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Padre Henri-Dominique Gardeil, O.P.
1952-1953
Até o presente, consideramos o raciocínio do ponto de vista de vista de sua estrutura lógica, independentemente do valor das proposições que ele mobiliza. Mas essa operação também pode ser considerada em seu conteúdo, em sua matéria, ou seja, segundo a certeza de suas proposições. Vista nessa perspectiva, a demonstração pode se apresentar a nós de duas formas principais: no caso em que as premissas do silogismo em questão são certas, tem-se o que se chama silogismo demonstrativo ou científico; no caso em que essas premissas são simplesmente prováveis, tem-se um silogismo dialético ou provável, sendo que as mesmas leis formais são aplicadas em ambos os casos.
Aristóteles, que analisara as regras formais do silogismo nos Primeiros Analíticos, consagrou seus Segundos Analíticos ao estudo do silogismo demonstrativo. Este livro, que é um dos mais bem acabados de sua obra, é ao mesmo tempo como que o centro do Organon, a lógica tendo, como objeto essencial, a constituição de uma teoria da ciência demonstrativa; ideal jamais abandonado aqui. Sabe-se que são Tomás escreveu um comentário a essa obra (cf. sobretudo 1, 1. 1-25) . Encontra-se também uma interessante exposição no Cursus de João de São Tomás (Logica, IIª pars, 9. 24-25).
§ I. A NATUREZA DA DEMONSTRAÇÃO
A partir de Aristóteles, a filosofia tradicional reteve duas definições da demonstração: a primeira, pela causa final; a segunda, que se liga à precedente, por sua causa material ou por seus elementos constitutivos. (cf. APÊNDICE I, abaixo)
1. Definição pela causa final
A demonstração é essencialmente um silogismo, e um silogismo que conduz à ciência.
Demonstratio est syllogismus faciens scire. [“A demonstração é o silogismo que faz saber (scire)”.]
É, portanto, a noção de ciência ou de “saber” [“saber”] que comanda a própria noção de demonstração. Ora, a ciência é definida, de maneira geral, por Aristóteles, como o conhecimento pelas causas.
Scire est cognoscere causam propter quam res est, quod hujus causa est, et non potest aliter se habere. [“Saber é conhecer a causa em razão da qual a coisa é, que é a causa dela, e que não pode ser de outro modo.”]
Como se trata de noções absolutamente essenciais ao aristotelismo, nós voltaremos, com algumas precisões, a essas definições da ciência e de seu instrumento próprio, o silogismo demonstrativo (cf. Aristóteles, II Anal., 1, c. 2, 71 b 9. Comentário de Santo Tomás, 1, 4, n. 2).
a) O termo ciência adquiriu, entre os modernos, um significado ao mesmo tempo mais geral e mais vago: poder-se-ia praticamente estender seu alcance a todo o conhecimento metódico, organizado e dotado de grau suficiente de certeza. Nos antigos, scientia pode ter, algumas vezes, seu sentido ampliado; mas, no aristotelismo, deve ser restrito, como já dissemos, a um objeto muito mais limitado e preciso, o conhecimento pelas causas: “Estimamos possuir a ciência de uma coisa de maneira absoluta, e não à maneira dos sofistas (de maneira puramente acidental), quando acreditamos que conhecemos a causa pela qual a coisa é, quando nós sabemos que essa causa é aquela causa da coisa, e, ademais, não é possível que a coisa seja de modo diverso do que ela é”.
De acordo com esse texto, o conhecimento científico suporia três condições: o conhecimento da causa; a percepção de sua relação com o efeito ou de sua aplicação a este e, consequentemente, a necessidade da coisa que se encontra causada e que não pode ser de outro modo senão como ela é.
O que é que se deve entender aqui exatamente pelo termo “causa”? Aquilo que geralmente se quer significar com ele. A causa é aquilo que faz uma coisa ser, quod dat esse rei alterius, [“que dá ser a outra coisa”] e isso se produz nas quatro linhas clássicas de causalidade. Se observarmos isso mais de perto, notaremos que a causa designa, em primeiro lugar, um elemento ontológico objetivo; ela é aquilo que faz ser, mas que, considerada em sua relação com a inteligência, passa a ter ao mesmo tempo valor de razão explicativa. E por esse viés que a causa intervém na demonstração: uma coisa é demonstrada quando se percebe a razão de seu ser.
O caráter próprio desse conhecimento pela causa é o de levar ao necessário. Nessa concepção, o contingente como tal, ou aquilo que não é senão provável, não entra como objeto da ciência, o qual, por esse fato, se vê muito restringido. As ciências da natureza, em grande parte, lhe escapam, e só lhe restam, em seu conjunto, o domínio das matemáticas e, em nível superior, o da metafísica.
b) Vê-se agora por que o silogismo é o procedimento lógico que combina mais exatamente com a ciência. A ciência é o conhecimento pela razão de ser. Ora, fazer um silogismo não é outra coisa senão justificar, por um termo médio explicativo, o pertencimento de um predicado a um sujeito, ou seja, explicar pela causa. A ciência aristotélica é essencialmente composta de silogismos que conduzem a conclusões necessárias, seguindo um processo de causalidade a um só tempo metafísico e lógico.
2. Definição pela causa material
Os elementos de que uma coisa é constituída dependem do fim dela. Se uma casa é construída com certos materiais, é porque ela é destinada a nos abrigar das intempéries. A natureza dos elementos do silogismo demonstrativo se vê semelhantemente determinada por sua meta: conduzir a conclusões científicas ou necessárias. Disso se segue a definição de Aristóteles que precisa as condições de tal silogismo:
Demonstratio est syllogismus constans ex veris, primis, immediatis, prioribus, notioribus, causisque conclusionis. [“A demonstração é o silogismo composto de verdadeiros, primeiros, imediatos, anteriores, mais conhecidos e causas da conclusão”]
Sem adentrar na explicação detalhada dessas condições, que retomaremos mais adiante, digamos simplesmente que as três primeiras delas (veris, primis, immediatis) se referem imediatamente ao caráter de verdade que o raciocínio demonstrativo deve ter, ao passo que as três últimas condições (prioribus, notioribus, causis-que) interessam à anterioridade das premissas sobre a conclusão.
§ II. OS ELEMENTOS DA DEMONSTRAÇÃO
O primeiro capítulo dos Segundos Analíticos é consagrado ao estudo daquilo que é necessário conhecer antes da demonstração, de praecognitis (dos pré-conhecidos), e frequentemente Aristóteles retorna a esse assunto no decorrer desse livro. Antes de precisar com ele a natureza desse pré-conhecimento, notemos três coisas:
a) Pode-se tratar do pré-conhecimento dos elementos necessários para que haja demonstração (e é disso que se trata aqui), ou do pré-conhecimento da conclusão (a conclusão é conhecida virtualmente nos princípios, antes de o ser atualmente no final da demonstração.
b) Há dois modos possíveis de pré-conhecimento, como, ade-mais, de todo conhecimento: o pré-conhecimento da natureza de uma coisa, quid sit [o que é], e o de sua existência an sit [se é] (quia est [porque é ]).
c) Como toda demonstração consiste em atribuir uma propriedade (passio propria, paixão própria) a um sujeito (subjectum) por meio de premissas que desempenham o papel de princípios (principia), deve-se colocar a questão do pré-conhecimento a cada um desses elementos. Trataremos sucessivamente do pré-conhecimento do sujeito, da propriedade e dos princípios; depois amarraremos a este último ponto tudo o que Aristóteles disse sobre os princípios nos Segundos Analíticos (Cf. APÊNDICE I).
1. O sujeito
Para Aristóteles, devemos conhecer ao mesmo tempo, do sujeito da demonstração, que ele é, an est, e o que ele é, quid est. Com efeito, por um lado, no início de uma investigação científica não é colocada a questão da existência do sujeito do qual se quer conhecer as propriedades: ela é pressuposta. Por outro lado, deve-se conhecer a natureza desse sujeito, o que ele é, sem o que jamais se poderia conhecer a natureza do termo médio, e, consequentemen-te, jamais se poderia proceder à demonstração. A determinação de uma propriedade supõe, então, conhecidas a existência e a natureza do sujeito ao qual ela pertence. Isso é o que afirma Santo Tomás (II Anal., 1, 1. 2, n. 3).
O sujeito, por sua parte, tem uma definição, e seu existir não depende da propriedade, dado que ele mesmo já é conhecido anteriormente ao existir de sua propriedade nele. Segue-se disso que se deve saber previamente do sujeito “o que ele é” e “que ele existe”.
2. A propriedade
É o que se atribui ao sujeito da demonstração, ou seja, o predicado da conclusão. Notemos que “propriedade”, aqui, deve ser tomada em seu sentido preciso; trata-se do proprium, predicável de Aristóteles, aquilo que pertence como próprio e necessariamente a uma natureza. Na lógica aristotélica, a demonstração tem um papel preciso e relativamente limitado: manifestar o proprium das essências das quais se supõe conhecida a definição. O que devemos conhecer da propriedade antes da demonstração? Não se pode, no sentido pleno destas palavras, conhecer nem sua existência como propriedade desse sujeito, nem sua natureza, posto que ambas são fundadas no sujeito e que a atribuição ao sujeito é justamente o que está em questão. É necessário, entretanto, ter alguma noção da propriedade, sem o que não se poderia falar dela, ou seja, é necessário possuir a seu respeito uma certa definição nominal, quid nominis (cf. Santo Tomás, ibidem).
Da propriedade, ao contrário, pode-se saber “o que ela é”, porque, como provado na Metafísica, os acidentes têm, de certa maneira, uma definição. Quanto ao “existir” da propriedade ou de qualquer acidente, é um “existir” em um sujeito, o que é concluído na demonstração. Não se pode, portanto, conhecer o existir de maneira antecedente, mas somente a natureza da propriedade.
Santo Tomás precisa adiante que esse pré-conhecimento do quid est de uma propriedade é somente pré-conhecimento do quid nominis, não podendo a essência de uma propriedade ser perfeitamente conhecida senão em sua pertença ao sujeito.
3. Os princípios
São as verdades que, na demonstração, são a razão da atribuição do predicado ao sujeito. Logo, não se trata propriamente de saber o que elas são, já que não se define uma enunciação, mas somente se elas são, ou, mais exatamente, se são verdadeiras (cf. Santo Tomás, ibidem).
As coisas complexas não se definem. De “homem branco” não há definição, muito menos uma enunciação. Resulta dai que, sendo o princípio uma enunciação, não se pode saber previamente dele “que ele é”, mas somente que “ele é verdadeiro”.
Agrupemos aqui, brevemente, as conclusões mais importantes dos Segundos Analíticos sobre os princípios. Por princípios, entendem-se inicialmente as duas premissas de cada demonstração silogística; mas é de se observar que Aristóteles e são Tomás também dão a esse termo um sentido mais geral; podem ser chamados de princípios as verdades comuns contidas nas premissas e, em outra ordem, a definição do termo médio.
a) As propriedades dos princípios
A classificação e a simples enumeração dessas propriedades mantêm-se um pouco incertas. Eis aqui o que parece estar mais bem estabelecido: Em si mesmos, os princípios devem ser:
– verdadeiros, pois a ciência é um conhecimento verdadeiro e não se podem obter conhecimentos verdadeiros de princípios que não o sejam;
– imediatos, quer dizer, conhecidos sem termos médios.
Por si, a demonstração ideal procede de princípios evidentes por si mesmos, pois não se pode remontar indefinidamente na ordem dos princípios e é necessário que se pare em princípios primeiros, indemonstráveis. Ademais, Aristóteles reconhecia frequentemente que, entre esses princípios verdadeiramente imediatos e a conclusão a demonstrar, podem intercalar-se verdades intermediárias que tiram o seu valor das verdades primeiras. Mas sempre, definitivamente, é necessário que se possa elevar-se ao imediato. Notemos que a qualificação de per se notis (conhecidos por si), que se atribui aos princípios, reconduz à própria qualificação de imediatez. Uma proposição per se nota é uma proposição cuja verdade se torna manifesta pela simples apreensão de seu sujeito e de seu predicado, ou seja, a qual é definitivamente imediata; – necessários, porque, sendo a ciência para Aristóteles o conhecimento certo ou necessário, não pode decorrer senão de premissas igualmente necessárias.
Com relação à conclusão, os princípios devem ser:
– anteriores (ex prioribus); trata-se aqui de anterioridade de natureza ou formal;
– mais conhecidos (notioribus); não se pode demonstrar evidentemente o mais conhecido pelo menos conhecido;
– causas da conclusão (causis); trata-se, como vimos, de uma propriedade necessária das premissas do silogismo.
b) Multiplicidade e ordem dos princípios
Pode haver, acima de uma mesma demonstração, toda uma hierarquia de princípios explícitos e implícitos. Pode-se colocar a questão da ordem e das relações destes princípios entre si e em relação às demonstrações.
Uma primeira distinção é a dos princípios próprios e princípios comuns. Os princípios próprios são os que convêm imediatamente a uma demonstração dada: esses são os verdadeiros princípios, praticamente as premissas. Os princípios comuns são aqueles que, por causa de sua generalidade, podem convir a muitas demonstrações; em regra geral, são os princípios mais elevados que comandam, do alto, os silogismos.
Entre esses princípios comuns, deve-se colocar à parte a notável categoria daqueles que são comuns a todas as demonstrações, a saber, a todas as atividades do pensamento. São eles os axiomas denominados “propositiones”, “maximae propositiones”, “dignitates” (cf. II Anal., I. 1.5, n. 6-7); na lição antes citada, nos foi proposto o exemplo do princípio de não contradição: “affirmatio et negatio non sunt simul vera”. [“A afirmação e a negação não são simultaneamente verdadeiras”.] Os princípios gerais da metafísica, as proposições imediatas ou per se notae, definidas anteriormente, entram nessa categoria que são Tomás caracteriza assim: “toda proposição cujo predicado está implicado na noção do sujeito é, em si mesma, imediata e conhecida por si… qualibet propositio cujus praedicatum est in ratione subjecti est immediata et per se nota quantum est in se”.
As proposições supremas também são divididas em per se nota omnibus e per se nota solis sapientibus. [“Conhecidas por si, por todos” e “conhecidas por si unicamente pelos sábios”.] As primeiras são princípios muito simples, como o princípio de não contradição, cujos termos são conhecidos necessariamente por todos e são, portanto, evidentes para todo espírito. As segundas são formadas de termos mais técnicos, cuja conveniência não é manifesta senão quando se conhece a definição deles. Notadamente, esse seria o caso de alguns postulados matemáticos.
Em todas essas questões, Aristóteles e Santo Tomás colocam-se quer a favor da hipótese de uma única demonstração determinada, quer daquela hipótese de todas as demonstrações que poderiam constituir uma ciência. Aliás, essas duas considerações se completam, já que a ciência não é senão um conjunto de demonstrações (cf. APÊNDICE II)
§ III. AS ESPÉCIES DE DEMONSTRAÇÃO
Nas páginas precedentes, vimos sobretudo a demonstração rigorosa ou perfeita, ideal que não é atingido senão raramente. Con-tudo, Aristóteles e são Tomás concedem ainda a certos raciocínios menos perfeitos a denominação de demonstração (ARISTÓTELES, II Anal., 1, c. 13, 78 a 21; S. TOMÁS, I, 23-25). Nessas passagens, eles fazem apelo a uma dupla distinção que permite classificar as diversas espécies de demonstrações.
1. Demonstração propter quid e quia
A demonstração propter quid é aquela da qual praticamente falamos até aqui, ou seja, aquela que faz conhecer a razão do pertencimento de uma propriedade a um sujeito. Tal demonstração é sempre a priori ou pela causa. Demonstra-se dessa maneira, por exemplo, que o homem tem a risibilitas (risibilidade) porque ele é racional, ou que Deus é eterno porque é imutável, a imutabilidade sendo a razão própria da eternidade.
A demonstração quia est, sem nos mostrar a razão da conclusão reconhecida, nos assegura, entretanto, quanto a sua verdade. Distinguem-se duas espécies de demonstrações quia est.
2. Demonstração quia a priori e a posteriori
a) A demonstração quia a posteriori é aquela na qual se demonstra uma causa a partir de seu efeito. É importante salientar que essa demonstração não é rigorosa, se não for feita per effectum convertibilem (com efeito convertível), isto é, se se podem transpor os extremos e o termo médio, pois eles têm a mesma extensão. O exemplo de Aristóteles e de Santo Tomás é o seguinte: “os planetas são próximos porque não cintilam”.
Omne non scintillans est prope. Planeta sunt non scintillantes. Ergo planetae sunt prope. [“Tudo o que não cintila é próprio. Os planetas não são cintilantes. Logo, os planetas são próximos”.]
Fundamentando-se na experiência, concluiu-se que os planetas estão próximos porque não cintilam. É verdade, mas tal silogismo não é fundado na razão, pois, na física aristotélica, não é a não cintilação que é a razão da proximidade dos planetas, mas, ao invés disso, é a proximidade que explica a não cintilação, de sorte que, em um silogismo propter quid, é necessário dizer:
Quod prope est non scintillat. Atque planetae sunt prope. Ergo planetae non sunt scintillantes. [“O que é próximo, não cintila. Os planetas são próximos. Logo, os planetas não são cintilantes”.]
b) A demonstração quia a priori é aquela em que se demonstra a existência de um fato ou de uma verdade, não pela causa imediata, mas por uma causa mais elevada, a qual é impotente para nos dar a razão explicativa própria. São Tomás propõe este exemplo: “uma parede não respira porque não é um animal”, raciocínio que se desenvolve no seguinte silogismo de segunda figura:
Omne respirans est animal. Atqui nullus paries est animal. Ergo nullus paries respiret. [“Tudo o que respira é animal. Ora, nenhuma parede é animal. Logo, nenhuma parede respira”.]
Supõe-se que o termo médio “animal” não seja a razão própria da respiração; há animais, como os peixes, por exemplo, que não respiram. Para haver uma verdadeira demonstração propter quid, seria preciso fazer intervir o verdadeiro termo médio razão; dizer por exemplo: as paredes não respiram porque não têm pulmões”. O que acabamos de dizer dos modos de demonstração se resume no quadro seguinte:
Dem. a priori Dem. a posteriori |
per causam proximamper causam remotamper efectum |
propter quid quia est |
Observação
Aristóteles e Santo Tomás consideram à parte o caso que retomaremos mais tarde, em que as demonstrações de ciências diferentes convergem num mesmo fato, a ciência superior demonstrando o propter quid e a ciência inferior, o quia. Por exemplo, a medicina prova experimentalmente que as feridas circulares cicatrizam mais lentamente, o que, supõe-se então, a geometria pode demonstrar a priori.
A CIÊNCIA
Já falamos brevemente sobre a ciência, a propósito da demonstração. Sendo essas duas noções solidárias, então devemos voltar a esse assunto para tratá-lo em toda a sua amplitude. É de notar que, a partir de agora, não consideraremos mais somente a conclusão particular de um dado silogismo, este que é como que o elemento da ciência, mas sobretudo o conjunto das demonstrações que constituem uma disciplina científica e, ainda mais geralmente, o sistema total das ciências.
Uma ciência pode ser considerada de dois pontos de vista diferentes: seja objetivamente, como o desenvolvimento das proposições que a constituem, seja subjetivamente, ou como habitus, na medida em que ela é uma disposição ou um aperfeiçoamento de nossa inteligência relativamente a certo objeto. Os modernos, quando falam de ciência, consacra ar a os anti os a usivamente o
primeiro desses aspectos, enquanto, para os antigos, a consideração do hábito não tinha interesse menor. Ademais, essas duas noções da ciência se correspondem, sendo a ciência uma percepção obje. tiva das conclusões, como o próprio hábito, um efeito da demons-tração.
§ I. O LUGAR DA CIÊNCIA ENTRE OS HÁBITOS INTELECTUAIS
Dissemos que a ciência, considerada subjetivamente, é um hábito.
a) O que é um hábito?
Chama-se de hábito uma disposição de uma potência da alma em relação a um fim buscado pelo sujeito, in ordine ad finem. Dessa relação essencial com o fim segue-se que o hábito é necessariamente uma modificação boa ou má: uma disposição orientada para o fim autêntico é boa; caso contrário, ela é má. Dadas essas precisões, ser-nos-á possível apreender o sentido da definição clássica do hábito:
dispositio secundum quam aliquis disponitur bene vel male. [“A disposição segundo a qual algo está bem ou mal disposto”.]
Do ponto de vista predicamental, o hábito pertence à categoria da qualidade, da qual ele é a primeira das quatro espécies (habitus, potentia, passibiles qualitates, figura). Notemos ainda que os hábitos podem encontrar-se em diversas potências da alma: apetite sensível, vontade, inteligência. Evidentemente, aqui estão em questão apenas os hábitos que têm como sujeito a inteligência, os hábitos intelectuais.
Aristóteles enumerou cinco deles, três especulativos (inteligência, ciência, sabedoria) e dois práticos (prudência e arte). Esses dois grupos de hábitos distinguem-se pelo fim que almejam: os hábitos especulativos têm como fim o conhecimento puro, enquanto os hábitos práticos são ordenados para a ação. Falemos, inicialmente, dos segundos.
b) Hábitos práticos
A prudência distingue-se da arte por ter como matéria a atividade imanente ou moral, os atos humanos: ela é a regra desses atos (recta ratio agibilium); a arte é o conhecimento racional e a regra da atividade exterior ou prática (recta ratio factibilium).
c) Hábitos especulativos
A inteligência é a apreensão imediata dos princípios. Como já sabemos, ela não é o resultado da ciência, mas se encontra no próprio princípio desta. A ciência e a sabedoria são igualmente hábitos que nos dispõem ao conhecimento pela causa, mas enquanto a ciência demonstra pela causa própria e imediata, a sabedoria remonta até as causas primeiras. Todas essas distinções são bem precisadas neste texto de Santo Tomás (ST II-I, q. 57, a. 2):
A virtude intelectual especulativa é aquela que aperfeiçoa o intelecto especulativo na consideração do verdadeiro, o que é sua boa obra. Ora, o verdadeiro pode ser alcançado de duas maneiras: ou enquanto conhecido por si próprio, ou enquanto conhecido por um outro. O que é conhecido por si tem o lugar de princípio e encontra-se, assim, apreendido imediatamente pela inteligência. E por isso que o hábito que aperfeiçoa a inteligência com relação a tal apreensão é chamado “inteligência”, no sentido de hábito dos princípios. Quanto ao verdadeiro que é conhecido por outro, ele não é imediatamente apreendido pela inteligência, mas por uma investigação da razão, e tem o lugar de termo final. E isso pode se produzir de duas maneiras diferentes: em parte, de tal maneira que ele seja o último em um gênero particular (de conhecimento); em parte, de maneira que ele seja termo último de todo o conhecimento humano (..). Neste último caso tem-se a “sabedoria”, a qual considera as causas mais elevadas (…). Em relação ao que é o último em tal ou tal gênero das coisas conhecíveis, é a “ciência” que aperfeiçoa a inteligência.
Ciência, como se vê, é tomada nessa classificação segundo a sua significação mais restrita, como a demonstração pelas causas inferiores e próximas; nesse sentido, as matemáticas e a física são ciências. A sabedoria filosófica superior, a metafísica, é, aqui, posta à parte da ciência. Lembremos que Aristóteles muitas vezes atribui ao termo “ciência” uma extensão bem maior, de sorte que a metafísica, que é também um conhecimento pelas causas (pelas causas supremas), pode reivindicar o qualificativo de ciência.
§ II. PRINCÍPIO DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS
1. Ideia geral da distinção das ciências para Aristóteles
Como já dissemos, para Santo Tomás as ciências não se distinguem, a princípio, pela diferença material dos seres que estudam, mas segundo o ponto de vista que é visado nesses seres. Essa é a tese geral que se exprime quando se afirma que as ciências, como também todos os hábitos, são especificadas por seu objeto formal. Dito de outra maneira, as ciências são como organismos intelectuais que podem se reportar a coisas materialmente muito diversas, mas todas abordadas em dado aspecto. Inversamente, um mesmo objeto material pode ser considerado a partir de pontos de vista diferentes por ciências diferentes. Assim, o “adunco” do exemplo de Aristóteles [nariz aquilino, no caso] é, em sua curva, objeto da geometria, enquanto, do ponto de vista de sua compleição física, é objeto da física.
É de notar que a tradição filosófica, mesmo a escolástica, não continuou sempre fiel a esse princípio. Os modernos, sob a influência de Wolff, dividiram a metafísica em ontologia (ciência do ser), teodiceia (ciência da alma) e cosmologia (ciência do mundo). Essas distinções certamente não carecem de fundamento, mas tendem a substituir, na divisão da filosofia, pontos de vista de separação material por diferenças formais de objetos. Assim, ciência e filosofia perdem algo da forte estrutura racional que recebiam na sistematização precedente.
2. Questão de vocabulário
Antes de abordar o problema do fundamento preciso da distinção das ciências, não será inútil colocar às claras algumas dificul dades que provêm do entrecruzamento de dois pontos de vista na doutrina tomista da ciência.
Considerando a ciência em sua estrutura lógica, discernimos nela três elementos constituintes: subjectum (frequentemente designado pela expressão genus subjectum), passio propria e principium. Em última análise, é do princípio, o qual constitui como que o liame lógico do sujeito e do predicado, que provém a especificidade de uma ciência.
Se nos colocamos na linha do hábito, encontramos diante de nós o objeto, objeto material, se se trata da realidade considerada em tudo o que ela é, objeto formal quando se retém o aspecto particular sob o qual a realidade é alcançada. Por sua vez, o objeto formal se subdivide em objeto formal quod (ratio formalis quae attingitur) [“a razão formal que é atingida”] e objeto formal quo (ratio formalis sub qua). [“A razão formal sob a qual”.] O objeto formal quod é, no objeto, o aspecto do próprio ser que é atingido pelo hábito (ens in quantum ens, no caso da metafísica); o objeto formal quo é, vindo da inteligência, o princípio formal que dá a uma ciência sua luz própria. Tomando como exemplo o fato da visão, diremos que o objeto visto (a parede, o céu) representa o objeto material dessa atividade sensorial, que a cor é seu objeto formal quod, enquanto a luz seria seu objeto formal quo. É o objeto formal quo, ou a luz intelectual, que determina, ao se tratar do objeto material, o objeto formal quod. Ele corresponde aproximadamente ao principium do primeiro vocabulário. Não se pode estabelecer um paralelismo tão estrito entre os outros elementos dos dois conjuntos; a passio propria; bem como o subjectum, são marcados pelo objeto formal quod.
3. Fundamento da distinção das ciências
a) As ciências se distinguem, portanto, segundo seu objeto formal quo; dizendo-o de outro modo, sua diversidade procede do espírito e, sob outro ponto de vista, dos princípios que ele encerra (cf. II Anal., 1, 1. 41, n. 10-11).
[Aristóteles] não busca a razão da diversidade das ciências na diversidade de seus sujeitos, mas na de seus princípios. Com efeito, ele diz que uma ciência difere da outra por ter outros princípios… Para que isso seja evidente, convém saber que não é a diversidade material do objeto que diversifica o hábito, mas somente sua diversidade formal. Portanto, como o objeto próprio da ciência é “o que pode ser sabido” (scibile), as ciências não se diferenciam segundo a diversidade material das coisas “que podem ser sabidas”, mas de acordo com sua diversidade formal. Do mesmo modo que a razão formal do visível vem da luz, graças à qual a cor é percebida, assim a razão formal de “o que pode ser sabido” depende dos princípios a partir dos quais a ciência é obtida.
b) A ratio formalis scibilis é tomada, portanto, a partir dos princípios, e daí resulta, em definitivo, a diversidade e a especificidade das ciências. Contudo, os princípios não são, para são Tomás, o fundamento noético último dessa diversidade. Este se encontra na imaterialidade. Portanto, como se pode operar a passagem a esse novo ponto de vista? Santo Tomás o explica no De Trinitate (quest. 5, art. 1):
Importa saber que quando os hábitos ou as potências são distinguidos segundo seus objetos, eles não o são segundo qualquer diferença desses objetos, mas de acordo com aquelas que concernem a esses objetos enquanto tais… Resulta disso que as ciências especulativas devem ser divididas segundo a diferença dos objetos de especulação considerados enquanto tais. Ora, em um objeto de especulação, enquanto ele se refere a uma potência especulativa, há alguma coisa que vem da potência intelectual, e alguma coisa que vem do hábito pelo qual a inteligência encontra-se aperfeiçoada. Da inteligência lhe advém ser imaterial, sendo imaterial esta mesma faculdade… E é assim que, ao objeto de especulação que se refere a uma ciência especulativa, é próprio a ele estar separado da matéria e do movimento ou implicar essas coisas. As ciências especulativas se distinguem, portanto, segundo seu grau de distanciamento da matéria e do movimento.
Vê-se como Santo Tomás passa do “speculabile” ao “immateriale” e, assim, termina por atribuir a diversidade das ciências aos graus de imaterialidade. Uma coisa é tanto mais inteligível, e inteligente, quanto mais ela é imaterial. Assim, o anjo, mais elevado que o homem na ordem da imaterialidade, é também mais inteligível e mais inteligente que ele. Observemos que por imaterialidade não se deve entender tão só precisamente a ausência da matéria física, “carentia materiae” (carência de matéria), mas sobretudo a independência diante das condições que resultam da matéria, “elevatio super conditiones materiae” (elevação acima das condições da matéria): formalmente trata-se da não potencialidade.
§ II. A CLASSIFICAÇÃO ARISTOTÉLICA DAS CIÊNCIAS ESPECULATIVAS
A classificação aristotélica das ciências é dominada pela famosa distinção de três graus de abstração ou de imaterialidade; distinção que se enraiza, como se vê, no que há de mais profundo na vida da inteligência. Ela tem como efeito distribuir as ciências (compreendida aí a sabedoria metafísica) em três grandes classes racionalmente distintas: física, matemática e metafísica. Essa classificação já era aproximativamente a de Platão, e pode-se dizer que ela é comum na história do pensamento. Todavia, no tomismo ela tem uma significação muito precisa, a qual deve ser determinada.
1. Os três graus de abstração da matéria
Podemos considerar nosso objeto de conhecimento segundo três graus de abstração ou de imaterialidade. A cada um desses graus, deixa-se uma certa parte de matéria da qual se abstrai, e ainda se pode conservar outra parte de matéria. Segundo a parte da matéria que se deixa ou a que se conserva, temos duas maneiras de caracterizar cada um dos graus de abstração, a segunda sendo denominada por Santo Tomás de secundum modum definiendi.
Recordemos aqui algumas precisões de vocabulário. Quando Santos Tomas (ST 1, quest. 85, art. 1, ad 2) fala de “materia signata”, “materia sensibilis” e “materia inteligibilis”, o que se deve entender por essas expressões? A materia signata ou individualis (matéria assinalada ou individual) é a matéria enquanto é princípio de individuação (haec caro, haec ossa, esta carne, estes ossos). A materia sensibilis ou communis (matéria sensível ou comum) é a matéria enquanto é princípio das qualidades sensíveis e do movimento. A materia intelligibilis (matéria inteligivel) é a matéria enquanto é sujeito da quantidade e das determinações da ordem da quantidade. Posto isso:
a) Aos três graus de abstração em relação à matéria deixada (ST I, q. 85, a. 1, ad. 2).
– O primeiro esforço da inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentemente dos seres particulares que atingem nossos sentidos. Esse objeto é obtido abstraindo-se “a materia signata vel individuali”: 1° grau de abstração.
– O segundo esforço da inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentemente de suas qualidades sensíveis e de seus movimentos, para não reter nada mais do que suas determinações de ordem quantitativa. Eu abstraio “a materia sensibili et motu”: 2° grau de abstração.
– O terceiro esforço da inteligência abstrativa consiste em considerar as coisas independentemente de todas as condições materiais. Tem-se, agora, o objeto metafísico, o qual é totalmente separado da matéria: 3° grau de abstração.
b) Distinção pela definição (SANTO TOMÁS, Metaph., VI, 1. 1; Comentário ao De Trinitate, quest. 5, art. 1).
Pode-se também caracterizar os graus de abstração de acordo com a matéria que resta e portanto permanece incluída na definição do termo medio. O objeto físico é aquele que não pode existir, “esse”, nem ser definido sem a matéria sensível; ele depende dela “secundum esse et rationem” (segundo o ser e a razão). O objeto matemático é definido sem a matéria sensível, ainda que ele não possa existir fora dela; ele depende dela “secundum esse, non secundum rationem” (segundo o ser e não segundo a razão). O objeto metafísico é definido sem qualquer matéria; ele não depende dela “nec secundum esse nec secundum rationem” (nem segundo o ser nem segundo a razão). Tudo isso está perfeitamente caracterizado neste texto do De Trinitate (q. 5, a. 1):
(…) Há coisas que dependem da matéria quanto à sua existência e quanto ao conhecimento que se pode ter delas: na definição de tais coisas está implicada a matéria sensível e, portanto, elas não podem ser compreendidas sem essa matéria; assim, na definição do homem, é necessário incluir a carne e os ossos. Dessas coisas trata a Física ou Ciência da natureza. Há outras coisas que, embora sejam dependentes da matéria quanto à sua existência, não dependem dela quanto ao conhecimento que se pode ter delas, visto que sua definição não inclui a matéria sensível; assim ocorre com a linha e o número. Dessas coisas trata a Matemática. Há, enfim, outros objetos de especulação que não dependem da matéria em sua existência, porque eles podem existir sem matéria: seja porque jamais eles são na matéria como Deus e o anjo; seja porque em alguns casos eles implicam matéria e não em outros, como a substância, a qualidade, a potência e o ato, o uno e o múltiplo etc. De todas essas coisas trata a Teologia, chamada de “ciência divina” pelo fato de que o mais importante de seus objetos é Deus. Denomina-se, também, Metafísica.
c) Abstração formal e abstração total
Depois de Caetano (De Ente et Essentia, Proemium) e de João de Santo Tomás (Curs. Phil. Log., II.ª Pª, q. 27, a. 1), inúmeros intérpretes modernos precisaram que a abstração, sobre a qual se fundamenta objetivamente a diversidade das ciências, não deve ser entendida como abstração total, isto é, como abstração lógica de um predicável com relação a seus inferiores, mas como abstração formal, a qual distingue as razões formais dos aspectos materiais. As noções abstratas nas ciências têm sim valor de universal em re. lação aos termos de que elas procedem, mas é por sua razão formal objetiva, e não por sua universalidade, que elas são constituídas em um ou outro grau do saber.
d) Modo de abstração próprio a cada grau
Restar-nos-ia mostrar que essa teoria dos graus de abstração, que se apresenta primeiramente como mecanismo mental de certa rigidez, corresponde, em Santo Tomás, a uma atividade do espírito muito mais diversificada. Na realidade, o processo de formação do objeto em cada grau de abstração corresponde a uma atividade muito original; isso é verdade sobretudo no nível metafísico, no qual Santo Tomás, em seu Comentário ao De Trinitate de Boécio (q.5, a. 3), substitui o termo “abstração”, reservado aos graus inferiores do saber, por “separação”. Voltaremos, a seu tempo, a essas importantes distinções (cf. APÊNDICE II. APÊNDICE III).
2. A organização das ciências no quadro dos graus de imaterialidade
A cada um desses graus corresponde, como sabemos, uma das três grandes partes da filosofia: física, matemática e metafísica. Mas, no interior ou nos intervalos desses três grandes estágios do saber, podemos distinguir planos intermediários de inteligibilidade.
a) No interior de cada grau, primeiramente, podem-se distinguir modalidades mais ou menos abstratas; constata-se isso sobretudo no segundo grau, em que são Tomás já discernia um plano geométrico menos abstrato e um plano aritmético mais abstrato. Em nossos dias, sem dúvida seria preciso sobrepor um plano algébrico.
b) Pode-se ainda variar a inteligibilidade das ciências constituindo tipos de intermediários entre os graus de abstração, o que são Tomás, seguindo Aristóteles, chamou de scientiae mediae (ciências intermediárias). Chega-se a ela ao esclarecer o sujeito de uma ciência de grau inferior através dos princípios emprestados de um grau superior de abstração (subalternação). Os antigos propunham os exemplos da perspectiva ou ótica, da música e da astronomia.
Em nossos dias, seria preciso compreender nessa categoria todo o conjunto compreendido sob o nome de física matemática.
As ciências intermediárias são, graças a seus princípios de ordem mais elevada, mais inteligíveis que as ciências que se encontram no nível de seu sujeito. Entretanto, observa são Tomás, essas são sobretudo ciências de grau inferior, “dicuntur esse magis naturales quam mathematicae”, [“Diz-se antes naturais (i.e., ‘físicas’) que matemáticas”] e isso porque a especificação se faz essencialmente pelo termo, e porque o termo dessas ciências intermediárias se encontra no grau inferior.
c) Será necessário acrescentar que, uma vez constituídos os diversos planos de inteligibilidade ou os graus do saber, podem-se distinguir as ciências particulares de cada grau pela divisão do sujeito. A ciência das plantas será, assim, uma subdivisão da física. Tais ciências particulares são ditas “subalternas” em razão de seu sujeito.
d) Metafísica e matemática estão em um grau de inteligibilidade suficientemente elevado para que se possa organizá-las sem muitas dificuldades; o mesmo não ocorre com as ciências da natureza que, permanecendo mais engajadas na matéria, colocam questões mais complicadas. Por isso, iremos examiná-las à parte.
Existe uma ciência física demonstrativa, procedendo a partir das definições e dos princípios das essências naturais, e que busca explicar as propriedades dessas essências. Foi isso que os antigos compreenderam quando empreenderam constituir uma ciência explicativa dos fenômenos da natureza, a philosophia naturalis. Mas, infelizmente, não conhecemos senão de maneira muito imperfeita essas essências naturais que deveriam servir de ponto de partida para nossas demonstrações; isso faz com que essa ciência dedutiva da natureza chegue, na realidade e mais freqüentemente, apenas a generalidades ou a conclusões hipotéticas: os fenômenos observados permanecerão, em sua maioria, fora de suas considerações.
Devemos, por isso, renunciar totalmente a adquirir um conhecimento racional sobre eles? Não, pois em nível inferior podem-se constituir, e de fato foram constituídas, ciências particulares que se aplicam ao detalhe dos fenômenos. O que é preciso notar é que, por um lado, essas ciências não estão em continuidade perfeita com a philosophia naturalis, e que, por outro lado, elas não podem nos dar senão um conhecimento aproximado e relativo da essência das coisas, que permanece sempre velada. As conclusões da física moderna não são, em parte, senão sinais mais ou menos denunciadores da verdadeira natureza das coisas.
e) Considerando todas as observações precedentes, é-nos possível organizar o seguinte esquema que configura a classificação das ciências teoréticas, segundo a filosofia de Santo Tomás:
3° grau de imaterialidade: Metafísica
2° grau de imaterialidade: Matemática e Física matemática
1° grau de imaterialidade: Filosofia da natureza e Ciências da natureza
APÊNDICES – por SANTO TOMÁS DE AQUINO
APÊNDICE I
IX. A DEMONSTRAÇÃO CIENTÍFICA
Os Segundos analíticos têm por objeto a teoria capital na lógica aristotélica da demonstração científica. Das análises ricas mas muito complexas do Comentário de Santo Tomás, destacamos alguns fragmentos.
A. O silogismo demonstrativo
(Segundos analíticos, 1, 1. 4, n. 2-10)
A demonstração científica é essencialmente, para Aristóteles, um silogismo que conduz à ciência. Notar-se-á, no que se segue, que saber (scire) deve ser entendido no sentido estrito que não convém senão ao conhecimento pela causa própria.
2. Deve-se saber a esse propósito que, cada vez que uma coisa é destinada a um fim, a definição pela causa final é a razão da definição pela causa material, e o meio-termo que a prova. Com efeito, se uma casa deve ser de pedra e de madeira, é porque ela é uma cobertura para nos proteger do calor e do frio. Disso se segue que Aristóteles oferece aqui duas definições da demonstração: uma segundo seu fim, o saber; outra, deduzida da precedente, segundo sua matéria.
3. Assim, ele trata desse tema em três pontos: primeiro, define o saber (71 b 9); em seguida, define a demonstração por seu fim, que é o saber (71 b 17); depois, de ambas as definições deduz a da demonstração em função de sua matéria (71 b 19).
Por sua vez, trata da primeira questão em cinco pontos.
Primeiramente, precisa qual saber intenciona definir.
4. A esse propósito, deve-se saber o que se segue. Diz-se que nós sabemos uma coisa pura e simplesmente [simpliciter] quando a sabemos em si mesma. Ao contrário, diz-se que nós a sabemos de certa maneira [secundum quid] quando a sabemos em outra, na qual ela se encontra, seja como uma parte no todo (por exemplo, sabendo o que é uma casa, diz-se de nós que sabemos o que é uma parede), seja como um acidente em seu sujeito (por exemplo, sabendo quem é Corisco, diz-se de nós que sabemos quem vem), seja como um efeito em sua causa (como se disse antes, que sabemos antecipadamente a conclusão por seus princípios), seja de toda maneira análoga: e isso é saber por acidente, dado que, sabendo uma coisa por si, se diz que sabemos o que lhe sucede de qualquer maneira. O Filósofo intenciona, portanto, definir o que é saber pura e simplesmente, e não o que é o saber por acidente; com efeito, esta última maneira de saber é sofística, pois são os sofistas que argumentam assim: conheço Corisco; ora, Corisco vem, logo, conheço quem vem.
5. Em segundo lugar (71 b 10), ele dá a definição do saber puro e simples. Deve-se considerar, a este propósito, que saber uma coisa é conhecê-la perfeitamente, e isso, por sua vez, é apreender perfeitamente a sua verdade, pois é em virtude dos mesmos princípios que uma coisa é e que ela é verdadeira, como é manifesto de acordo com o segundo livro da Metafísica (a, c. 1, 993 b 28-31): portanto, o sábio deve, se tem conhecimento perfeito, conhecer a causa daquilo que sabe. Entretanto, se não conhecesse nada senão essa causa, ele ainda não conheceria o efeito dela atualmente, o que é preciso para conhecer pura e simplesmente, mas só virtualmente, e isso é saber de certa maneira e de certo modo por acidente. Assim, para saber pura e simplesmente, deve-se conhecer igualmente a causação do efeito. Por outro lado, como a ciência é, além disso, um conhecimento certo, e como é impossível conhecer com certeza aquilo que pode ser de outro modo, é preciso que aquilo que se sabe não possa ser de outro modo. Portanto, é porque a ciência é um conhecimento perfeito que Aristóteles diz: “quando estimamos conhecer a sua causa; porque ela é um conhecimento que nos faz saber pura e simplesmente, ele acrescenta: “e que isso é a causa dela”; enfim, porque ela é um conhecimento certo, ele afirma: “e que isso não pode ser de outro modo”.
[…]
7. Em quarto lugar (71 b 15), ele tira este corolário da definição que deu: aquilo do qual se tem pura e simplesmente a ciência deve ser necessário, isto é, não pode ser de outro modo.
8. Em quinto lugar (71 b 16), ele responde a esta questão tácita: “há outro modo de saber além do precedente?” prometendo dizê-lo na sequência. De fato, pode-se igualmente saber pelo efeito, como se verá mais adiante. Diz-se também que se sabe até mesmo, de certa maneira, os princípios indemonstráveis dos quais não há como procurar a causa. Mas o modo próprio e perfeito do saber é aquele que dissemos antes.
9. Aristóteles define em seguida (71 b 17) o silogismo demonstrativo por referência a seu fim que é o saber, e isso em três pontos. Primeiramente, declara que saber é o fim do silogismo demonstrativo, ou seu efeito, dado que o saber manifestamente não é nada senão entender por demonstração a verdade de uma conclusão. Em segundo lugar (71 b 17), ele define o silogismo demonstrativo pelo fim em questão, dizendo que a demonstração é um “silogismo científico, ou seja, que faz saber”. Em terceiro lugar, (71 b 18), explica o termo “científico”, dizendo que é chamado “científico” o silogismo em virtude do qual sabemos, pelo fato de o termos presente no espírito; e isso por medo de que não se entenda por silogismo científico aquele do qual uma ciência faz uso.
10. Enfim, Aristóteles (71 b 19) deduz, do que precede, a definição do silogismo demonstrativo em função de sua matéria… E primeiro indica como a definição da demonstração em função de sua matéria se deduz de princípios postos, ao dizer que, “se saber é o que se disse”, conhecer a causa etc., “necessariamente a ciência demonstrativa”, entendamos aquela que se adquire por demonstração, “procede de proposições verdadeiras, primeiras e imediatas”; dito de outro modo, que não são demonstradas por um termo médio, mas evidentes por si mesmas. São chamadas de “imediatas” por não terem termo médio para demonstrá-las; ao contrário, são chamadas de “primeiras” em referência às outras proposições que por elas são provadas; além disso, “mais conhecidas, anteriores e causas da conclusão”.
B. Os conhecimentos que toda demonstração pressupõe
(Segundos analíticos, 1, l. 2, n. 2-3 e 7)
Encontrando-se a ciência no termo da demonstração, é totalmente necessário que, para aí chegar, seu ponto de partida seja tomado dos conhecimentos que se supunham anteriormente adquiridos. Quais são justamente esses conhecimentos? Isso é o que é precisado aqui.
2. Aquilo cuja ciência é buscada por demonstração é uma conclusão na qual uma propriedade é atribuída a um sujeito, sendo esta conclusão inferida de certos princípios. E, como o conhecimento dos elementos precede o dos compostos, necessariamente, antes de ter o conhecimento da conclusão, é preciso conhecer de certa maneira o sujeito e a propriedade em questão; do mesmo modo, deve-se conhecer prioritariamente o princípio do qual a conclusão é inferida, dado que é ao conhecimento desse princípio que se deve o conhecimento da conclusão.
3. Para cada um desses três elementos (princípio, sujeito e propriedade) um duplo modo de conhecimento preliminar deve ser tratado: “que ele é” e “o que é”. Ora, ele mostrou no livro sétimo da Metafísica (1029 b 22 ss.) que as coisas complexas não se definem. Com efeito, não há definição de homem branco, e muito menos ainda de uma enunciação; assim, o princípio sendo uma enuncia-ção, não se pode, naquilo que a ele concerne, conhecer previamente o que é, mas somente que ele é verdadeiro. Ao contrário, pode-se saber da propriedade o que é, pois, como mostrado no mesmo livro, os acidentes têm, de certa maneira, uma definição; mas, por outro lado, tanto para uma propriedade como para um acidente, ser é ser em um sujeito; portanto, naquilo que concerne à propriedade, não se conhece previamente que ela é, mas somente aquilo que é. Enfim, quanto ao sujeito, ao mesmo tempo, ele tem uma definição e ele é independente de sua propriedade, pois, entende-se que ele seja previamente ao fato de que sua propriedade esteja nele; assim, naquilo que lhe concerne, deve-se conhecer previamente ao mesmo tempo aquilo que é e o que ele é, tanto mais porque é a definição do sujeito e da propriedade que fornece o termo médio da demonstração.
[…]
7. Aristóteles explica agora as razões dessa diversidade: é que a maneira pela qual se revela cada um dos elementos em questão (principio, propriedade e sujeito) não é a mesma. Com efeito, não se trata, em cada caso, de um modo idêntico de conhecimento, pois os princípios são conhecidos pelo ato em que se compõe e se divide; o sujeito e a propriedade, ao contrário, pelo ato em que se apreende aquilo que é. Ademais, isso não se aplica semelhantemente ao sujeito e à propriedade, dado que o sujeito se define independentemente, já que nada de estranho à sua essência entra em sua definição, ao passo que a propriedade se define em dependência do sujeito, que entra em sua definição. Então, dado que seus elementos não são conhecidos da mesma maneira, não há nada de admirável, se o conhecimento prévio deles for diferente.
C. Princípios imediatos da demonstração
(Segundos analíticos, 1, l. 5, n. 6-7)
O estudo dos princípios ocupa um lugar muito grande nos Segundos analíticos, dado que toda demonstração procede de tais ele-mentos. Em última instância, deve-se necessariamente remontar a princípios “imediatos”, isto é, evidentes por si mesmos. E aqui estão as suas espécies.
6. Portanto, Aristóteles diz primeiro que os princípios imediatos do silogismo são de dois tipos. Uns são chamados de “posições”, que não podem ser demonstrados; disso se segue que são ditos “imediatos”; contudo, não é requerido “alguém para ensinar”, ou seja, a quem se deva ensinar uma ciência demonstrativa; e “lhes tenha necessariamente”, quer dizer, os conceba na mente ou lhes de seu assentimento. Os outros são chamados de “dignidades” ou de “proposições supremas”: é preciso necessariamente que quem quer que deva ser ensinado tenha-os na mente e lhes dê seu assentimento. E é claro que existem princípios desse tipo, como se prova no quarto livro da Metafísica (1005 b 12 ss.) quanto a esse princípio que a afirmação e a negação não são simultaneamente verdadeiras; princípio cujo contrário ninguém pode admitir na mente, mesmo se o pronunciar com os lábios. Utilizamos nesse caso os nomes indicados de “dignidades” ou de “proposições supremas”, justamente por causa da certeza com a qual esses princípios permitem manifestar o resto.
7. Para compreender essa distinção, deve-se saber que toda proposição cujo predicado está incluído na noção do sujeito é por si imediata e evidente.
Mas os termos de certas proposições são tais que são conhecidos por todos, assim como o ente e o uno, e todos aqueles que se referem ao ente enquanto ente, pois o ente é a primeira coisa que a inteligência concebe; então, tais proposições devem ser vistas como evidentes, não apenas em si mesmas, mas também para nós; por exemplo: a mesma coisa não pode ao mesmo tempo ser e não ser, e o todo é maior que sua parte. Assim, todas as ciências obtêm esse tipo de princípios da metafísica, à qual cabe considerar o ente puro e simples e aquilo que a ele se reporta.
Há, ao contrário, proposições imediatas cujos termos não são conhecidos por todos; assim, ainda que o predicado esteja incluído na noção do sujeito, entretanto, dado que a definição do sujeito não é conhecida por todos, tais proposições não são necessariamente concedidas por todos. Assim, a proposição “todos os ângulos retos são iguais” é, por si mesma, evidente ou imediata, dado que a igualdade está compreendida na definição de ângulo reto; com efeito, um ângulo reto é aquele que se faz quando uma linha reta cai sobre outra linha reta de modo que, de um lado e do outro, os ângulos se tornem iguais. E por isso os princípios desse tipo são admitidos por meio de uma certa posição.
Há ainda outro caso, o das proposições chamadas de “suposições”. Com efeito, algumas proposições não podem ser provadas a não ser pelos princípios de outra ciência; então, é preciso supô-las na ciência em questão, embora elas sejam provadas pelos princípios de outra ciência. Assim, que se possa traçar uma linha reta de um ponto a outro ponto é suposto pelo geômetra e provado pelo físico, que mostra que entre dois pontos quaisquer há uma linha intermediária.
D. A origem indutiva dos primeiros princípios
(Segundos analíticos, II, l. 20, n. 11)
No esquema aristotélico da ciência, a indução aparece como o processo geral que permite ao espírito elevar-se dos dados particulares dos sentidos aos princípios universais, sobre os quais se apoiarão as demonstrações propriamente ditas. Esse processo pode ser considerado de maneira lógica, como fizemos precedentemente, ou psicologicamente, como é mais o caso aqui. A exposição que se segue terá a vantagem de manifestar que o peripatetismo é por vezes muito mais rico em experiência concreta do que deram a crer algumas fórmulas resumidas, mais fáceis de serem guardadas.
11. Aristóteles mostra aqui, conforme aquilo que ele havia anunciado, como chegamos ao conhecimento dos primeiros princípios, e conclui, pelo que ele acaba de expor, que a percepção dos sentidos funda a lembrança, como foi dito antes, nos animais que recebem das realidades sensíveis as impressões duráveis. A lembrança repetida de uma mesma coisa, aparecida ao menos em casos diversos, funda por sua vez a experiência, não sendo esta, à primeira vista, nada mais que reter aquilo que se desprende de múltiplos fatos guardados na memória. Mas, por outro lado, a experiência exige que se raciocine de alguma maneira sobre esses casos particulares para confrontá-los uns com outros, e isso é próprio da razão; assim, quando se lembra que tal erva curou muitas vezes numerosos indivíduos da febre, diz-se que é um fato da experiência que a erva em questão cura a febre. Contudo, a razão disso não se detém na experiência de casos particulares, mas retém, fixada na alma, o elemento comum que ela experimentou dessa maneira e considera-o sem visar mais nenhum singular; e é esse elemento comum que é tomado como princípio de arte e de ciência. Então, quando um médico se limita a constatar que essa erva curou Sócrates que tinha febre, e Platão, e também outros indivíduos, trata-se de experiência; mas quando ele se eleva a ponto de considerar que tal espécie de erva cura aquele que tem febre, pura e simplesmente, trata-se para ele de uma regra da arte médica. É portanto o que diz Aristóteles: que, como a lembrança funda a experiência, a experiência também ou, o que é bem mais, “o universal fixado na alma” (…) fornece à alma aquilo que é princípio da arte e da ciência.
Em seguida, ele distingue a arte da ciência, como fez igualmente no livro sexto da Ética (1140 a 1-23, SANTO TOMÁS, l.3, n. 1150-1160), em que ele disse que a arte é a justa noção das coisas a produzir. Então, diz ele que, se a experiência fornece algum dado universal relativo à “geração”, isto é, à produção do que quer que seja, por exemplo, a cura, ou os bens da terra, trata-se do domínio da arte. A ciência, como se diz no mesmo contexto (1139 b 19-24, SANTO TOMÁS, l. 3, n. 1144-1146), diz respeito ao necessário, tal como quando se considera de um dado universal concernente às coisas que são sempre as mesmas, os números ou as figuras, por exemplo, estamos no domínio da ciência. E o processo indicado vale para os princípios de todas as ciências e de todas as artes.
E disso Aristóteles conclui que os hábitos dos princípios não nos são dados antecipadamente sob uma forma de algum modo determinada e completa, nem tampouco são adquiridos por nós em um só golpe a partir de hábitos prévios situados em um nível de inteligibilidade mais elevado – como é o caso do hábito da ciência, engendrado em nós graças ao conhecimento anterior dos princípios –, mas, em nós, provêm de percepções sensíveis prévias. E ele dá o exemplo daqueles combates que suscitam a retirada de um exército vencido em fuga; com efeito, se um dos fugitivos de fato para, isto é, se permanece no lugar em vez de fugir, e outro, parando, junta-se a ele, e depois outro, até que se tenha o suficiente de homens unidos para iniciar o combate. Assim, a partir da percepção sensível e da lembrança que se tem de um caso particular, e depois de outro, alcança-se enfim, como foi dito, aquilo que é princípio da arte e da ciência.
APÊNDICE II
III. DIFERENÇA ENTRE A METAFÍSICA E AS OUTRAS CIÊNCIAS
(Metafísica, VI, l. 1, n. 1145-1156)
Santo Tomás, nessa importante lição, coloca-se em dois pontos de vista sucessivos para distinguir a metafísica das outras ciências: 1° ela é a única que considera os princípios do ente enquanto ente; 2° ela os considera à sua maneira própria. De jato, essa dupla divisão exprime apenas imperfeitamente o conteúdo da presente lição, sendo muito complexo o texto comentado. Na primeira parte anunciada, é principalmente o sujeito (diríamos hoje “o objeto da metafísica”) que está em questão; sujeito que, por sua universalidade máxima, se distingue do das outras ciências. Na segunda parte, a atenção se vê de maneira muito imprevista captada pela física, a qual se distingue das ciências práticas (moral e artes), e depois das outras ciências teoréticas (matemáticas e metafísica). A despeito dessas dificuldades, escolhemos essa lição por causa da riqueza de seu conteúdo. Eis aqui as passagens mais características.
A. A metafísica considera os princípios do ente enquanto ente
1145. Aristóteles mostra inicialmente que esta ciência, como as outras, considera os princípios das coisas. Dado, diz ele, que o ser é o seu sujeito – o que foi estabelecido no quarto livro – e que toda ciência deve investigar os princípios e as causas de seu sujeito tomado como tal, é preciso investigar aqui os princípios e as causas dos entes enquanto entes. O mesmo ocorre, acrescenta ele, nas outras ciências. Com efeito, a saúde e a convalescença têm uma causa que o médico busca; nas matemáticas também há princípios, elementos e causas, como as figuras, os números etc., que os matemáticos perscrutam; e de maneira totalmente geral, toda ciência intelectual: (a) quer trate somente dos puros inteligíveis (como a ciência das coisas divinas); (b) quer trate daquilo que é de certa maneira imaginável ou sensível, nas suas realizações particulares; sendo inteligível naquilo que há de universal e sensível à medida que possa ser objeto da ciência, como na matemática e na física; (c) ou ainda, quer ela proceda dos princípios universais às determinações particulares que são o domínio das operações, como nas ciências práticas. Sempre, uma ciência dessa ordem deve tratar das causas e dos princípios das coisas.
[…]
1147. Ele mostra, em seguida, que as outras ciências consideram os princípios e as causas das coisas diferentemente desta. Todas as ciências particulares em questão, diz ele, são acerca de certo gênero de ente, número, magnitude, ou outros; e cada uma trata exclusivamente do “gênero que ela tem como sujeito”, isto é, deste gênero à exclusão de qualquer outro; assim, a ciência que trata do número não trata da grandeza. Com efeito, acrescenta ele, nenhuma delas julga o ente “puro e simples”, ou seja, o ente em toda sua generalidade, tampouco tal ente particular enquanto ente: assim a aritmética não julga o número enquanto ente. Com efeito, considerar seja qual for o ente enquanto ente é próprio do metafísico.
[…]
B. A metafísica trata à sua maneira dos princípios do ente enquanto ente
1152. Tendo os antigos estimado a física como ciência suprema e como aquela que considerava o ente enquanto ente, é por ela, como por aquilo que é o mais manifesto, que Aristóteles começa, mostrando inicialmente em que ela difere das ciências práticas, depois em que ela difere das outras ciências especulativas, e isso nos faz ver que ela tem sua maneira própria…
1° Ele diz, então, inicialmente, que a física não trata do ente puro e simples, mas de um certo tipo de ente, a substância física que tem em si mesma o princípio de seu movimento e de seu repouso; disso se segue que a física não é nem ciência da ação, nem ciência da produção. Com efeito, agir e produzir são coisas diferentes, pois agir é o fato de uma operação que se situa no próprio agente (como escolher, pensar etc.) – as ciências da ação também são chamadas de “ciências morais” –, ao passo que produzir é fazer uma operação que se exerce no exterior para transformar a matéria (como cortar, queimar etc.) – e as ciências da produção são chamadas de “artes mecânicas”.
1153. Que a física não seja uma ciência da produção está claro, dado que o princípio de tais ciências está no produtor, não no objeto produzido, que é uma obra de arte, ao passo que o princípio do movimento das realidades físicas está nessas realidades físicas. Esse princípio das obras de arte, intrínseco ao produtor, é primeiramente a inteligência, inventora primeira da arte; depois, a própria arte, que é uma disposição da inteligência; e, enfim, certo poder de execução, como o poder motor, graças ao qual o artesão executa aquilo que concebe com sua arte. De tudo isso resulta claramente que a física não é uma ciência da produção.
1154. Pela mesma razão, está claro que ela não é uma ciência da ação, pois o princípio de tais ciências está no agente, não nas próprias ações ou nos costumes. Esse princípio é a “prohaeresis”, isto é, a escolha. Com efeito, a ação e a escolha têm o mesmo objeto. Portanto, está claro que a física não é nem ciência da ação, nem ciência da produção.
1155. Consequentemente, se é verdade que toda ciência é relativa à ação ou à produção, ou teorética, resulta disso que a física é teorética, ou seja, especulativa.
1156. 2° Aristóteles mostra agora que a física difere das outras ciências especulativas pelo tipo de definições que ela emprega… depois, enumera as ciências teoréticas na conclusão.
a) Ele trata a questão em três pontos e mostra primeiro qual é o tipo de definição própria à física, dizendo isto: para saber em que as ciências especulativas diferem umas das outras, não se deve ignorar qual é a quididade da coisa e como sua “noção”, isto é, a definição que a significa, deve ser estabelecida em cada ciência, porque buscar a diferença da qual se trata “sem aquilo”, isto é, sem conhecer o tipo que se quer de definições, é perder tempo. Com efeito, sendo a definição o termo médio da demonstração e, consequentemente, o princípio do saber, necessariamente os diversos tipos de definições implicam uma diversidade nas ciências especulativas.
1157. Ora, deve-se saber que certas coisas são definidas como o arrebitado, e outras como o côncavo; a diferença entre os dois casos é que a definição do arrebitado implica a matéria sensível, pois o arrebitado não é nada senão um nariz curvado ou côncavo, enquanto a concavidade se define sem matéria sensível, pois não se introduz na definição do côncavo ou do curvo nenhum corpo sensível, como o fogo, a água etc.; com efeito se diz “côncavo” aquilo cujo meio se flexiona em relação às duas extremidades.
1158. Ora, todas as realidades físicas são definidas à maneira do nariz côncavo, como se vê quanto às partes dos animais – tanto as que são muito diferentes como o nariz, o olho e a face, como as que são semelhantes, como a carne e os ossos – e quanto a cada uma das espécies animais; e o mesmo vale para as partes das plantas (folhas, raiz, casca) e para cada uma das espécies vegetais. Com efeito, nenhuma dessas realidades pode ser definida sem incluir o movimento; ao contrário, cada uma comporta em sua definição a matéria sensível, consequentemente, o movimento, pois toda matéria sensível tem seu movimento próprio. Com efeito, a definição da carne e dos ossos deve compreender o calor e o frio em proporção conveniente, e assim para o restante. Vê-se, com isso, como se investiga a quididade das realidades físicas e como se define na física: considerando a matéria sensível.
1159. É manifesto, portanto, segundo o que precede, que a física é uma ciência teorética, tendo seu tipo original de definições.
1160. b) Aristóteles mostra, no presente, o que é próprio à matemática, precisando que ela também é uma ciência teorética.
Com efeito, é claro que ela não é nem ciência da ação, nem ciência da produção, dado que ela considera aquilo que é sem movimento e, sem movimento, não há ação nem produção possíveis. Mas resta saber se as coisas que a matemática considera são realmente imóveis e separadas da matéria. Com efeito, alguns, isto é, os platônicos – como se viu, no livro terceiro e no quarto – fizeram dos números, das grandezas e de outros objetos matemáticos, entes separados, intermediários entre as ideias e o sensível. Trata-se de uma questão que ainda não foi definitivamente determinada por Aristóteles, mas que o será mais adiante.
1161. Ao menos é manifesto que a matemática visa as coisas sobre as quais especula como imóveis e como separadas da matéria sensível, ainda que elas não sejam realmente imóveis e separadas desta. Com efeito, as noções matemáticas, por exemplo, as do côncavo e do curvo, não implicam a matéria sensível. Assim, portanto, e esta é toda a diferença entre as duas ciências, enquanto a física considera coisas cuja definição compreende a matéria sensível e, por conseguinte, visa realidades que não são separadas desta, como se fossem separadas; a matemática, ao contrário, considera as coisas cuja definição não implica a matéria sensível e, por conseguinte, ainda que não trate de entes separados, visa-os como separados.
1162. c Aristóteles mostra agora o que é próprio à ciência da qual nos ocupamos, ao dizer que, se há alguma coisa realmente imóvel e, por consequência, eterna e realmente separada da matéria, está claro que deve ser considerada por uma ciência teorética, e não pelas ciências da ação ou da produção que tratam de alguns movimentos. E, não obstante, não é como físico que se pode considerar tal ente, porque a física é relativa a certos entes, precisamente àqueles que são móveis; nem como matemático, pois as coisas que a matemática visa não são realmente separadas da matéria, mas apenas intelectualmente. É preciso, portanto, que a consideração de tal ente pertença a outra ciência, superior às duas precedentes, ou seja, à física e à matemática.
[…]
1166. … Aristóteles, enfim, conclui que há três partes na filosofia teorética: a matemática, a física e a teologia, que é a filosofia suprema.
APÊNDICE III
XI. AS DIVISÕES DO SABER ESPECULATIVO
(In Boetium De Trinitate, q. 5, a. 1)
O texto que se segue é paralelo ao da Metafísica, VI, l. 1, traduzido precedentemente; mas a questão tratada é de importância, e precisões interessantes são trazidas aqui. Ademais, gostaríamos de fornecer um artigo por completo, isto é, com todo seu aparato de objeções, “sed contra” e soluções. O comentário sobre o De Trinitate pertence ao início do ensino de são Tomás como mestre (entre 1255 e 1259, segundo P. Wyser). Do ponto de vista literário, ele se aparenta no gênero das questões disputadas. As objeções, muito numerosas, retomam-se parcialmente; no mais, talvez todas elas não tenham igual interesse: se a doutrina já está muito firme, ainda não encontraremos a brevidade precisa e límpida da Suma de Teologia. Isso só nos faz apreciar melhor o esforço máximo de um pensamento que conseguiu progressivamente elevar-se a esse grau de simplicidade profunda, o qual justamente causa nossa admiração. Resta dizer que, quanto ao problema da distinção das ciências teóricas, o presente texto é (junto com o do artigo 3, que o completa) de importância capital.
Convém dividir o saber especulativo nestas três partes: ciência da natureza, matemática e ciência do divino?
OBJEÇÕES – Parece que o saber especulativo não deve ser dividido nessas três partes.
1° Com efeito, são partes desse saber os hábitos que aperfeiçoam a parte contemplativa da alma. Ora, o Filósofo afirma (Et. Nic., c. I, 1139 a 12) que a parte “científica” da alma, isto é, sua parte contemplativa, é aperfeiçoada por três hábitos, os de sabedoria, de ciência e de inteligência. Portanto, esses três hábitos, e não os três que estão em questão no texto, constituem as partes do saber especulativo.
2° Agostinho, na Cidade de Deus (VIII, cap. 4), afirma que a filosofia do racional, ou seja, a lógica, está compreendida na filosofia contemplativa ou especulativa. Ora, [Boécio] não o menciona; então, parece que sua divisão é insuficiente.
3° É comum dividir a filosofia em sete artes liberais, entre as quais não estão contadas nem a ciência natural nem a do divino, mas somente a lógica e a matemática. Portanto, as duas primeiras dessas ciências não deveriam estar compreendidas entre as partes do saber especulativo.
4° A medicina parece ser maximamente uma ciência operativa; no entanto se reconhece nela tanto uma parte especulativa como uma parte prática. Semelhantemente, em todas as outras ciências operativas, há uma parte especulativa. Na divisão, que está em pauta, dever-se-ia ter mencionado, ainda que ela seja uma ciência ativa, a ética ou a moral, em razão de sua parte especulativa.
5° A medicina é uma parte da física e, de modo similar, algumas outras artes denominadas “mecânicas”, tais como a agricultura, a alquimia etc. Sendo todos esses saberes operativos, não se vê que teria sido oportuno compreender de maneira absoluta a ciência da natureza no gênero especulativo.
6° Não se separa adequadamente o todo de sua parte. Ora, a ciência do divino parece desempenhar o papel do todo em relação à física e à matemática, sendo o sujeito destas últimas ciências partes do sujeito daquela. Com efeito, o sujeito da ciência do divino, ou da filosofia primeira, é o ente, do qual a substância móvel é uma parte que o físico estuda, assim como a quantidade é o que o matemático estuda (cf. Metafísica, 996 b 14-23). Logo, não se deve separar a ciência divina da física e da matemática.
7° As ciências dividem-se como as coisas (cf. De anima, III, c. 8, 431 b 24 s.); por outro lado, a filosofia tem como objeto o ente. Com efeito, ela é, pelo testemunho de Dionísio (Carta VII a Policarpo), o conhecimento do ente. Resulta daí que, sendo o ente dividido primeiro em ato e potência, em uno e múltiplo, em substância e acidente, é de acordo com essas últimas diferenças que as partes da filosofia deveriam ser distinguidas.
8° Há uma multidão de divisões dos entes às quais correspondem ciências mais essenciais do que aquelas que estão em questão: divisões em móvel e imóvel, em abstrato e não abstrato, igualmente, em corporal e incorporal, animado e inanimado etc. É em diferenças dessa ordem, muito mais do que naquelas aqui propostas, que se deveria dividir a filosofia.
9° A ciência à qual as outras são subordinadas deve ser anterior a elas. Ora, todas as ciências são subordinadas à ciência do divino, porque cabe a esta provar os princípios daquelas. Consequentemente, dever-se-ia situar a ciência do divino antes das outras ciências.
10° A matemática deve ser estudada antes da física; a razão disso é que as crianças podem apreendê-la facilmente, e isso, salvo para os mais avançados, não ocorre com a física (cf. Etic., VI, c. 9, 1142 a 11-19). Daí os antigos observarem, como se diz, esta ordem no estudo das ciências: primeiro a lógica, em seguida a matemática antes da física e, depois desta, a moral, até que por fim se estudaria a ciência do divino. Portanto, foi conveniente situar a matemática antes da física; e, assim, parece que nossa divisão é insuficiente.
SED CONTRA (“Em sentido contrário”) – Que a divisão proposta seja boa, está provado pelo que diz o Filósofo no livro VI da Metafísica (1026 a 18 ss.): “há três ciências filosóficas e teoréticas: a matemática, a física e a teologia”.
Do mesmo modo, na Física (II, c. 2, 193 b 23 ss.), são reconhecidos três modos de ciências, as quais parecem corresponder com as nossas três divisões.
Enfim, Ptolomeu, no início do Almagesto (1, c. 1), também emprega essa divisão.
RESPOSTA – O intelecto teorético ou especulativo distingue-se propriamente do operativo ou prático nisto: enquanto um, o especulativo, tem como fim a verdade que ele considera, o outro, o prático, ordena a dita verdade para a operação como para seu fim.
E por isso que o Filósofo afirma no De anima (III, c. 10, 1433 a 14 ss.), que eles diferem um do outro por seu fim e, na Metafísica (993 b 20 ss.), “que o fim da ciência especulativa é a verdade, sendo o da ciência operativa a ação”. Ademais, a matéria devendo ser proporcionada ao fim, convém que as ciências práticas tenham como matéria coisas que possam ser produzidas por nossa ação, de tal sorte que o conhecimento que temos delas seja suscetível de ser ordenado à operação como a seu fim. Quanto à matéria das ciências especulativas, é necessário que seja constituída por coisas que não sejam produzidas por nós. O conhecimento que dela se tem não pode, por esse fato, ser ordenado à operação como a seu fim; e é segundo a diferença dessas coisas que convém distinguir as ciências especulativas.
Ora, deve-se saber que, quando se distinguem o hábito e as potências segundo seus objetos, isso não é feito segundo qualquer que seja a diferença desses objetos, mas segundo aquelas que lhes convêm por serem objetos. Por exemplo, o fato de ser um animal ou uma planta não é senão um acidente para o sensível enquanto tal; logo, não é segundo isso que se distinguem as potências sensíveis, mas sim segundo a diferença da cor e do som. Portanto, é preciso dividir as ciências especulativas fundamentando-se nas diferenças dos objetos de especulação considerados enquanto tais. Ora, ao “especulável”, isto é, ao objeto da potência especulativa, há algo que sobrevém da potência especulativa, e algo que sobrevém do hábito científico que aperfeiçoa a inteligência. Quanto à inteligência, isso deve ser imaterial, sendo imaterial a inteligência; quanto à ciência, deve ser necessário, tendo a ciência por objeto o necessário, assim como está provado nos Segundos analíticos (1, c. 6, 74 b 5-75 a 17).
Ademais, todo necessário é, enquanto tal, imóvel. Com efeito, tudo aquilo que é movido, enquanto é movido, tem a possibilidade de ser e de não ser, de maneira absoluta ou relativa (cf. Metafísica, 1050 b 11-15). Portanto, ao especulável, que é objeto da ciência especulativa, cabe, por si, ser separado da matéria e do movimento, ou ser aplicado a eles. Resulta disso que as ciências especulativas se distinguem segundo o grau de separação da matéria e do movimento.
Ora, entre os objetos da especulação, há os que, não podendo existir senão na matéria, dependem dela segundo o ser deles; e, neles, existe algo mais a se distinguir Com efeito, alguns dependem da matéria segundo o ser e a inteligência deles, por exemplo, aqueles que implicam em suas definições a matéria sensível; portanto, eles não podem ser apreendidos pela inteligência sem essa matéria e, assim, é preciso que a definição de homem compreenda a carne e os ossos; tais objetos correspondem à física ou ciência da nature-za. Alguns outros, mesmo dependendo da matéria concretamente, não dependem dela em sua inteligibilidade; com efeito, a matéria sensível não está compreendida em sua definição, por exemplo, a linha e o número; esses objetos, por sua vez, correspondem à matemática. Enfim, alguns objetos de especulação em seu ser são independentes da matéria, pois podem existir sem ela: seja que eles jamais a impliquem, o que ocorre com Deus e os anjos, seja que eles a impliquem em alguns sujeitos e não em outros, como é o caso da substância, da qualidade do ente, da potência, do ato, do uno e do múltiplo etc; a tudo isso corresponde a teologia, também dita ciência do divino, porque o mais importante desses objetos é Deus; ciência que, com outro nome, chama-se metafísica, isto é, além da física, porque seu estudo, para nós que nos elevamos ao conhecimento das coisas não sensíveis a partir das coisas sensíveis, deve ser empreendido depois do da física; ela ainda é chamada de filosofia primeira, pelo fato de que todas as outras ciências, ao receberem dela os seus princípios, vêm depois dela. Como não é possível que haja coisas que dependam da matéria em sua inteligibilidade sem dela dependerem em seu ser, e sendo a inteligência por si imaterial, resulta daí que não há, além dos precedentes, um quarto gênero de filosofia.
SOLUÇÕES – 1° O Filósofo, no livro VI da Ética (c. 3, 1139 b14 ss.), trata dos hábitos intelectuais enquanto são virtudes intelectuais. Ora, é por eles aperfeiçoarem, em sua operação, a inteligência, que eles são denominados “virtudes”. Com efeito, uma virtude é aquilo que torna bom seu possuidor e igualmente boa sua ação. Resulta disso que é segundo as diversas maneiras pelas quais ele é aperfeiçoado por tais hábitos especulativos que Aristóteles diversifica as virtudes desse gênero. Com efeito, outro é o modo segundo o qual a parte especulativa da alma é aperfeiçoada pela inteligência, hábito dos princípios, graças ao qual certos objetos são conhecidos por si mesmos, e a maneira pela qual são conhecidas as conclusões provenientes desses princípios: seja que a demonstração proceda das causas de grau inferior, como na ciência, seja que ela tenha como princípio as mais altas causas, como na sabedoria. Ao contrário, no caso em que as ciências são distinguidas a título de hábito, é preciso se reportar aos objetos, ou seja, às coisas de que há ciência. E neste último ponto de vista que, aqui e no livro VI da Metafísica (1026 a 18 ss.), são distinguidas as três partes da filosofia especulativa.
2° As ciências especulativas, como aparece no início da Metafísica (981 b 21 s.), têm como objeto as coisas cujo conhecimento é buscado por si mesmo. Ora, o conhecimento das coisas de que trata a lógica não é buscado por si mesmo, mas como ajuda para as outras ciências. Disso resulta que a lógica não está compreendida na filosofia especulativa a título de parte principal, mas a título redutivo, à medida que ela assegura à especulação seus instrumentos, silogismos, definições etc., dos quais não se pode prescindir nas ciências especulativas. Assim, Boécio, em seu Comentário sobre Porfirio (1, c. 3), declara que ela é menos uma ciência do que o instrumento da ciência.
3° Deve-se responder que as sete artes liberais não constituem uma divisão suficiente da filosofia teorética. Com efeito, como diz Hugo de São Vitor em seu Didascalion (III, c. 3), tendo sido omitidas muitas outras, enumeram-se essas sete artes, porque aqueles que queriam estudar a filosofia eram inicialmente formados por elas, que foram divididas em trivium e quadrivium [via tríplice e via quádrupla], “pois é por elas, como por certas vias, que aquele que tem coragem ardente penetra nos segredos da filosofia”. Isso concorda igualmente com o que disse o Filósofo (Met., c. 3, 995 a 12-14), a saber, que o método da ciência deve ser investigado antes da ciência; e similarmente o Comentador, no mesmo contexto, diz que, antes de todas as ciências que constituem o trivium, convém estudar a lógica que, por sua vez, ensina o método de todas as ciências. Aristóteles afirma também (Etic. Nic., c. 9, 1142 a 11-19) que as matemáticas podem ser possuídas pelas crianças, mas não a física, que pressupõe a experiência. Assim, ele leva a pensar que na sequência da lógica é conveniente estudar as matemáticas, às quais se reporta o quadrivium, de sorte que o espírito seja preparado por essas artes, como que por vias, para as disciplinas filosóficas.
Portanto, pode-se dizer que as disciplinas em questão recebem, entre as outras ciências, o título de artes porque não implicam somente um conhecimento, mas uma operação proveniente imediatamente da razão, por exemplo, construir, formar um silogismo ou um discurso, contar, medir, compor melodias, calcular o curso dos astros. As outras ciências, ao contrário, ou, como a metafísica e a física, não comportam operação, mas somente um conhecimento, e então não podem receber o título de artes, o qual designa uma razão princípio de operação (cf. Metaf., 1025 b 22 ss.); ou, como a medicina, a alquimia etc., comportam uma operação de ordem corporal e, por esse fato, não podem ser contadas entre as artes liberais, as operações em questão pertencendo ao homem pelo lado em que ele não é livre, a saber, pelo corpo. A ciência moral, por sua vez, é ordenada à operação, mas esta não é ato de ciência, mas antes de virtude, assim como aparece nas Éticas (VI, c. 3, 1144 b 17-30); portanto, não se pode chamá-la de arte e, quanto a suas operações, é mais cabível falar de virtude do que de arte. Segue-se disso que os antigos tenham definido a virtude: arte de viver bem e com retidão (cf. Santo Agostinho, Cidade de Deus, IV, c. 21).
4° Como declara Avicena no início de sua Medicina (1, fen. I, doctr, I, prol.), a teorética e a prática não se distinguem da mesma maneira na filosofia, nas artes e na medicina. No caso em que tanto a filosofia como as artes são assim distinguidas, há que se fazer referência ao fim, de tal sorte que seja dito teorético aquilo que é ordenado somente ao conhecimento da verdade, e prático o que é ordenado à operação. Entretanto, essa diferença subsiste, quando assim se divide a filosofia em sua totalidade e as artes: quanto à filosofia, refere-se ao fim da felicidade, à qual a vida humana toda inteira é ordenada. Santo Agostinho diz, na Cidade de Deus (XIX, c. 1), tomando emprestado palavras de Varrão: “não há outra razão para o homem filosofar senão ser feliz”. Logo, dado que para os filósofos há uma dupla felicidade, uma contemplativa e outra ativa, como aparece na Ética (X, c. 7-8), chega-se a distinguir duas partes na filosofia, a moral, que foi qualificada como prática, e a as filosofias da natureza e do racional, que foram qualificadas como teoréticas. Ao contrário, no caso das artes, das quais umas são ditas especulativas e outras práticas, faz-se, então, referência aos fins especiais dessas artes; assim se diz que a agricultura é uma arte prática e que a dialética é uma arte teorética. Ao contrário, se a medicina se encontra dividida em teorética e prática, então a divisão não é relativa ao fim, estando toda a medicina contida no gênero prático porque ordenada à operação. Mas ela é efetuada segundo os objetos, dos quais trata essa arte, sejam próximos ou distanciados da operação. Com efeito, chama-se prática a parte da medicina que ensina a maneira de se obter a cura; por exemplo: para tais abscessos convêm tais remédios. Ao contrário, chama-se teorética a parte que ensina os princípios pelos quais o homem é dirigido em sua operação, mas não de maneira próxima: assim, há “três virtudes” e há tantos gêneros de febres. Portanto, uma parte de uma ciência ativa sendo considerada como teorética, não é preciso que por isso essa parte seja situada sob a filosofia teorética.
5° Uma ciência está contida em outra de duas maneiras. Ou como sua parte, e o sujeito da primeira é uma parte do sujeito da segunda; assim, a planta é uma parte em relação ao gênero do corpo natural, e disso resulta que a ciência das plantas está contida, como parte, na ciência da natureza. Ou como subalternada a ela; como ocorre quando em uma ciência superior é dada a razão explicativa de algo, do qual, na ciência inferior, conhecemos somente a existência; assim, a música é subordinada à aritmética. Disso resulta que a medicina não é subordinada à física como sua parte. Com efeito, o sujeito da medicina não é uma parte do sujeito da ciência da natureza, em razão de ser objeto da medicina: ainda que o corpo a ser curado seja um corpo natural, ele não é sujeito da medicina enquanto ele é curável pela natureza, mas enquanto o é pela arte. Todavia, dado que, na cura que se opera pela arte, esta age como instrumento da natureza, segue-se que o princípio de operação da arte deva ser emprestado das propriedades das coisas da natureza. É por isso que a medicina está subordinada à física, e igualmente a alquimia, a agricultura etc. Disso se segue finalmente que a física, em si mesma e em todas as suas partes, é especulativa, embora algumas ciências operativas lhe sejam subordinadas.
6° Embora os sujeitos das ciências distintas da metafísica sejam partes do ente, o qual é o sujeito da metafisica, não se segue que as ciências sejam partes do ente. Com efeito, cada uma das ciências considera uma parte do ente sob um ponto de vista espe-cial, que não é o que se considera em metafísica. Logo, não se pode dizer propriamente que o sujeito de tal ciência seja uma parte do sujeito da metafísica; com efeito, ele não é parte do ente sob o aspecto em que este é sujeito da metafísica, mas, segundo esse aspecto que foi considerado, ela mesma é uma ciência especial distinta das outras. Ao contrário, pode ser dita parte da metafísica a ciência que tem como objeto a potência, o ato, o uno, ou coisas desse tipo, sendo todos esses objetos considerados do mesmo modo que o ente do qual trata a metafísica.
7° Do fato de não dependerem da matéria, as partes do ente, o qual aqui está em questão, devem ser tratadas da mesma maneira que o ente universalmente considerado: a ciência que tem por objeto essas partes não se distingue, portanto, daquela que tem como objeto tal ente.
8° As outras diversidades, as quais estão em questão na objeção, não diferenciam as coisas na medida em que elas são objetos de ciência; portanto, não é de acordo com elas que as ciências se distinguem.
9° Embora a ciência do divino seja a primeira de todas as ciências, contudo, em relação a nós as outras ciências naturalmente lhe são anteriores. Com efeito, como diz Avicena no começo de sua Metafísica (Tract. 1, c. 3), a ordem dessa ciência é tal que ela deve ser estudada depois da ciência da natureza, em que se encontram determinados muitos elementos dos quais ela se serve: geração, corrupção, movimento etc. Semelhantemente, convém que ela seja estudada após a matemática; com efeito, para o conhecimento das substâncias separadas, ela precisa saber qual é o número e a ordem das órbitas celestes, e isso não é possível sem a astronomia, a qual pressupõe toda a matemática. Quanto às outras ciências (música, moral etc.), elas só devem intervir para sua perfeição.
Contudo, não se deve ver um círculo vicioso no fato de que a ciência em questão suponha coisas que são provadas em outras ciências, pois ela mesma prova os princípios. Com efeito, os princípios que outra ciência, por exemplo a ciência da natureza, recebe da filosofia primeira não provam aquilo que o metafísico recebe do físico; eles se veem demonstrados por outros princípios evidentes por si mesmos; semelhantemente, o metafísico não prova os prin. cípios que ele dá ao físico por aqueles que dele não recebidos, mas por outros que também são conhecidos por si. Portanto, não há círculos viciosos na definição. Por outro lado, os efeitos sensíveis dos quais partem as demonstrações físicas são, em origem, mais conhecidos em relação a nós. Mas quando, a partir deles, nós formos elevados ao conhecimento das causas primeiras, por elas nos será manifestada a razão explicativa desses efeitos, dos quais se tiravam as demonstrações de existência. É assim que a ciência da natureza apresenta alguma coisa à ciência do divino, ainda que esta torne manifestos seus princípios. Disso resulta, enfim, que Boécio colocou em último a ciência do divino: ela é última em relação a nós.
10° Ainda que ocorra à física ser estudada após a matemática, dado que o conjunto dos seus materiais supõe a experiência e, portanto, o tempo; não obstante, resulta disso que os objetos físicos são naturalmente mais conhecidos do que os objetos matemáticos, os quais são abstraídos da matéria sensível.
Excerto do: Pe. HENRI-DOMINIQUE GARDEIL, O.P.; Introdução à Filosofia de São Tomás de Aquino, Paulus, 2013, pp. 179-200, 260-273, 219-228, 277-294. No texto, o título honorífico “Santo” substitui o “São”.
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