento, pela irritação, pelo escárnio, pelo desdém ou pelo destempero. A desculpa que surge de imediato em minha mente é que a provocação foi súbita e inesperada demais; fui pego com a guarda baixa, não tive tempo para me prevenir. Isso até pode servir como atenuante para aqueles atos particulares, que seriam muitíssimo piores se cometidos de forma deliberada e premeditada. Por outro lado, será que o que um homem faz quando é pego com a guarda baixa não é o melhor sinal de que tipo de homem ele é na realidade? Não é a verdade que sempre se evidencia quando o homem não tem tempo de vestir seu disfarce? Se existem ratos no porão, a melhor maneira de apanhá-los é entrando no local de sopetão. A entrada repentina não cria os ratos, apenas os impede de se esconder. Da mesma forma, a rapidez da provocação não faz de mim um homem mal-humorado; simplesmente mostra o quão mal-humorado eu efetivamente sou. O porão está sempre cheio de ratos, mas, se chegamos fazendo barulho, eles têm tempo de buscar um esconderijo antes de acendermos a luz. Pelo jeito, os ratos do ressentimento e da vingança moram no porão da minha alma. Ora, esse porão não está ao alcance da minha vontade consciente. Posso controlar meus atos em certa medida, mas não tenho controle direto sobre meu temperamento. Se (como eu disse antes) o que mais importa é o que somos, não o que fazemos – se, com efeito, o que fazemos é importante sobretudo na medida em que revela o que somos -, a conclusão inescapável a que chego é que a mudança mais urgente a que devo me submeter é uma mudança que meus esforços diretos e voluntários não podem realizar. Isso vale também para as minhas boas ações. Quantas delas foram praticadas pelos motivos corretos? Quantas foram feitas por medo do que os outros iriam pensar ou por desejo de me exibir? Quantas delas não surgiram de uma espécie de teimosia ou senso de superioridade que, em circunstâncias diferentes, me levariam a cometer atos abomináveis? Não consigo, pelo esforço moral direto, dar motivos mais nobres às minhas ações. Depois dos primeiros passos na vida cristã, nos damos conta de que tudo o que realmente precisa mudar na alma só pode ser feito por Deus. E isso nos leva a algo que pode ter dado motivo a mal-entendidos na linguagem que usei até aqui.
(2) Quem me ouviu falar até agora deve ter ficado com a impressão de que somos nós que fazemos tudo. Na verdade, como é óbvio, é Deus que faz tudo. Nós, na melhor das hipóteses, permitimos que ele o faça. Num certo sentido, até mesmo o fingimento de que falamos é Deus quem o faz. O Deus tripessoal, por assim dizer, vê diante de si um animal humano egocêntrico, ganancioso, ressentido e rebelde. Mas diz: “Vamos fazer de conta que esta não é uma mera criatura, mas nosso filho. Na medida em que é um homem, é como o Cristo, que se fez homem. Vamos fazer de conta que essa criatura também se parece com ele em espírito. Vamos tratá-la como se ela fosse o que não é. Vamos fingir tudo isso para que o fingido se torne o real.” Deus olha para você como se você fosse um pequeno Cristo. O Cristo está de pé a seu lado para operar essa transformação em você. Sei que essa idéia de um divino faz-de-conta pode soar estranha num primeiro momento. Mas será ela tão estranha assim? Não é desse modo que as coisas mais elevadas sempre elevam as mais baixas? Para ensinar o bebê a falar, a mãe fala com ele como se ele pudesse entendê-la. Tratamos nossos cães como se fossem “quase humanos”, e é por isso que eles realmente se tornam quase humanos no final.
8. O CRISTIANISMO É DIFÍCIL OU FÁCIL?
No capítulo antetior, consideramos a idéia cristã de “revestir-se de Cristo”, ou seja, de “vestir-se” de filho de Deus para tornar-se enfim um filho de verdade. Gostaria agora de deixar bem claro que essa não é apenas uma das muitas tarefas a que o cristão tem de se dedicar, nem tampouco é uma espécie de exercício especial para a classe dos adiantados. E todo o cristianismo. O cristianismo não nos oferece nada além disso. E chamo a atenção para o quanto isso é diferente das idéias convencionais de “moral” e de “ser bom”.
A idéia convencional que todos nós temos antes de nos tornarmos cristãos é a seguinte: tomamos como ponto de partida nosso ser comum, com seus muitos desejos e interesses, Admitimos em seguida que uma outra coisa — chamemo-la “moralidade”, “bom comportamento” ou “o bem da sociedade” — também tem direitos sobre o nosso ser, direitos que embaraçam os desejos próprios desse ser. Para nós, “ser bom” é ceder a esses direitos. Percebemos que algumas coisas que o ser comum queria fazer são o que chamamos de “erradas”: ora, temos de desistir de fazê-las. Mas o tempo todo ficamos à espera de que, quando todas as exigências tiverem sido cumpridas, o pobre ser natural ainda tenha alguma oportunidade e algum tempo para cuidar da própria vida e fazer o que bem lhe aprouver. Na verdade, assemelhamo-nos ao homem honesto que paga seus impostos. Ele efetivamente os paga, mas sempre espera que lhe reste o suficiente para continuar vivendo. Isso tudo porque ainda tomamos como ponto de partida o nosso ser natural.
Enquanto pensamos desse modo, os resultados possíveis que nos esperam são dois: ou desistimos de tentar ser bons ou nos tornamos muito, muito infelizes. Não se engane — se você está realmente disposto a tentar atender a todas as exigências que se impõem ao seu ser natural, saiba que não lhe restará o suficiente para continuar vivendo. Quanto mais você obedecer à sua consciência, tanto mais ela lhe cobrará. E o seu ser natural, continuamente submetido a fome, aos aborrecimentos e aos tormentos, vai se irar cada vez mais. No final, ou você desistirá de tentar ser bom ou se tornará uma daquelas pessoas que, como se costuma dizer, “vivem para os outros”, mas sempre de modo descontente e resmungão — sempre a se perguntar por que os outros não reparam nelas e sempre fazendo-se de mártires. E, quando isso acontecer, será um estorvo muito maior para os que tiverem de conviver com você do que seria se tivesse permanecido explicitamente egoísta desde o princípio.
A via cristã é diferente: é mais difícil e é mais fácil. Cristo diz: “Quero tudo o que é seu. Não quero uma parte do seu tempo, uma parte do seu dinheiro e uma parte do seu trabalho: quero você. Não vim para atormentar o seu ser natural, vim para matá-lo. As meias-medidas não me bastam. Não quero cortar um ramo aqui e outro ali; quero abater a árvore inteira. Não quero raspar, revestir ou obturar o dente; quero arrancá-lo. Entregue-me todo o ser natural, não só os desejos que lhe parecem maus, mas também os que se afiguram inocentes – o aparato inteiro. Em lugar dele, dar-lhe-ei um ser novo. Na verdade, dar-lhe-ei a mim mesmo: o que é meu se tornará seu.”
Isso é mais difícil e mais fácil do que aquilo que todos nós tentamos fazer. Acho que você já percebeu que o próprio Cristo às vezes descreve a via cristã como algo muito difícil, às vezes como algo muito fácil. Diz: “Tome a sua cruz” – em outras palavras, prepare-se para ser espancado até a morte num campo de concentração. Mas, um minuto depois, diz: “Meu jugo é suave e meu fardo é leve.” Ele de fato quis dizer as duas coisas, e, se fizermos um pouquinho de esforço, veremos por que as duas são verdadeiras.
Qualquer professor lhe dirá que o aluno mais preguiçoso da classe é aquele que, no fim, tem de trabalhar mais. O que eles querem dizer é o seguinte: se você der a dois meninos um exercício de geometria para resolver, por exemplo, o menino mais bem disposto procurará entendê-lo. O preguiçoso tentará aprendê-lo de cor, pois é isso que, naquele momento, exige menos esforço. Seis meses depois, porém, quando estiverem ambos se preparando para um exame, o menino preguiçoso estará penando por horas a fio para estudar coisas que o outro compreende em poucos minutos, e das quais até gosta. Com o tempo, o preguiçoso tem de trabalhar mais. Vamos dar outro exemplo. Numa batalha ou numa escalada de montanha, muitas vezes há uma manobra que exige muita coragem; mas é ela também que, no final, constitui o movimento mais seguro. Se você optar por outro curso de ação, ver-se-á horas depois num perigo muito maior. O caminho do covarde é também o caminho mais perigoso.
Assim é a nossa vida aqui. A coisa que lhe dá horror, que lhe parece quase impossível, é entregar todo o seu ser — todos os seus desejos e precauções — a Cristo. Mas isso é muito mais fácil que aquilo que todos nós tentamos fazer. Pois o que cada um tenta fazer é continuar sendo aquilo que chama de “ele mesmo”, é continuar tendo a felicidade pessoal como grande objetivo na vida, e ao mesmo tempo ser “bom”. Cada um tenta deixar que sua mente e seu coração sigam seus próprios caminhos — centrados no dinheiro, no prazer ou na ambição —, e apesar disso tem a esperança de se comportar de modo honesto, casto e humilde. Mas é exatamente isso que Cristo nos advertiu que não se pode fazer. Como ele disse, não se geram figos dos abrolhos. Se sou um campo que só contém sementes de capim, não posso produzir trigo. Se o capim for cortado, pode até permanecer baixo: mas nem por isso vou produzir trigo em vez de capim. Se quiser produzir trigo, a mudança terá de ser mais profunda. Meu campo terá de ser carpido e depois semeado com sementes novas.
É por isso que o verdadeiro problema da vida cristã se apresenta num contexto em que geralmente não esperamos encontrá-lo: apresenta-se no momento mesmo em que você acorda de manhã. Todos os seus desejos e esperanças para aquele dia avançam em sua direção como bestas selvagens. E, a cada manhã, sua primeira tarefa é simplesmente a de repeli-los; é a tarefa de ouvir aquela outra voz, assumir aquele outro ponto de vista, abrir caminho para aquela outra vida, uma vida maior, mais forte e mais silenciosa. E assim também no restante do dia: distanciar-se de todas as suas manhas e ressentimentos naturais; sair do vendaval.
No começo, só nos é possível fazer isso por alguns instantes. Mas, a partir desses instantes, esse novo tipo de vida se dissemina pelo nosso organismo: pois agora deixamos que ele trabalhe sobre a parte correta do nosso ser. E essa a diferença que existe entre uma tinta, que se deposita simplesmente sobre a superfície, e um pigmento ou tintura que penetra no fundo. As palavras dele nunca foram vagas e idealistas. Quando disse “Sede perfeitos”, ele estava falando sério. Queria dizer que temos de fazer o tratamento completo. Não é fácil: mas a solução de meio-termo pela qual ansiamos é muito mais difícil – na verdade, impossível. Pode ser difícil para um ovo transformar-se numa ave; mas seria muitíssimo mais difícil aprender a voar sem deixar de ser ovo. Atualmente, nós somos como ovos. O problema é que ninguém pode continuar sendo um simples ovo para sempre. Ou o pássaro quebra a casca ou o ovo gora.
Volto então ao assunto anterior. Nisso está todo o cristianismo. Não há mais nada. E fácil perder esse fato de vista. E fácil pensar que a Igreja tem muitos objetivos diferentes – cuidar da educação, construir edifícios, enviar missões, organizar cerimônias. Do mesmo modo, é fácil achar que o Estado tem muitos objetivos diferentes – militares, políticos, econômicos e por aí afora. Porém, de certo modo, as coisas são muito mais simples que isso. O Estado existe simplesmente para promover e proteger a felicidade comum dos seres humanos nesta vida. O marido e a mulher que conversam ao pé do fogo, um grupo de amigos que joga dardos num pub, um homem que lê em seu escritório ou cuida do seu jardim — é para isso que o Estado existe. E a menos que ajudem a multiplicar, prolongar e proteger esses momentos, todas as leis, parlamentos, exércitos, tribunais, polícias, políticas econômicas etc. serão mera perda de tempo. Do mesmo modo, a Igreja só existe para reabsorver os homens em Cristo, para fazer deles pequenos Cristos. E, se isso não acontece, as catedrais, o clero, as missões, os sermões, a própria Bíblia não passam de uma perda de tempo. Foi só para isso que Deus se fez homem. Pode até ser, saiba você, que o próprio universo tenha sido criado só para isso. A Bíblia diz que o universo inteiro foi feito para Cristo e que todas as coisas devem ser unidas nele. Parece-me que ninguém pode saber como isso vai acontecer com o universo inteiro. Não sabemos quais os seres (se é que existem) que vivem naquelas partes do universo que ficam a milhões de milhas desta Terra. Mesmo nesta Terra, não sabemos como isso pode acontecer com outros seres que não o homem. Mas, no fim das contas, isso seria de esperar. Só nos foi revelada aquela parte do plano que nos diz respeito diretamente.
Às vezes gosto de imaginar que sou capaz de vislumbrar como o mesmo poderia acontecer com outras coisas. Vejo que os animais superiores são de certa forma reabsorvidos no ser humano quando ele os ama e os torna (como de fato acontece) muito mais humanos do que de outro modo seriam. Vejo até mesmo que, de certo modo, os seres inanimados e os vegetais são reabsorvidos no ser humano à medida que ele os estuda e os aprecia. E, se existem criaturas inteligentes em outros mundos, elas podem fazer a mesma coisa nos mundos que habitam. Pode ser que, quando os seres inteligentes entrarem em Cristo, eles levem consigo, desse modo, todas os outros seres criados. Pode ser, mas não sei: é só um palpite que tenho.
O que nós sabemos, porque isto sim nos foi dito, é como nós homens podemos ser reabsorvidos em Cristo – podemos passar a fazer parte daquele presente maravilhoso que o jovem Príncipe do universo quer oferecer ao seu Pai – aquele presente que é ele mesmo e, portanto, somos nós nele. Foi só para isso que fomos criados. E a Bíblia nos dá a entender que, quando formos reabsorvidos, muitas outras coisas da natureza começarão a entrar nos eixos. O pesadelo terá terminado e um novo dia nascerá.
9. AVALIAR O CUSTO
Ao que parece, muita gente se sentiu incomodada com o que eu disse no capítulo anterior a respeito das palavras de Nosso Senhor: “Sede perfeitos.” Certas pessoas aparentemente pensam que isso significa: “Se vocês não forem perfeitos, não os ajudarei”; e, se foi isso que ele quis dizer, não temos esperança alguma, pois não conseguimos ser perfeitos. Mas não acho que foi isso que ele quis dizer. Acho que ele disse: “A única ajuda que lhes darei é a ajuda de que vocês precisam para ser perfeitos. Pode até ser que vocês queiram menos que isso; mas eu não lhes darei menos.”
Deixem-me explicar. Quando era criança, eu tinha muita dor de dentes e sabia que, se me queixasse à minha mãe, ela me daria algo que faria passar a dor naquela noite e me deixaria dormir. Porém, eu não me queixava à minha mãe — ou só o fazia quando a dor se tornava insuportável. E o motivo pelo qual não me queixava é o seguinte: não tinha dúvidas de que ela me daria uma aspirina, mas sabia que não pararia por aí. Sabia que, na manhã seguinte, me levaria ao dentista. Eu não podia obter dela o que queria sem obter também outra coisa, que não queria. Queria o alívio imediato da dor; mas, para ter isso, teria de submeter meus dentes ao tratamento completo. E conhecia os dentistas: sabia que eles começariam a mexer com outros dentes que ainda não escavam doendo. Eram do tipo que mexiam em casa de marimbondos e que, quando se lhes dava a mão, queriam pegar também o braço.
Ora, se posso me exprimir deste modo, Nosso Senhor é como os dentistas. Se você lhe der a mão, ele vai querer o braço. Dezenas de pessoas o procuram para se curar de um pecado específico que as envergonha (como a masturbação ou a covardia física) ou que perturba de modo evidente sua vida cotidiana (como o mau humor ou o alcoolismo). Bem, ele cura esse problema; mas não pára por aí. Mesmo que você lhe peça somente a cura daquele mal específico, ele lhe dará o tratamento completo. E por isso que ele nos aconselhou a “avaliar o custo” antes de nos tornarmos cristãos. “Não se engane”, diz ele. “Se você me deixar trabalhar, vou torná-lo perfeito. No momento em que você se entregar em minhas mãos, é para isso que se terá entregue – nada menos que isso, nada diferente disso. Você é dotado de vontade livre e, se quiser, pode me afastar de si. Mas, se não me afastar, saiba que não vou parar enquanto não terminar esse serviço. Por mais que você sofra nessa vida terrena, por mais que passe por purificações inconcebíveis depois da morte, por mais que isso me custe, não descansarei nem o deixarei descansar enquanto você não for literalmente perfeito – enquanto meu Pai não puder dizer sem reservas que se agrada de você como se agradou de mim. E isso que posso fazer e é isso que vou fazer. Mas não farei nada menos que isso.”
Não obstante — e este é o outro lado da questão, tão importante quanto o primeiro -, o mesmo Auxiliador que não aceita ao final nenhuma outra coisa que não seja a perfeição absoluta também se compraz com o mais ínfimo e titubeante esforço que você empreende para cumprir o menor dos seus deveres. Como observou um grande escritor cristão (George MacDonald), não há pai que não se agrade com os primeiros passos de seu bebê; mas nenhum pai ficaria satisfeito se não visse o filho já crescido caminhar com um passo firme, livre e másculo. Do mesmo modo, segundo ele, “Deus se agrada facilmente, mas não se satisfaz com facilidade”.
A conseqüência prática é a seguinte: por um lado, mesmo que Deus exija a perfeição, você não precisa em absoluto se desanimar com suas tentativas atuais de ser bom, ou mesmo com seus atuais fracassos. Toda vez que você fracassar, ele o colocará novamente em pé. E ele tem perfeita consciência de que seus próprios esforços não o aproximarão em nada da perfeição. Por outro lado, você tem de saber desde o principio que a meta rumo à qual ele o dirige é a perfeição absoluta; e não existe poder algum no universo, exceto você mesmo, que possa impedi-lo de conduzir você a essa meta. E nisso que você entrou, e é importante que o saiba. Se não souber, a certa altura provavelmente começará a recalcitrar e a resistir. Segundo me parece, quando Cristo nos habilita a vencer um ou dois pecados que nos atrapalhavam de maneira óbvia, muitos de nós tendemos a sentir (embora não o formulemos em palavras) que já somos bons o suficiente. Ele fez tudo quanto queríamos que fizesse e agora agradeceríamos muito se nos deixasse em paz. E como costumamos dizer: “Nunca quis ser santo. Tudo o que queria era ser uma pessoa decente e comum.” E, quando dizemos isso, imaginamos que estamos sendo humildes.
Mas eis aí um engano fatídico. E claro que nunca quisemos e nunca pedimos que ele nos transformasse nesse tipo de criatura em que vai nos transformar. Mas o problema não é o que nós queríamos ser; é o que ele queria que fôssemos quando nos criou. Foi ele que nos fez. Ele é o inventor; nós somos a máquina. Ele é o pintor; nós, a pintura. Como podemos saber o que ele quer que sejamos? Veja só, ele já fez de nós algo muito diferente do que antes éramos. Há muito tempo, antes de nascermos, quando ainda estávamos no útero de nossa mãe, passamos por vários estágios. Éramos, no começo, semelhantes a vegetais, e depois nos tornamos semelhantes a peixes; foi só num estágio posterior que nos tornamos semelhantes a bebês humanos. E, se tivéssemos tido consciência desses estágios anteriores, arrisco-me a dizer que teríamos ficado muito contentes de permanecer semelhantes a vegetais ou a peixes — não teríamos gostado de ser transformados em bebês. Porém, ele sempre conheceu o plano que fez para nós e sempre esteve determinado a levá-lo a cabo. Algo parecido está acontecendo agora, num nível superior. Podemos até nos contentar com ser o que chamamos de “pessoas comuns”, mas ele está determinado a levar a cabo um plano muito diferente. Recusar-se a seguir esse plano não é humildade: é preguiça e covardia. Submeter-se a ele não é presunção nem megalomania, mas obediência.
Eis outra maneira de formular os dois lados dessa verdade. Por um lado, não devemos jamais imaginar que nossos esforços por si sós bastarão para nos conservar como pessoas “decentes” nem mesmo pelas próximas vinte e quatro horas. Se ele não nos sustentar, nenhum de nós estará a salvo de cometer algum pecado abominável. Por outro lado, nenhum grau de santidade ou heroísmo, nem mesmo os graus alcançados pelos maiores entre os santos, está além do que ele se determina a produzir em cada um de nós no final. A tarefa não ficará terminada nesta vida; mas ele pretende nos levar tão longe quanto possível antes de morrermos.
E por isso que não devemos nos surpreender se coisas ruins começarem a acontecer. Quando um homem se volta pata Cristo e parece estar bem (na medida em que alguns de seus maus hábitos estão corrigidos), ele pode pensar que a coisa mais natural seria que sua vida agora transcorresse sem problemas. Quando as tributações chegam – doenças, problemas de dinheiro, novos tipos de tentação —, ele se decepciona. Aos olhos dele, essas coisas foram necessárias antes, para despertá-lo e fazê-lo arrepender-se; mas, e agora: por quê? Porque Deus o está obrigando a progredir ou subir a um novo nível: colocando-o em situações em que ele terá de ser muito mais corajoso, muito mais paciente, muito mais amoroso do que jamais sonhara ser. A nós, tudo isso parece desnecessário: mas é porque não temos ainda o menor vislumbre do ser tremendo em que ele quer nos transformar.
Parece-me que tenho de tomar emprestada mais uma parábola de George MacDonald. Imagine-se como uma casa, uma casa viva. Deus chega para reformar e reconstruir essa casa. No começo, talvez você consiga entendei o que ele está fazendo. Ele desentope os ralos, conserta as goteiras do telhado etc: você sabia que esses consertos eram necessários e por isso não se surpreende. Mas de repente ele começa a derrubar as paredes da casa; isso lhe causa uma dor terrível e aparentemente não tem sentido. O que ele pretende fazer? A explicação é que ele está construindo uma casa muito diferente da que você queria ser — está construindo uma nova ala aqui, acrescentando um novo pavimento ali, erguendo torres, abrindo pátios. Você pensava que seria transformado num simpático chalezinho, mas ele está construindo um palácio no qual pretende habitar em pessoa.
O mandamento Sede perfeitos não é uma palavra vazia e idealista, nem uma ordem para que o ser humano realize o impossível. Ele vai nos transformar em criaturas capazes de obedecer a esse mandamento. Na Bíblia, ele disse que somos “deuses”, e será fiel às suas palavras. Se o deixarmos agir — pois podemos impedi-lo, se quisermos —, ele fará do mais fraco e do maior pecador entre nós um deus ou uma deusa, uma criatura luminosa, radiante e imortal, tomada por uma pulsação tal de energia, alegria, sabedoria e amor que agora somos incapazes de imaginar; um espelho claríssimo e sem mácula que reflete perfeitamente ao próprio Deus (embora, como é óbvio, numa escala menor) o seu poder, sua bondade e sua felicidade infinita. O processo será longo e, às vezes, muito doloroso, mas é nesse processo que entramos — nada menos do que isso. Ele estava falando sério.
10. BOAS PESSOAS OU NOVAS CRIATURAS
Ele estava falando sério. Os que se colocam em suas mãos serão perfeitos como ele é perfeito — perfeitos em amor, em sabedoria, em alegria, em beleza e em imortalidade. A mudança não se completará nesta vida, pois a morte é um elemento importante do tratamento. Não se sabe o quanto o processo de transformação estará avançado na hora da morte de cada cristão.
Acho que chegou a hora certa para responder a uma pergunta que muitas vezes se coloca: se o cristianismo é verdadeiro, por que nem todos os cristãos são evidentemente melhores do que os não-cristãos? Por trás dessa pergunta existe algo perfeitamente razoável e algo que não é razoável de modo algum. O elemento razoável é o seguinte: se a conversão ao cristianismo não melhora em nada as ações exteriores de um homem — se ele continua sendo tão esnobe, tão rancoroso, tão invejoso ou tão ambicioso quanto era antes – devemos, na minha opinião, suspeitar que sua “conversão” foi, em grande medida, imaginária; e a cada avanço que a pessoa pensa ter feito depois da conversão original, é essa a prova a ser aplicada. Bons sentimentos, novas idéias e um interesse maior pela “religião” nada significam se não melhoram nosso comportamento, assim como o fato de um doente se “sentir melhor” de nada aproveita se o termômetro mostra que sua temperatura ainda está subindo. Nesse sentido, o mundo exterior tem toda razão de julgar o cristianismo pelos seus resultados. O próprio Cristo nos mandou julgar pelos resultados. A árvore é conhecida pelos seus frutos; ou, como dizem os ingleses, a prova da sobremesa está no comer. Quando nós, cristãos, nos comportamos mal ou deixamos de nos comportar bem, fazemos com que o cristianismo perca credibilidade aos olhos do mundo exterior. Os pôsteres da época da guerra nos diziam que “Palavras descuidadas custam vidas” [Careless talk costs lives]. Com a mesma verdade podemos dizer que “Vidas descuidadas custam palavras”. Nossas vidas descuidadas levam o mundo exterior a falar; e nós lhe damos motivos para falar palavras que põem em dúvida a verdade do próprio cristianismo.
Mas existe um outro modo de se exigir resultados, um modo no qual o mundo exterior se mostra totalmente ilógico. As pessoas que pertencem a ele não se limitam a exigir que a vida de cada homem melhore quando ele se torna cristão; exigem também, para poder crer no cristianismo, que o mundo inteiro se lhes apresente nitidamente dividido em dois campos – o cristão e o não-cristão — e que todas as pessoas que estão no primeiro campo sejam, a qualquer momento, evidentemente melhores que todas as que estão no segundo. Por diversos motivos, isso não é nem um pouco razoável.
(1) Em primeiro lugar, a situação verdadeira do mundo é muito mais complicada. O mundo não é feito de pessoas 100 por cento cristãs e pessoas 100 por cento não-cristãs. Existem pessoas (em grande número) que estão lentamente deixando de ser cristãs, mas que ainda se chamam por esse nome; algumas delas fazem parte da liderança da Igreja. Existem outras pessoas que estão lentamente se tornando cristãs, embora ainda não se chamem por esse nome. Existem pessoas que não aceitam toda a doutrina cristã a respeito de Cristo, mas que são a tal ponto atraídas por ele que chegam a pertencer a ele num sentido muito mais profundo do que elas mesmas poderiam compreender. Existem membros de outras religiões que, pela influência secreta de Deus, são levados a concentrar-se naqueles elementos de suas religiões que concordam com o cristianismo, e que assim pertencem a Cristo sem o saber. Um budista de boa vontade, por exemplo, pode ser levado a concentrar-se cada vez mais na doutrina budista da compaixão, deixando em segundo plano os elementos doutrinais que versam sobre outras questões (embora possa ainda afirmar crer nessa doutrina como um todo). E possível que muitos dos bons pagãos que viveram antes do nascimento de Cristo tenham estado nessa situação. E, como seria de esperar, sempre existe um número infindável de pessoas que são simplesmente confusas e têm uma porção de crenças incoerentes misturadas dentro de si. Conseqüentemente, não há muita utilidade em se tentar emitir juízos sobre os cristãos e os não-cristãos considerados em seu conjunto. Vale a pena tentar comparar em conjunto os cães e os gatos, ou mesmo os homens e as mulheres, pois nesses casos não há a menor dúvida sobre quem é quem. Além disso, nenhum animal se transforma de gato em cachorro (nem lentamente nem de súbito). Mas, quando comparamos os cristãos em geral com os não-cristãos em geral, com freqüência não pensamos nas pessoas reais que conhecemos, mas em duas idéias vagas que nos foram incutidas pelos romances e notícias de jornal. Se você quiser comparar o bom ateu com o mau cristão, terá de pensar sobre dois espécimes reais que você efetivamente conheceu. Se não descermos assim aos fatos concretos, estaremos simplesmente perdendo tempo.
(2) Vamos supor que descemos aos fatos concretos e não estamos mais falando sobre um cristão e um não-cristão imaginários, mas sobre duas pessoas de verdade que moram no nosso bairro. Mesmo nesse caso, temos de cuidar para não fazer a pergunta errada. Se o cristianismo é verdadeiro, é necessário que (a) qualquer cristão seja melhor do que ele mesmo seria se não fosse cristão; e (b) todo aquele que se tornar cristão seja melhor do que era antes. Da mesmíssima maneira, se as propagandas do creme dental Sorriso de Prata são verdadeiras, é necessário que (a) qualquer um que o use tenha dentes melhores do que teria se não o usasse; e (b) se alguém começar a usá-lo, seus dentes melhorem. Mas o simples fato de que eu, que uso Sorriso de Prata mas herdei dentes ruins do meu pai e da minha mãe, não tenho dentes tão bons quanto os de um jovem africano saudável que nunca usou creme dental de espécie alguma, não prova por si mesmo que a propaganda é enganosa. Assim, a cristã srta. Bates pode ter uma língua mais maldosa que a do incréu Dick Firkin. Esse fato, por si mesmo, não nos diz se o cristianismo funciona ou não. As perguntas são as seguintes: como seria a língua da srta. Bates se ela não fosse cristã, e como seria a de Dick se ele se convertesse? Em virtude de causas naturais e da criação que tiveram, Dick e a srta. Bates têm certos temperamentos; o cristianismo propõe-se a colocar ambos os temperamentos sob nova direção se seus respectivos donos o permitirem. O que você tem o direito de perguntar é se a nova direção, caso possa assumir o controle, de fato vai melhorar o desempenho da empresa. Todos sabem que aquilo que está sendo administrado em Dick Firkin é muito melhor que na srta. Bates. Não é esse o problema. Para julgar a administração de uma fábrica, não basta considerar os produtos; é preciso considerar o maquinado. Em vista do maquinário da Fábrica A, pode ser um verdadeiro milagre que ela consiga produzir qualquer coisa; em vista do maquinário da Fábrica B, sua produção, embora grande, talvez seja bem menor do que deveria ser. Não há dúvida de que o bom administrador da Fábrica A vai instalar novas máquinas assim que puder, mas isso leva tempo. Enquanto isso, a baixa produção não prova que ele fracassou.
(3) Agora, vamos um pouco mais ao fundo. O administrador vai instalar novas máquinas: quando Cristo terminar de fazer o que tem de fazer com a srta. Bates, ela será efetivamente muito “boa”. Mas, se parássemos por aí, ficaríamos com a impressão de que o único objetivo de Cristo foi conduzir a srta. Bates ao mesmo nível em que Dick sempre esteve. Na verdade, estivemos falando como se com Dick estivesse tudo bem; como se o cristianismo fosse algo que os mal-humorados necessitam e que os simpáticos podem se dar ao luxo de ficar sem; e como se tudo quanto Deus exige fosse um pouco de bondade natural. Porém, esse é um engano fatal. A verdade é que, aos olhos de Deus, Dick Firkin precisa ser “salvo” exatamente da mesma maneira que a srta. Bates. Em certo sentido (vou explicar esse sentido daqui a pouco), essa bondade natural nem sequer é levada em conta.
Não se pode pensar que Deus vê exatamente da mesma maneira que nós o temperamento plácido e a disposição amistosa de Dick. Eles resultam de causas naturais criadas pelo próprio Deus. Uma vez que são qualidades de temperamento, vão todas desaparecer se os processos digestivos de Dick se alterarem. A bondade natural, na verdade, é um dom que Deus concedeu a Dick, e não um dom que Dick concedeu a Deus. Do mesmo modo, Deus deixou que as causas naturais, operando num mundo estragado por séculos e séculos de pecado, produzissem na srta. Bates a mente estreita e os nervos à flor da pele que explicam a maior parte do seu mau humor. Ele pretende, a seu tempo, endireitar esse elemento da constituição dela. Mas, para Deus, não é essa a parte mais importante do assunto. Não é a parte difícil nem a parte que o preocupa. O que ele observa, espera e pretende produzir é algo que não é fácil nem mesmo para ele, uma vez que, em virtude da natureza das coisas, nem mesmo ele é capaz de produzi-lo por um simples ato de poder. Ele observa e espera por algo tanto na srta. Bates quanto em Dick Firkin. Trata-se de algo que eles podem entregar livremente a ele ou livremente recusar. Será que vão voltar-se para ele e assim cumprir a finalidade única em vista da qual foram criados? Ou será que não? O livre-arbítrio trepida dentro deles como a agulha de uma bússola. Porém, essa agulha é dotada do poder de escolha: ela pode indicar o Norte verdadeiro, mas não necessariamente o indica. Será que a agulha vai girar, parar e apontar para Deus?
Ele pode ajudá-la a fazer isso, mas não pode obrigá-la. Não pode, por assim dizer, estender sua mão e colocar a agulha na posição correta, pois nesse caso ela não seria livre. Será que ela vai apontar para o Norte? E essa a pergunta da qual tudo depende. Será que a srta. Bates e Dick Firkin vão oferecer cada qual a sua natureza a Deus? Se a natureza que eles negam ou oferecem é, num determinado momento, boa ou má, isso é um ponto de importância secundária. Deus mesmo pode cuidar dessa parte do problema.
Não me entendam mal. E claro que, aos olhos de Deus, uma natureza má é ruim e deplorável. E é claro que, para ele, uma boa natureza é uma coisa boa – boa como o pão, a luz do sol ou a água. Ou seja, é uma daquelas coisas boas que ele dá e nós recebemos. Foi ele quem criou os nervos sãos e a boa digestão de Dick, e nele existem muitos outros iguais a esses. Pelo que sabemos, a criação de coisas boas não custa nada a Deus; mas a conversão de vontades rebeldes custou-lhe a crucificação. E, pelo fato de serem vontades, elas podem – nas pessoas “boas” como nas “malvadas” – recusar o pedido dele. Então, como a simpatia de Dick é um simples elemento da natureza, no fim ela vai ruir. A própria natureza passará. As causas naturais se juntaram em Dick para constituir um padrão psicológico agradável, assim como se juntam num pôr-do-sol para constituir um agradável padrão de cores. Muito em breve (pois é assim que a natureza funciona) elas vão se separar de novo e ambos os padrões vão desaparecer. Dick teve a oportunidade de transformar (ou, antes, de deixar Deus transformar) esse padrão momentâneo na beleza de um espírito eterno; e não a aproveitou.
Há aí um paradoxo. Enquanto Dick não se volta para Deus, pensa que sua bondade pertence a ele; e, enquanto ele pensar assim, ela não lhe pertencerá. E só quando Dick perceber que sua bondade não é dele, mas um dom de Deus, e quando a oferecer de novo a Deus — é só então que ela começará a pertencer-lhe realmente. Por enquanto, Dick está apenas usufruindo sua criação. As únicas coisas que podemos conservar são as que entregamos a Deus. As que guardamos para nós são as que perderemos com certeza.
Por isso, não devemos nos surpreender se encontrarmos entre os cristãos pessoas que ainda são más. Quando se pensa no assunto, conclui-se até que existe uma razão pela qual é de esperar que as pessoas más se convertam a Cristo em número maior do que as boazinhas. Foi por causa disso que as pessoas se queixaram de Cristo durante sua vida terrena: ele atraía essas “pessoas desagradáveis”. Ê disso que as pessoas ainda se queixam e sempre se queixarão. Você não vê por quê? Cristo disse: “Bem-aventurados os pobres” e “Como é difícil a um rico entrar no Reino”, e não há dúvida de que tinha em mente, antes de mais nada, os economicamente ricos e os economicamente pobres. Mas será que suas palavras não se aplicam também a um outro tipo de riqueza e de pobreza? Um dos perigos de se ter muito dinheiro é que você pode ficar satisfeito com o tipo de felicidade que o dinheiro pode comprar e, assim, pode deixar de perceber o quanto precisa de Deus. Quando tudo parece depender do simples ato de assinar um cheque, você pode se esquecer de que, a cada momento, depende totalmente de Deus. Ora, é óbvio que os dons naturais levam em si um perigo semelhante. Se você tem um sistema nervoso sólido, inteligência, saúde, popularidade e uma boa criação, é muito provável que fique satisfeito com o seu caráter tal como ele é. Pode perguntar: “Por que meter Deus nisso?” Para você, não é difícil ter um certo nível de boa conduta. Você não é uma daquelas criaturas miseráveis que está sempre tropeçando no sexo, na dipsomania, no nervosismo ou no mau humor. Todos dizem que você é um cara legal e (cá entre nós) você concorda com eles. Tende a crer que toda essa simpatia vem de você mesmo; e não sente a necessidade de um tipo melhor de bondade. E muito comum que as pessoas que têm esses bons traços naturais não possam ser levadas a reconhecer o quanto precisam de Cristo até o dia em que sua bondade natural fracassa e sua auto-estima vai por água abaixo. Em outras palavras, para os que são “ricos” nesse sentido, é difícil entrar no Reino.
E muito diferente a situação das pessoas más e desagradáveis – das pessoas pequenas, vis, tímidas, pervertidas, covardes e solitárias, ou das passionais, sensuais e desequilibradas. Quando elas fazem qualquer tentativa de ser boas, percebem em dois tempos que precisam de ajuda. Para elas, é ou Cristo ou nada. É tomar a cruz e segui-lo — ou cair no desespero. São elas as ovelhas perdidas: ele veio especialmente para encontrá-las. São elas (num sentido muito verdadeiro, e terrível) os “pobres”: ele as declarou bem-aventuradas. São elas o “bando de esfarrapados” com os quais ele caminha – e é claro que os fariseus ainda dizem, como disseram desde o início: “Se o cristianismo fosse algo sério, essas pessoas não seriam cristãs!”
Há aí uma advertência ou uma palavra de encorajamento para cada um de nós. Se você é uma pessoa “boa” – se a virtude para você é algo fácil -, cuidado! Muito se espera daquele a quem muito se deu. Se você atribui a seus próprios méritos aquilo que na verdade foi uma dádiva que Deus lhe concedeu pela natureza, e se contenta com o simples fato de ser bom, ainda não passa de um rebelde: e todos esses dons só servirão para tornar mais terrível a sua queda, mais complicada a sua corrupção, mais desastroso o seu mau exemplo. O diabo já foi um arcanjo; os dons naturais dele estavam tão acima dos seus quanto os seus estão acima dos de um chimpanzé.
Mas, se você é um dos pobres – envenenado por uma criação miserável numa casa cheia de ciúmes vulgares e brigas gratuitas -, sobrecarregado, independentemente da sua vontade, por uma abominável perversão sexual – espicaçado noite e dia por um complexo de inferioridade que o leva a perder a paciência com seus melhores amigos -, não se desespere. Ele está bem ciente de tudo isso. Você é um dos pobres que ele abençoou. Ele conhece a máquina ruim que você tenta dirigir. Vá em frente. Faça o possível. Um dia (talvez em outro mundo, mas talvez muito antes disso) ela jogará essa máquina no monturo de ferro-velho e lhe dará uma nova. E então você poderá nos surpreender a todos — e inclusive a si mesmo: pois terá aprendido a dirigir numa escola bem difícil. (Alguns dos últimos serão os primeiros, e alguns dos primeiros serão os últimos.)
A “bondade natural” – uma personalidade sadia e integrada — é uma coisa excelente. Por todos os meios que a medicina, a educação, a economia e a política nos põem à disposição, temos de procurar produzir um mundo em que o maior número possível de pessoas cresçam “boas” – assim como temos de tentar produzir um mundo em que todos tenham o bastante para comer. Mas não devemos pensar que, mesmo que nos fosse possível fazer com que todos fossem bons, estaríamos salvando as almas de todos. Um mundo de pessoas boazinhas, satisfeitas com a própria bondade natural, cegas para tudo o mais, olhando para longe de Deus, estaria tão necessitado de salvação quanto um mundo de infelicidade — e talvez fosse até mais difícil de salvar.
Isso porque a simples melhora não é redenção, embora a redenção sempre melhore as pessoas, mesmo aqui e agora, e no fim chegue a aperfeiçoá-las num grau que ainda não conseguimos imaginar. Deus se fez homem para que as criaturas se tornassem filhos: não simplesmente para produzir homens melhores do tipo antigo, mas para produzir um novo tipo de homem. É como se,
em vez de ensinar um cavalo a saltar cada vez melhor e mais alto, nós o tornássemos uma criatura alada. E claro que, quando suas asas crescessem, ele voaria por sobre cercas que nenhum cavalo poderia saltar, e assim venceria o cavalo natural no seu próprio território. Mas haveria um período, quando as asas ainda estivessem apenas começando a crescer, em que não poderia fazer isso; e, nesse estágio, as protuberâncias nos ombros — ninguém seria capaz de dizer, pelo simples olhar, que viriam a transformar-se em asas – poderiam até dar-lhe uma aparência canhestra.
Mas talvez já tenhamos nos estendido demais sobre este assunto. Se o que você quer é um argumento contra o cristianismo (e me lembro muito bem de o quanto ansiei por um argumento desses quando comecei a ter medo de que o cristianismo fosse verdadeiro), não é difícil encontrar um cristão estúpido e medíocre e vociferar: “Então é essa a nova criatura da qual vocês se gabam! Prefiro a antiga!” Porém, quando você começar a perceber que existem outros motivos pelos quais o cristianismo é plausível, saberá em seu coração que esse tipo de argumento não tem nada a ver com o assunto. Que sabe você das almas das outras pessoas – de suas tentações, suas oportunidades, suas lutas? De toda a criação, só uma alma você conhece; ela é a única cujo destino está em suas mãos. Se Deus existe, você está, em certo sentido, sozinho diante dele. Não pode fazê-lo desaparecer com especulações sobre seus vizinhos ou memórias de coisas lidas em livros. De que valerá essa balbúrdia e essa murmuração – será que você será mesmo capaz de se lembrar de tudo isso? — quando a neblina anestésica que chamamos de “natureza” ou de “mundo real” se dissipar e a Presença diante da qual você sempre esteve se mostrar palpável, imediata e inevitável?
11. AS NOVAS CRIATURAS
No capítulo anterior, comparei a obra crística de criar novas criaturas com o processo pelo qual um cavalo se torna uma criatura alada. Usei esse exemplo extremo para deixar bem claro que aquilo de que se trata não é uma simples melhora, mas uma transformação. A coisa que mais se aproxima disso no mundo da natureza são as transformações notáveis que podemos provocar nos insetos quando projetamos certos raios sobre eles. Há quem pense que foi assim que ocorreu a evolução. As alterações das quais esse processo depende poderiam ter sido produzidas por raios vindos do espaço sideral. (É claro que, quando as alterações passam a existir, passam também a sofrer a influência daquilo que se chama “seleção natural”: as alterações úteis permanecem e as demais são extirpadas.)
Talvez um homem moderno possa compreender melhor a idéia cristã se a entender no contexto da evolução. Hoje em dia, todos já ouviram falar da evolução (embora haja homens instruídos que não creiam nela): todos já tiveram de ouvir que o homem evoluiu a partir das formas inferiores de vida. Conseqüentemente, as pessoas amiúde se perguntam: “Qual será o próximo passo? Quando aparecerá o ser que virá depois do homem?” Escritores cheios de imaginação tentam às vezes desenhar a figura desse próximo passo – o “super-homem”, pois assim o chamam; mas, no geral, só conseguem esboçar os contornos de um ser muito pior do que o homem que conhecemos, e depois tentam compensar esse fato dando-lhe novos pares de braços e pernas. Mas suponhamos que o próximo passo seja algo muito mais dessemelhante dos passos anteriores do que imaginam esses escritores. Não é provável que assim seja? Há milhares de séculos, criaturas gigantescas e dotadas de cascos pesadíssimos surgiram sobre a Terra. Se naquela época houvesse alguém que observasse o curso da evolução, provavelmente pensaria que ela caminhava na direção de cascos cada vez mais pesados. Estaria errado, porém. O futuro tinha uma carta na manga, uma carta que, naquele momento, não poderia ter sido prevista de modo algum. Estava a ponto de gerar pequenos seres nus, sem cascos nem espinhos, mas dotados de cérebros melhores: seres que, com esses cérebros, viriam a dominar o planeta inteiro. Não só teriam mais poder que os monstros pré-históricos como teriam um novo tipo de poder. O passo seguinte não só foi diferente como também foi marcado por um novo tipo de diferença. A corrente da evolução não seguiria a direção em que nosso hipotético observador a via fluir: na verdade, estava a ponto de fazer uma curva acentuada.
Ora, me parece que a maioria das conjecturas populares sobre o próximo passo estão cometendo o mesmo tipo de erro. As pessoas vêem (ou pelo menos pensam que vêem) os homens desenvolvendo um cérebro gigantesco e ampliando o domínio sobre a natureza. E, como pensam que a corrente está fluindo nessa direção, imaginam que continuará seguindo o mesmo curso. Mas não posso deixar de pensar que o próximo passo será completamente novo e tomará uma direção com a qual ninguém teria sonhado. Se não fosse assim, não poderia propriamente ser chamado um próximo passo. Penso que ele não só será diferente como também será caracterizado por um novo tipo de diferença. Não conjectura uma simples mudança, mas um novo método de produzir a mudança. Ou, para propor um paradoxo, conjectura que o próximo estágio da evolução não será de modo algum um estágio evolutivo: penso que a própria evolução será superada enquanto método de produção da mudança. E, por fim, não me surpreenderei se, quando isso acontecer, pouca gente perceber que está acontecendo.
Ora, se pretendemos continuar usando essa linguagem, a idéia cristã é que esse próximo passo já foi dado. E, de fato, ele é completamente novo. Não é uma mudança de homens cerebrais para homens mais cerebrais ainda: é uma mudança que parte numa direção completamente diferente — de criaturas de Deus para filhos de Deus. O primeiro caso dessa mudança surgiu na Palestina há dois mil anos. Em certo sentido, a mudança não é uma “evolução” de modo algum. Não é algo que nasce do processo natural dos acontecimentos, mas algo que entra na natureza vindo de fora dela. Porém, não deveríamos esperar outra coisa. Foi do estudo do passado que chegamos à nossa idéia de “evolução”. Se de fato existem novidades à nossa espera, é evidente que nossa idéia, baseada no passado, não poderia prevê-las. E na verdade esse próximo passo é diferente dos anteriores não só por vir de fora da natureza, mas por vários outros motivos também.
(1) Ele não se propaga pela reprodução sexual. Por que nos surpreender diante disso? Houve tempo em que os sexos não existiam; o desenvolvimento se dava por outros métodos. Conseqüentemente, é de esperar que venha um tempo em que as relações sexuais não existam mais, ou senão (como já está de fato acontecendo) um tempo em que, embora elas continuem existindo, deixem de ser os principais canais do desenvolvimento.
- Nos estágios anteriores, os organismos vivos não tinham escolha: eram obrigados ou praticamente obrigados a dar o passo seguinte. Em geral, o progresso era algo que lhes acontecia, não algo que eles mesmos empreendiam. Porém, este passo novo, o passo que nos conduz da condição de criaturas à condição de filhos, é voluntário. E voluntário pelo menos em um sentido. Não é voluntário porque nós, por nossa própria conta, poderíamos tê-lo dado ou tê-lo mesmo imaginado; mas é voluntário na medida em que, quando nos é oferecido, podemos recusá-lo. Se quisermos, podemos regredir; podemos recalcitrar e deixar que a nova humanidade vá em frente sem a nossa presença.
- Eu disse que Cristo foi o “primeiro caso” do homem novo. Mas é claro que ele é muito mais que isso. Não é simplesmente um homem novo, um espécime da espécie, mas o homem novo. E a origem, o centro e a vida de todos os homens novos. Entrou de livre e espontânea vontade no universo criado, trazendo consigo a zoé, a vida nova. (Nova para nós, evidentemente: no lugar de onde vem, a zoè existe desde toda a eternidade.). E ele não a transmite por hereditariedade, mas por aquilo que chamei de “boa infecção”. Todos os que a recebem adquirem-na pelo contato pessoal com ele. Os outros homens se tornam “novos” por estar “nele”.
(4) Esse passo se dá numa velocidade diferente da dos passos anteriores. Comparada com o desenvolvimento do homem neste planeta, a difusão do cristianismo pela raça humana parece dar-se na velocidade do raio — dois mil anos são quase nada em comparação com a história do universo. (Nunca se esqueça de que nós ainda somos os “primitivos cristãos”. Temos a esperança de que as atuais divisões em nosso seio, inúteis e malignas, sejam uma doença da infância: nossos dentes de leite ainda estão nascendo. Sem dúvida, o mundo exterior pensa o contrário. Pensa que estamos morrendo de velhice. Mas não é a primeira vez que esse pensamento lhe ocorre. Já lhe ocorreu pensar que o cristianismo estava morrendo por causa das perseguições externas, da corrupção interna, da ascensão do islamismo, da ascensão das ciências físicas, do surgimento dos grandes movimentos revolucionários anticristãos. Em cada um desses casos, porém, o mundo se decepcionou. Sua primeira decepção foi a crucificação: o Homem ressuscitou. Em certo sentido – e sei muito bem que isso deve parecer terrivelmente injusto aos olhos do mundo -, esse mesmo fato vem se repetindo desde então. O mundo continua matando aquilo que Jesus fundou; e a cada vez, quando está alisando a terra por cima da cova, ouve dizer de repente que aquilo ainda está vivo e surgiu de novo em algum outro lugar. Não admira que o mundo nos odeie.) (5) Desta vez, o que está em jogo é algo muito maior. Se retrocedesse aos passos anteriores, uma criatura perderia, na pior das hipóteses, seus poucos anos de vida nesta Terra; muitas vezes, nem isso. Retrocedendo neste passo, perdemos uma recompensa infinita (no sentido mais estrito da palavra). Isso porque o momento crítico chegou. No decorrer dos séculos, Deus conduziu a natureza ao ponto de produzir criaturas que podem (se quiserem) ser abstraídas da própria natureza e transformadas em “deuses”. Será que elas deixarão que isso aconteça? De certo modo, isso se assemelha à crise do nascimento. Até o momento em que nos levantamos e seguimos a Cristo, ainda somos elementos da natureza e repousamos no útero da nossa grande mãe. A gestação foi prolongada, dolorosa e cheia de ansiedade, mas agora atingiu o clímax. O grande momento chegou. Tudo está pronto. Até o Médico já está aqui. Será que o parto vai “transcorrer sem problemas”? Mas é claro que existe uma diferença importante entre esse parto e um parto comum. No parto comum, o bebê não tem muita escolha; neste, ele tem. Fico a pensar o que um bebê comum faria se tivesse escolha. Talvez ele preferisse permanecer na escuridão quente e segura do útero. Evidentemente, para ele o útero seria sinônimo de segurança. Mas ele estaria enganado; se lá permanecesse, morreria.
Sob esse ponto de vista, a coisa já aconteceu: o novo passo já foi dado e ainda está sendo dado. As novas criaturas já estão espalhadas, aqui e ali, por toda a superfície da Terra. Algumas, como eu mesmo admiti, ainda não são reconhecíveis, mas outras podem ser reconhecidas. De quando em vez, encontramos uma delas. As próprias vozes e rostos delas são diferentes dos nossos: mais fortes, mais tranqüilos, mais felizes, mais radiantes. Elas partem de onde a maioria de nós mal consegue chegar. Como eu disse, são reconhecíveis; mas você precisa saber o que procurar. Não se assemelham em nada à idéia de “pessoas religiosas” que você formou a partir de suas leituras. Não chamam a atenção para si. Você tende a pensar que está sendo gentil com elas, quando na verdade são elas que estão sendo gentis com você. Amam-no mais do que os outros homens, mas precisam menos de você. (Aliás, temos de superar a vontade de nos sentirmos necessários: em certas pessoas “boazinhas”, especialmente mulheres, essa é a tentação mais difícil de vencer.) Em geral, parecem ter tempo de sobra; ficamos a pensar de onde vem esse tempo. Depois de reconhecer a primeira dessas novas criaturas, você reconhecerá com muito mais facilidade a segunda. E tenho a forte suspeita (mas como vou saber com certeza?) de que elas mesmas se reconhecem umas às outras de modo imediato e infalível, por cima de todas as barreiras de cor, sexo, classe social, idade e até mesmo de credo. Nesse sentido, santificar-se é como entrar numa sociedade secreta. No mínimo, no mínimo, deve ser uma coisa extremamente divertida.
Mas você não deve imaginar que as novas criaturas são todas “iguais” no sentido comum da palavra. Muitas coisas que eu disse neste último livro podem levá-lo a supor que assim seja. Para nos tornarmos novas criaturas, temos de perder o que agora chamamos de “nós mesmos”. Temos de sair de nós mesmos e entrar em Cristo. A vontade dele tem de ser a nossa e temos de pensar seus pensamentos; temos de “ter a mente de Cristo”, como diz a Bíblia. E, se Cristo é um só e tem de estar “dentro” de todos nós, acaso não ficaremos todos iguais? Parece que sim, com certeza; mas, na verdade, não é assim.
Neste caso, é difícil encontrar um exemplo que ilustre aquilo de que se trata, pois não existem duas coisas que guardem entre si uma relação semelhante à que o Criador tem com uma de suas criaturas. Mas vou apresentar, com certa hesitação, dois exemplos extremamente imperfeitos que talvez nos dêem uma vaga idéia da verdade. Imagine um bando de pessoas que sempre viveu na mais completa escuridão. Você chega e tenta explicar-lhes como é a luz. Pode tentar dizer-lhes que, se eles saírem na luz, a mesma luz incidirá sobre eles todos, eles a refletirão e assim se tornarão o que chamamos de “visíveis”. Não seria perfeitamente possível que eles imaginassem que, como todos receberiam a mesma luz e reagiriam a ela do mesmo modo (ou seja, a refletiriam), ficariam todos com a mesma aparência? Mas você e eu sabemos que, na verdade, a luz mostra ou evidencia o quanto todos eles são diferentes. Ou senão imagine uma pessoa que não conhecesse o sal. Você lhe dá uma pitada para experimentar e ela sente um sabor específico, forte e pungente. Você então lhe diz que, no seu país, as pessoas usam o sal como tempero de todos os pratos. Não poderia ela responder: “Mas, nesse caso, todos os seus pratos devem ficar exatamente com o mesmo gosto, pois o sabor desse pó branco que você me deu é tão forte que deve matar todos os outros sabores.” Porém, você e eu sabemos que o sal tem um efeito diametralmente oposto. Longe de “matar” o sabor do ovo, da dobradinha e do repolho, ele na verdade o realça. Os alimentos só mostram seu verdadeiro sabor quando você lhes acrescenta o sal. (E claro que, como eu disse, esse exemplo não é muito bom, pois, no fim das contas, de fato é possível abafar os outros sabores pelo excesso de sal, ao passo que o sabor de uma personalidade humana não pode ser abafado pelo excesso de Cristo. Estou me esforçando ao máximo.)
O que acontece com Cristo e conosco é algo semelhante a isso. Quanto mais tiramos do caminho aquilo que agora chamamos de “nós mesmos” e deixamos que ele tome conta de nós, tanto mais nos tornamos aquilo que realmente somos. Ele é tão grande que milhões e milhões de “pequenos Cristos”, todos diferentes, não serão suficientes para expressá-lo plenamente. Foi ele que os fez a todos. Ele inventou — como um escritor inventa os personagens de um romance – todos os homens diferentes que vocês e eu devemos ser. Nesse sentido, nossos verdadeiros seres estão todos nele, esperando por nós. De nada vale procurar “ser eu mesmo” sem ele. Quanto mais resisto a ele e tento viver sozinho, tanto mais me deixo dominar por minha hereditariedade, minha criação, meus desejos naturais e o meio em que vivo. Na verdade, aquilo que chamo com tanto orgulho de “eu mesmo” é simplesmente o ponto de encontro de miríades de cadeias de acontecimentos que não foram iniciadas por mim e não poderão ser encerradas por mim. Os desejos que chamo de “meus” são meramente os desejos vomitados pelo meu organismo físico, incutidos em mim pelo pensamento de outros homens ou mesmo sugeridos a mim pelos demônios. Ovos, álcool e uma boa noite de sono: eis aí a verdadeira origem da minha decisão de beijar a moça sentada à minha frente na cabine do trem, decisão que, para fazer uma vênia a mim mesmo, considero pessoalíssima e maduramente refletida. A propaganda será a verdadeira origem de minhas idéias políticas, que considero próprias e específicas. Em meu estado natural, não sou tanto uma “pessoa” quanto gosto de pensar que sou: a maior parte daquilo que chamo de “eu” pode ser facilmente explicada por outros fatores. E só quando me volto para Cristo, quando me entrego à personalidade dele, que começo a ter uma verdadeira personalidade minha.
No começo eu disse que há Personalidades em Deus. Agora vou mais longe e afirmo que em nenhum outro lugar há personalidades verdadeiras. Você não terá um eu verdadeiro enquanto não entregar a ele o seu eu. A igualdade ou semelhança existe sobretudo entre os mais “naturais” dos homens, não entre os que se rendem a Cristo. Quão monótona é a semelhança que iguala todos os grandes tiranos e conquistadores; quão gloriosa é a diferença dos santos!
Mas o eu precisa ser entregue de verdade. Você tem, por assim dizer, de lançá-lo fora “às cegas”. Cristo de fato lhe dará uma personalidade nova, mas não é por causa disso que você deve buscá-lo. Enquanto estiver preocupado com sua personalidade, você não estará caminhando na direção dele de modo algum. O primeiro passo consiste em procurar esquecer completamente de si mesmo. Seu novo eu, seu eu verdadeiro (que é de Cristo e também é seu, e é seu justamente porque é dele) não surgirá enquanto você o estiver procurando. Só surgirá quando o objeto de sua procura for ele. Acaso isso parece estranho? Saiba que o mesmo princípio vigora em assuntos muito mais terrenos. Mesmo na vida social, você jamais causará boa impressão a outras pessoas enquanto não parar de pensar na impressão que está causando. Mesmo na literatura e na arte, ninguém que se preocupe especificamente com a originalidade poderá jamais ser original; ao passo que, se você tentar falar a verdade (sem ligar a mínima a quantas vezes a mesma verdade já foi declarada no passado), nove vezes em dez será original sem percebê-lo. Esse princípio rege a vida inteira, do começo ao fim. Entregue-se, pois assim você encontrará a si mesmo. Perca a sua vida para salvá-la. Submeta-se à morte, à morte cotidiana de suas ambições e dos seus maiores desejos e, no fim, à morte do seu corpo inteiro: submeta-se a ela com todas as fibras do seu ser, e você encontrará a vida eterna. Não guarde nada para si. Nada que você não deu chegará a ser verdadeiramente seu. Nada que não tiver morrido chegará a ser ressuscitado dos mortos. Se você buscar a si mesmo, no fim só encontrará o ódio, a solidão, o desespero, a fúria, a ruína e a podridão. Se buscar a Cristo, o encontrará; e, junto com ele, encontrará todas as coisas.
FIM
[1] Do verbo to beget: gerar, originar. (N. doT.)
[2] No original, “1960”. O objetivo do autor era mostrar que Deus está acima dos limites do tempo, c para ele não há o passado e o futuro como os conhecemos. Como os textos foram escritos na década de 1940, o ano de 1960 era uma referência de futuro. (N. do R. T.)
[3] Esse comportamento corporativo pode ser, evidentemente, melhor ou pior que o comportamento individual.
Alimente sua alma com mais:
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Uma resposta em “Além da Personalidade ou Os Primeiros Passos na Doutrina da Trindade”
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