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A Conduta Cristã

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C.S.Lewis

 

1. AS TRÊS PARTES DA MORAL

Conta-se a história de um garoto a quem pergunta­ram como achava que Deus era. O garoto respondeu que, pelo que era capaz de compreender, Deus era “o tipo de pessoa que está sempre xeretando a vida dos outros para ver se alguém está se divertindo e tentai’ acabar com isso”. Infelizmente, parece-me que é essa a idéia que um número considerável de pessoas faz da palavra “Moral”: algo que se intromete em nossa vida e nos impede de ter momentos agradáveis. Na realidade, as regras morais são como que instruções de uso da máquina chamada Homem. Toda regra moral existe para prevenir o colap­so, a sobrecarga ou uma falha de funcionamento da má­quina. E por isso que essas regras, no começo, parecem estar em constante conflito com nossas inclinações na­turais. Quando estamos aprendendo a usar qualquer me­canismo, o instrutor vive dizendo “Não, não faça isso”, porque existem diversas coisas que, embora pareçam muito naturais e até acertadas na forma de lidar com a máquina, na verdade não funcionam.

Certas pessoas preferem falar de “ideais” morais em vez de regras morais, e de “idealismo” moral em vez de obediência. Ora, é certo que a perfeição moral é um “ideal”, na medida em que é inalcançável. Nesse senti­do, toda perfeição é, para nós, seres humanos, um ideal. Não conseguimos dirigir perfeitamente um automóvel, jogar tênis perfeitamente ou desenhar uma linha per­feitamente reta. Num outro sentido, porém, é enganador dizer que a perfeição moral é um ideal. Quando um ho­mem diz que certa mulher, casa, barco ou jardim é “seu ideal”, não pretende (a menos que seja um tolo) que to­dos tenham o mesmo ideal. Nesses assuntos, temos o di­reito de ter gostos diferentes e, conseqüentemente, ideais diferentes. E perigoso, porém, dizer que um homem que se esforça para seguir a lei moral seja um homem de “altos ideais”, pois isso pode nos dar a impressão de que a perfeição moral é um mero gosto pessoal dele e que o restante dos homens não teria o dever de procurar rea­lizá-la. Esse erro seria desastroso. A conduta perfeita tal­vez seja tão inalcançável quanto a perfeita perícia ao volante, mas é um ideal necessário prescrito a todos os ho­mens por causa da própria natureza da máquina huma­na, da mesma forma que a pilotagem perfeita é prescrita a todos os motoristas pela própria natureza dos auto­móveis. E seria ainda mais perigoso se você se conside­rasse uma pessoa de “altos ideais” só porque tenta não mentir (em vez de só contar mentirinhas ocasionais), não cometer adultério (em vez de só cometê-lo de vez em quando) e não ser violento com os outros (em vez de ser só um pouquinho violento). Você correria o ris­co de transformar-se num moralista hipócrita, conside­rando-se uma pessoa especial a ser felicitada por seu “idealismo”. Na verdade, isso seria o mesmo que se julgar especial por esforçar-se para acertar o resultado de uma soma. É claro que a aritmética perfeita é um “ideal”, pois certamente cometeremos erros em algumas con­tas. Porém, não há nada de especialmente louvável em tentar obter o resultado correto de cada passo de uma soma. Seria pura estupidez não fazer essa tentativa, pois cada erro de cálculo vai lhe causar problemas para ob­ter o resultado final. Da mesma forma, toda falha mo­ral causará problemas, provavelmente para os outros, cer­tamente para você. Ao falar de regras e obediência em vez de “ideais” e “idealismo”, colaboramos muito para nos lembrar desse fato.

Vamos dar um passo além. Existem duas maneiras pelas quais a máquina humana pode quebrar. Uma delas é quando os indivíduos humanos se afastam uns dos outros ou colidem uns com os outros e prejudicam uns aos outros, traindo ou cometendo violência uns com os outros. A outra é quando as coisas vão mal dentro do próprio indivíduo — quando as diferentes partes que o compõem (suas faculdades, desejos etc.) dissociam-se ou conflitam umas com as outras. Pode-se fazer uma ima­gem clara do que estou falando se imaginarmos os se­res humanos como uma frota de navios que navega em formação. A viagem só será bem-sucedida se, em primei­ro lugar, os navios não se chocarem entre si e não en­trarem uns no caminho dos outros; e, em segundo lugar, se cada navio estiver em boas condições de navegação, com suas máquinas em ordem. Aliás, não dá para ter uma das coisas sem a outra. Se os navios se chocarem, a frota não ficará em boas condições por muito tempo. Por outro lado, se os lemes estiverem com defeito, será difícil evitar as colisões. Se você preferir, pense na hu­manidade como uma orquestra que toca uma música. Para se ter um bom resultado, duas coisas são necessá­rias: cada um dos instrumentos deve estar afinado e cada músico deve tocar no momento certo para que os ins­trumentos combinem entre si.

Há uma coisa, porém, que ainda não levamos em conta. Não nos perguntamos qual o destino da frota, ou qual a música que a banda pretende tocar. Mesmo que os instrumentos estivessem todos afinados e todos to­cassem no tempo correto, a execução não seria um su­cesso se os músicos, tendo sido contratados para tocar música dançante, tocassem somente marchas fúnebres. E, por melhor que fosse a navegação da frota, a viagem não seria um sucesso se, querendo chegar a Nova York, aportasse em Calcutá.

A moral, então, parece englobar três fatores. O pri­meiro é a conduta leal e a harmonia entre os indivíduos. O segundo pode ser chamado de organização ou harmo­nização das coisas dentro de cada indivíduo. O terceiro é o objetivo geral da vida humana como um todo: qual a razão de ser do homem, qual o destino da frota de navios, qual música o maestro quer que a banda toque.

Você já deve ter notado que o homem moderno qua­se sempre pensa no primeiro desses fatores, esquecen­do os outros dois. Quando as pessoas dizem nos jornais que estamos buscando um padrão moral cristão, quase sempre pensam na bondade e na justiça entre nações, classes e indivíduos; ou seja, referem-se apenas ao pri­meiro fator. Quando um homem, falando de um pro­jeto seu, diz que ele “não pode estar errado, pois não fará mal a ninguém”, também está se referindo somente ao primeiro fator. No seu modo de pensar, não importa como o navio está por dentro, desde que não colida com a embarcação ao lado. E, quando começamos a pensar sobre a moral, é muito natural partirmos do primeiro fator, que são as relações sociais. Para começar, os resul­tados de uma moralidade deturpada nesta esfera são mui­to evidentes e nos afetam todos os dias: a guerra e a mi­séria, as jornadas desumanas de trabalho, as mentiras e todos os tipos de trabalho malfeito. Além disso, en­quanto ficamos circunscritos a esse primeiro fator, não há muito o que discutir sobre moralidade. Quase todos os povos de todos os tempos chegaram à conclusão (em tese) de que os seres humanos devem ser honestos, gentis e solícitos uns com os outros. Contudo, embora seja natural começar por aí, um pensamento moral que ficasse restrito a isso seria o mesmo que nada. Se não passarmos ao segundo fator – a organização interna de cada ser humano -, estaremos apenas nos enganando. De que vale dar instruções precisas de navegação aos barcos se eles não passam de embarcações velhas e enferrujadas, que não obedecem aos comandos? De que vale pôr no papel regras de conduta social se sabemos que, na verdade, nossa cobiça, covardia, destempero e vaidade vão nos impedir de cumpri-las? Não quero de maneira alguma dizer que não devemos pensar, e nos esforçar, para melhorar nosso sistema social e econômi­co. Quero apenas salientar que todo esse planejamento não passará de conversa fiada se não nos dermos conta de que só a coragem e o altruísmo dos indivíduos poderá fazer com que o sistema funcione de maneira apro­priada. Seria fácil eliminar os tipos particulares de fraude e tirania que subsistem em nosso sistema atual; mas, en­quanto os homens forem os mesmos trapaceiros e man­da-chuvas de sempre, encontrarão novas formas de se­guir jogando o mesmo jogo, mesmo num novo sistema. É impossível tornar o homem bom pela força da lei; e, sem homens bons, não pode haver uma boa sociedade. É por isso que temos de começar a pensar no segundo fator: a moral dentro de cada indivíduo.

Mas não penso que isso seja suficiente. Estamos che­gando a um ponto da questão em que diferentes cren­ças a respeito do universo produzem formas diferentes de conduta. A primeira vista, pode parecer bastante ra­zoável parar antes de entrar nessa questão, e só nos ocupar­mos das partes da moral que são de consenso entre as pessoas sensatas. Mas podemos nos dar a esse luxo? Lem­bre-se de que a religião envolve uma série de juízos sobre os fatos, juízos que podem ser verdadeiros ou falsos. Caso sejam verdadeiros, as conclusões deles tiradas conduzem a frota da raça humana por um determinado trajeto; caso contrário, o destino será completamente diferen­te. Voltemos, por exemplo, à pessoa que diz que uma coisa não pode estar errada se não faz mal a outros se­res humanos. Essa pessoa sabe muito bem que não deve danificar os outros navios do comboio; porém, pensa sinceramente que tudo o que fizer em seu próprio navio é da sua própria conta. Mas, para isso, não importa sa­ber se o navio é de sua propriedade ou não? Não im­porta saber se eu sou, por assim dizer, o senhorio do meu próprio corpo, ou se sou somente o seu inquilino, responsável perante o verdadeiro proprietário? Se fui fei­to por outra pessoa, por alguém que tem os seus pró­prios desígnios, o fato é que tenho uma série de obriga­ções em relação a essa pessoa, obrigações que não exis­tiriam se eu simplesmente pertencesse a mim mesmo. Além disso, o cristianismo assevera que todo indi­víduo humano viverá eternamente, o que pode ser ver­dadeiro ou falso. Há várias coisas com as quais eu não me preocuparia se fosse viver apenas setenta anos, mas que me preocupam seriamente com a perspectiva da vida eterna. Talvez minha irritabilidade ou meu ciúme fi­quem piores com o tempo – de forma tão gradual que a mudança seja imperceptível ao longo de sete décadas. No entanto, eles serão um verdadeiro inferno em um milhão de anos: aliás, se o cristianismo é verídico, “infer­no” é o termo técnico exato para designar como as coisas serão então. A imortalidade também traz à tona outra diferença que, inclusive, está ligada à diferença entre to­talitarismo e democracia. Se um homem não vive mais que setenta anos, um estado, uma nação ou uma civili­zação que pode durar mil anos são mais importantes do que ele. Porém, se o cristianismo é verdadeiro, o indi­víduo não é apenas mais importante, mas incompara­velmente mais importante, pois sua vida não tem fim; comparada à sua vida, a duração de um estado ou civi­lização não passa de um simples instante.

Parece-nos, portanto, que, para pensar a respeito da moral, temos de levar em conta os três departamentos: as relações entre os homens; as coisas que se passam no interior de cada ser humano; e as relações entre o ho­mem e o poder que o criou. Podemos todos cooperar no primeiro. Os desacordos começam com o segundo e se tornam mais sérios no terceiro. É no trato com o último que se evidenciam as principais diferenças entre cris­tãos e não-cristãos. No restante deste livro, assumirei o ponto de vista cristão e examinarei todo o cenário par­tindo do pressuposto da veracidade do cristianismo.

 

2. AS “VIRTUDES CARDEAIS”

O capítulo anterior foi originalmente concebido co­mo um breve colóquio para ser levado ao ar pelo rádio.

Quando você não pode falar por mais de dez mi­nutos, quase tudo tem de ser sacrificado em prol da concisão. Uma das principais razões pelas quais dividi a moral em três partes (com a imagem dos navios em comboio) foi que me pareceu ser esse o caminho mais curto para dizer o que tinha de dizer. Agora, gostaria de dar uma idéia de outro esquema no qual o assunto foi dividido por escritores antigos, um esquema que, embo­ra fosse longo demais para aquele colóquio, é excelente. De acordo com esse esquema mais longo, existem sete “virtudes”. Quatro delas são chamadas virtudes “car­deais”, e as restantes, virtudes “teológicas”. As “cardeais” são as que toda pessoa civilizada reconhece; já as “teoló­gicas”, em geral, só os cristãos conhecem. Tratarei das teo­lógicas mais adiante. Por enquanto, ocupar-me-ei das quatro virtudes cardeais. (A palavra “cardeal” não tem nenhuma relação com os “cardeais” da Igreja Católica. E derivada da palavra latina que significa “gonzo da porta”. São chamadas virtudes “cardeais” porque são, podería­mos dizer, virtudes “fundamentais”.) São elas: a PRUDÊN­CIA, a TEMPERANÇA, a JUSTIÇA e a FORTALEZA.

A prudência significa a sabedoria prática, parar para pensar nos nossos atos e em suas conseqüências. Nos dias de hoje, a maioria das pessoas já não considera a Prudência uma “virtude”. Inclusive, como Cristo disse que só entrariam em seu Reino os que fossem como crianças, muitos cristãos pensam que podem ser tolos, desde que sejam “bonzinhos”. E um erro. Em primeiro lugar, muitas crianças demonstram ter bastante “pru­dência” quando fazem coisas que são do seu interesse, e conseguem pensar a respeito dessas coisas com bas­tante sensatez. Em segundo lugar, como esclarece São Paulo, Cristo nunca quis que fôssemos como crianças na inteligência – muito pelo contrário. Ele nos exortou a ser não apenas “simples como as pombas”, mas tam­bém “prudentes como as serpentes”. Quer de nós um coração de criança, mas uma cabeça de adulto. Quer-nos simples, centrados, afetuosos e dóceis no aprendizado, como as boas crianças são; mas também quer que cada fração da inteligência que possuímos esteja alerta e afia­da para a batalha. O fato de você dar dinheiro para uma obra de caridade não quer dizer que não deva tentar sa­ber se a instituição de caridade é fraudulenta ou não. O fato de você pensar em Deus (por exemplo, quando reza) não significa que deva contentar-se com as cren­ças infantis que alimentava aos cinco anos de idade. É verdade que Deus não deixará de amar ninguém, nem deixará de utilizar uma pessoa como seu instrumento por ter nascido com um cérebro de segunda classe. Ele tem um coração grande o suficiente para abrigar pes­soas de pouco senso, mas quer que cada um de nós use o senso que lhe coube. Não devemos ter como lema “Seja boa, doce menina, e deixe a inteligência para quem a possui”, mas sim “Seja boa, doce menina, e não se es­queça de ser o mais inteligente que puder”. Deus não detesta menos os intelectualmente preguiçosos do que qualquer outro tipo de preguiçoso. Se você está pen­sando em se tornar cristão, eu lhe aviso que estará em­barcando em algo que vai ocupar toda a sua pessoa, inclu­sive o cérebro. Felizmente, existe uma compensação. Aquele que se esforça honestamente para ser cristão logo percebe que sua inteligência está aprimorada. Um dos motivos pelos quais não é necessário grande estudo para se tornar cristão é que o cristianismo é em si mesmo uma educação. Foi por isso que um crente ignorante, como Bunyan, foi capaz de escrever um livro que es­pantou o mundo inteiro[1].

Temperança, infelizmente, é uma palavra que per­deu seu significado original. Hoje em dia ela significa a abstinência total de bebidas alcoólicas1. Na época em que a segunda virtude cardeal recebeu esse nome, ela não significava nada disso. A temperança não se referia ape­nas à bebida, mas aos prazeres em geral; e não implicava a abstinência, mas a moderação e o não-passar dos li­mites. É um erro considerar que os cristãos devem ser todos abstêmios; o islamismo, e não o cristianismo, é a religião da abstinência. E claro que abster-se de bebidas fortes é dever de certos cristãos em particular ou de qual­quer cristão em determinadas ocasiões, seja porque sabe que, se tomar o primeiro copo, não conseguirá parar, seja porque, rodeado de pessoas inclinadas ao alcoolismo, não quer encorajar ninguém com seu exemplo. A ques­tão toda é que ele se abstém, por um bom motivo, de algo que não é condenável em si; e não se incomoda de ver os outros apreciando aquilo. Uma das marcas de um cer­to tipo de mau caráter é que ele não consegue se privar de algo sem querer que todo o mundo se prive também. Esse não é o caminho cristão. Um indivíduo cris­tão pode achar por bem abster-se de uma série de coi­sas por razões específicas – do casamento, da carne, da cerveja ou do cinema; no momento, porém, em que começa a dizer que essas coisas são ruins em si mesmas, ou em que começa a fazer cara feia para as pessoas que usam essas coisas, ele se desviou do caminho.

A restrição moderna do uso da palavra temperan­ça à questão da bebida fez um grande mal. Ela ajuda as pessoas a esquecer que existem muitas coisas em rela­ção às quais podemos faltar com a temperança. O homem que transforma suas partidas de golfe ou sua motocicle­ta no centro de sua vida, ou a mulher que dedica todos os seus pensamentos a roupas, a partidas de bridge ou ao seu cachorro, estão sendo tão intemperantes quanto o sujeito que bebe muito. E claro que, visto de fora, o pro­blema não é tão evidente: a mania de golfe ou de bridge não deixa a pessoa caída na sarjeta. Deus, porém, não se deixa enganar pelas aparências.

A justiça pressupõe muito mais do que os afazeres de um tribunal. E apenas o antigo nome do que hoje chamamos de “imparcialidade”, que inclui a honesti­dade, a reciprocidade, a veracidade, o cumprimento da palavra e todas as coisas desse tipo. A fortaleza, por fim, abarca os dois tipos de coragem – a que nos leva a enfrentar o perigo e a que nos leva a suportar a dor.

Guts[2] talvez seja o sinônimo mais aproximado no inglês moderno. Você pode notar que não se consegue colo­car em prática nenhuma das outras virtudes por muito tempo sem ter de recorrer a essa.

Há ainda outra questão sobre as virtudes que mere­ce ser destacada. Há uma diferença entre executar um ato de justiça ou temperança, por um lado, e ser uma pessoa justa ou temperada, por outro. Alguém que não jogue tê­nis muito bem pode, vez ou outra, executar uma grande jogada. O jogador bom é aquele cujos olhos, músculos e nervos estão tão bem treinados pela execução de boas jo­gadas que já se tornaram de confiança. Existe nele um certo tom ou qualidade que transparece mesmo quando não está jogando, da mesma forma que a mente de um matemático possui certos hábitos e atitudes que não po­dem deixar de ser notados mesmo quando ele não está empenhado em fazer matemática. Igualmente, um ho­mem que persevere na prática de atos justos terminará por obter uma certa qualidade de caráter. O que chama­mos de “virtude” é essa qualidade, e não as ações isoladas.

Essa distinção é importante porque, se pensarmos somente em ações isoladas, estaremos encorajando três idéias erradas.

  • Podemos pensar que, já que fizemos uma coisa certa, não importa como ou por que motivo a fizemos – se espontaneamente ou não, de mau humor ou com alegria, por medo da opinião pública ou por amor ao bem. A verdade é que as ações corretas praticadas pelas razões erradas não nos ajudam a construir a qualidade inter­na ou caráter chamada “virtude”, e é essa qualidade ou caráter que realmente interessa. (Se um jogador medío­cre de tênis dá um saque muito forte porque perdeu a cabeça e não porque avaliou que a força era necessária, esse saque pode até, com sorte, levá-lo a vencer o jogo, mas não vai transformá-lo num bom jogador.)
  • Podemos ser levados a crer que Deus quer sim­plesmente a obediência a uma lista de regras, ao passo que o que ele realmente quer são pessoas dotadas de um determinado caráter.
  • Podemos pensar que as “virtudes” são necessárias apenas para a nossa vida presente — e que no outro mun­do podemos parar de ser justos pois não há nada sobre o que brigar, ou parar de ser corajosos porque não exis­te mais o perigo. E verdade que provavelmente não ha­verá ocasião para praticar a justiça ou a coragem na ou­tra vida, mas haverá uma abundância de ocasiões para sermos o tipo de pessoa que nos tornamos ao praticar esses atos aqui. A questão não é que Deus vá negar nossa entrada na vida eterna se não tivermos certas qualidades de caráter, mas que, se as pessoas não tiverem pelo me­nos os rudimentos dessas qualidades dentro de si, ne­nhuma condição exterior poderá ser um “Paraíso” para elas – em outras palavras, nenhuma condição exterior poderá dar-lhes a forte, profunda e inabalável alegria que Deus tencionou para nós.

 

3.MORALIDADE SOCIAL

A primeira coisa que devemos esclarecer a respeito da moralidade cristã, na relação de um homem com o outro, é que nesse departamento Cristo não veio pre­gar nenhuma nova moral. A Regra Áurea do Novo Tes­tamento (faça aos outros o que gostaria que fizessem para você) é o resumo do que todos, no íntimo, sempre re­conheceram como correto. Os grandes mestres da mo­ral nunca criam morais novas; são os charlatões que fa­zem isso. Como dizia o dr. Johnson[3], “deve-se antes refres­car a memória das pessoas a respeito do que já sabem do que instruí-las com novidades”. A verdadeira função do mestre moral é a de sempre nos trazer de volta, dia após dia, aos velhos e simples princípios que tanto nos esforçamos para não ver. E a mesma coisa que levar um cavalo repetidamente para junto da cerca que ele se recusa a saltar, ou de insistir todo o dia com a criança so­bre os pontos da matéria que ela se esquiva de estudar.

A segunda coisa que devemos esclarecer é que o cristianismo nunca possuiu, nem professou possuir, um programa detalhado para aplicar o “faça aos outros o que gostaria que fizessem para você” a uma determina­da sociedade ou a um momento particular. Nem poderia ser diferente. Ele se dirige a todos os homens de todos os tempos; e um programa específico que fosse cabível para um lugar ou uma época não o seria para outros. E, de qualquer modo, é assim que o cristianismo fun­ciona. Quando nos manda alimentar os famintos, não nos dá aulas de culinária. Quando nos exorta a ler as Es­crituras, não ministra aulas de hebraico ou de grego, nem mesmo de gramática inglesa. Nunca teve a intenção de substituir ou destituir as artes e ciências profanas: tem, antes, a função de um diretor que as destina às suas fun­ções corretas e lhes infunde a energia de uma vida nova na medida em que elas se colocam à sua disposição.

As pessoas pedem: “A Igreja deve tomar a dianteira.” Isso é verdade se for entendido da maneira correta, mas, caso contrário, não. Por “Igreja” deve-se entender todo o corpo de cristãos praticantes. E, quando dizem que a Igreja deve tomar a dianteira, devem querer dizer com isso que alguns cristãos – os que possuem o talento apro­priado – devem se tornar economistas ou estadistas, e que todos os estadistas e economistas devem ser cristãos e esforçar-se na política ou na economia para pôr em prática o “faça aos outros o que gostaria que fizessem para você”. Se isso se tornasse realidade, e se nós, tercei­ros, estivéssemos dispostos a aceitar o fato, encontraría­mos soluções cristãs para nossos problemas sociais com bastante rapidez. E claro, porém, que, quando certas pessoas pedem que a Igreja tome a dianteira, querem mesmo é que a liderança estabeleça um programa po­lítico, o que é tolice. A liderança, dentro da Igreja, é composta pelas pessoas que foram especialmente trei­nadas e destacadas para cuidar dos nossos assuntos en­quanto criaturas que viverão para sempre; e estamos pe­dindo que cumpram uma função diferente, para a qual não foram treinadas. Essa função cabe a nós, leigos. A aplicação de princípios cristãos aos sindicatos ou às es­colas, por exemplo, deve vir de nós, sindicalistas e educa­dores cristãos, do mesmo modo que a literatura cristã deve ser feita por romancistas e dramaturgos cristãos, e não por um concilio de bispos, reunidos para escrever peças e romances no seu tempo livre.

Do mesmo modo, o Novo Testamento, sem entrar em detalhes, nos pinta um quadro bastante claro do que seria uma sociedade plenamente cristã. Talvez exija de nós mais do que estamos dispostos a dar. Informa-nos que, nessa sociedade, não há lugar para parasitas ou pas­sageiros clandestinos: aquele que não trabalhar não deve comer. Cada qual deve trabalhar com suas próprias mãos e, mais ainda, o trabalho de cada qual deve dar frutos bons: não se devem produzir artigos tolos e supérfluos, nem, muito menos, uma publicidade ainda mais tola para nos persuadir a adquiri-los. Não há lugar para a ostentação, pata a fanfarronice nem para quem queira empinar o nariz. Nesse sentido, uma sociedade crista seria o que se chama hoje em dia “de esquerda”. Por ou­tro lado, ela insiste na obediência — na obediência (acom­panhada de sinais exteriores de reverência) de todos nós para com os magistrados legitimamente constituídos, dos filhos para com os pais e (acho que esta parte não será muito popular) das esposas para com os maridos. Em terceiro lugar, essa é uma sociedade alegre: uma so­ciedade repleta de canto e de regozijo, que não dá valor nem à preocupação nem à ansiedade. A cortesia é uma das virtudes cristãs, e o Novo Testamento abomina as pes­soas abelhudas, que vivem fiscalizando os outros.

Se existisse uma sociedade assim e nós a visitássemos, creio que sairíamos de lá com uma impressão curiosa. Teríamos a sensação de que sua vida econômica seria bastante socialista e, nesse sentido, “avançada”, mas sua vida familiar e seu código de boas maneiras seriam, ao contrário, bastante antiquados — talvez até cerimoniosos e aristocráticos. Cada um de nós apreciaria um aspec­to dela, mas poucos a apreciariam por inteiro. Isso é o que se deve esperar de um cristianismo como projeto integral para o mecanismo da sociedade humana. Cada um de nós se desviou desse projeto integral de forma diferente, e pretende que as modificações nele inseridas substituam o próprio projeto. Você vai sempre encon­trar a mesma situação em tudo o que é verdadeiramente cristão: todos se sentem atraídos por um aspecto disso e querem pegar só esse aspecto, deixando de lado o resto. Esse é o motivo pelo qual não conseguimos avançar, e também explica por que pessoas que lutam por coisas opostas dizem estar lutando pelo cristianismo.

Passo para outra questão. Há um conselho, dado pe­los gregos pagãos da Antigüidade, pelos judeus do An­tigo Testamento e pelos grandes mestres cristãos da Ida­de Média, que foi completamente desobedecido pelo sistema econômico moderno. Todos eles disseram que não se deve emprestar dinheiro a juros; e o empréstimo a juros — o que chamamos de investimentos — é a base de todo o nosso sistema. Não se pode, no entanto, con­cluir com absoluta certeza que estejamos errados. Alguns dizem que, quando Moisés, Aristóteles e os cristãos con­cordaram em proibir o juro (ou a “usura”, como diriam), eles não podiam prever as sociedades acionárias e pen­savam apenas no agiota particular, e que, portanto, não devemos nos preocupar com o que disseram. Essa é uma questão sobre a qual não cabe a mim opinar. Não sou economista e simplesmente não sei se foi o sistema de investimentos o responsável pelo estado de coisas em que nos encontramos. Por isso é que precisamos de eco­nomistas cristãos. Entretanto, eu não estaria sendo ho­nesto se não dissesse que três grandes civilizações con­cordaram (pelo menos é o que parece à primeira vista) em condenar o próprio fundamento em que se baseia toda a nossa vida.

Mais uma coisa a dizer e termino. No trecho do Novo Testamento que diz que todos devem trabalhar, ele dá uma razão para isso — “a fim de ter algo a dar para os necessitados”. A caridade – dar para os pobres – é um elemento essencial da moralidade cristã: na assustadora parábola das ovelhas e dos cabritos, ela parece ser a ques­tão da qual depende tudo o mais. Hoje em dia, certas pessoas dizem que a caridade não é mais necessária e que, em vez de darmos para os pobres, deveríamos criar uma sociedade em que não existissem pobres. Elas não deixam de ter certa razão no que se refere à construção de uma sociedade assim, mas quem tira disso a conclusão de que, nesse meio tempo, pode parar de doar, se afas­tou de toda a moralidade cristã. Não acredito que alguém possa estabelecer o quanto cada um deve dar. Creio que a única regra segura é dar mais do que nos sobra. Em outras palavras, se nossos gastos com conforto, bens su­pérfluos, diversão etc. se igualam ao do padrão dos que ganham o mesmo que nós, provavelmente não estamos dando o suficiente. Se a caridade que fazemos não pesa pelo menos um pouco em nosso bolso, ela está pequena demais. E preciso que haja coisas que gostaríamos de fazer e não podemos por causa de nossos gastos com caridade. Estou falando de “caridade” no sentido comum da palavra. Os casos particulares que afetam parentes, amigos, vizinhos ou empregados, de que Deus, por as­sim dizer, nos força a tomar conhecimento, exigem mui­to mais que isso: podem inclusive nos obrigar a pôr em risco nossa própria situação. Para muitos de nós, o gran­de obstáculo à caridade não está num estilo de vida luxuo­so ou no desejo de mais prosperidade, mas no medo — na insegurança quanto ao futuro. Temos de saber que esse medo é uma tentação. As vezes, também o orgulho atra­palha a caridade; somos tentados a gastar mais do que devíamos em formas vistosas de generosidade (gorjetas, hospitalidade) e menos com aqueles que realmente ne­cessitam do nosso auxílio.

Antes de terminar, farei uma conjectura sobre como este capítulo pode ter afetado o leitor. Meu palpite é que deixei alguns esquerdistas furiosos por não ter ido mais longe na direção em que gostariam que eu fosse, e que também deixei com raiva as pessoas de orienta­ção política oposta por ter ido longe demais. Se isso é ver­dade, fica posto em evidência o verdadeiro empecilho para a concepção de um projeto de sociedade cristã. Muitos não examinam o cristianismo para descobrir como ele realmente é: sondam-no na esperança de en­contrar nele apoio para os pontos de vista de seu par­tido político. Buscamos um aliado quando nos é ofere­cido um Mestre – ou um Juiz. Não sou exceção a essa regra. Há trechos deste capítulo que eu gostaria de ter omitido, o que não deixa de ser uma demonstração de que nada de bom pode nascer destes colóquios se não nos decidirmos a trilhar o caminho mais comprido. A so­ciedade cristã só virá quando a maioria das pessoas a qui­ser, e ninguém pode querê-la se não for plenamente cristão, Posso repetir “faça aos outros o que gostaria que fizessem para você” até cansar, mas não conseguirei vi­ver assim se não amar ao próximo como a mim mes­mo; só poderei aprender esse amor quando aprender a amar a Deus; e só aprenderei a amá-lo quando apren­der a obedecê-lo. E assim, como eu já tinha dito, somos conduzidos a um aspecto mais interior da questão — saímos da problemática social e entramos na problemá­tica religiosa. O caminho mais longo é o mais curto para chegar em casa.

 

4. MORALIDADE E PSICANÁLISE

Eu disse que só teremos uma sociedade cristã quan­do a maioria dos indivíduos for cristã. Isso, evidente­mente, não quer dizer que devemos adiar a ação social para um dia imaginário num futuro distante. Quer di­zer, isto sim, que devemos começar os dois trabalhos agora mesmo – (1) o trabalho de ver como aplicar em detalhe na sociedade moderna o preceito “faça aos ou­tros o que gostaria que fizessem para você”; e (2) o tra­balho de nos tornarmos pessoas que realmente aplica­riam esse preceito se soubessem como fazê-lo. Gostaria agora de começar a tecer considerações sobre a idéia cris­tã de um homem bom — as instruções cristãs para o uso da máquina humana.

Antes de entrar em detalhes, gostaria de fazer duas afirmações mais gerais. Em primeiro lugar, já que a mo­ral cristã pretende ser uma técnica para colocar a máqui­na humana em ordem, achei que você gostaria de saber como ela se relaciona com outra técnica que pretende a mesma coisa – a saber, a psicanálise.

Devemos fazer uma distinção bem clara entre duas coisas: a primeira delas, a teoria médica propriamente dita e a técnica da psicanálise; a segunda, a visão geral de mun­do que Freud e outros vieram acrescentar a ela. Essa se­gunda coisa – a filosofia de Freud – está em contradi­ção direta com a de outro grande psicólogo, Jung. Além disso, quando Freud descreve a terapêutica para casos de neurose, fala como um especialista no assunto; mas, quando discorre sobre filosofia geral, fala como um ama­dor. Portanto, é sensato ouvi-lo falar sobre um assunto, mas não sobre o outro — e é isso que eu faço. Ajo assim porque me dei conta de que, quando Freud discorre sobre assuntos que não são de sua especialidade e que por acaso eu conheço bem (como é o caso do assunto “linguagem”), ele não passa de um ignorante. A psicaná­lise em si mesma, porém, separada de todos os enxertos filosóficos feitos por Freud e por outros, não está de for­ma alguma em contradição com o cristianismo. Suas técnicas coincidem com as da moralidade cristã em al­guns aspectos, e seria recomendável que toda pessoa soubesse algo sobre o assunto: as duas técnicas, porém, não seguem o mesmo curso até o fim, já que seus propósi­tos são diferentes.

Quando um homem faz uma escolha moral, duas coisas estão envolvidas. Uma delas é o próprio ato da es­colha. A outra, os diversos sentimentos, impulsos etc. que fazem parte do seu perfil psicológico e constituem a matéria-prima de suas escolhas. Essa matéria-prima pode ser de dois tipos. Por um lado, pode ser o que chamamos de normal: pode consistir nos sentimentos que são co­muns a todos os homens. Ou, por outro lado, pode con­sistir em sentimentos antinaturais, provenientes de dis­túrbios em seu subconsciente. O medo de coisas efetiva­mente perigosas é um exemplo do primeiro tipo; o medo irracional de gatos ou aranhas é exemplo do segundo. O desejo de um homem por uma mulher é do primeiro. O desejo pervertido de um homem por outro homem, do segundo. Ora, o que a psicanálise se propõe a fazer é eliminar os sentimentos anormais, ou seja, dar ao homem uma matéria-prima melhor para os seus atos de escolha; a moralidade trata destes atos em si mesmos.

Vamos dar um exemplo. Imagine três homens que vão à guerra. Um deles tem o medo natural do perigo que qualquer pessoa tem, mas vence-o pelo esforço mo­ral e se torna corajoso. Vamos supor que os outros dois tenham, como resultado do que existe em seu subcons­ciente, um medo irracional e exagerado diante do qual nenhum esforço moral consegue ser bem-sucedido. Imagine que um psicanalista consiga curar os dois, ou seja, colocá-los de novo numa situação idêntica à do primeiro homem. É nesse momento em que o proble­ma psicanalítico está resolvido que começa o problema moral. Com a cura, os dois homens podem seguir cami­nhos bastante diferentes. O primeiro deles talvez diga: “Graças a Deus, me livrei daquelas baboseiras. Enfim poderei fazer o que sempre quis — servir ao meu país.” O outro, porém, pode dizer: “Bem, estou muito con­tente por me sentir relativamente tranqüilo diante do perigo, mas isso não altera o fato de que estou, como sempre estive, determinado a pensar primeiro em mim e a deixar que outros camaradas façam o trabalho arris­cado sempre que eu puder. Aliás, um dos benefícios de me sentir menos aterrorizado é que consigo cuidar de mim de forma mais eficiente e ser bem mais esperto para esconder esse fato dos outros.” A diferença entre os dois é puramente moral, e a psicanálise não tem mais nada a fazer a respeito. Por mais que ela melhore a matéria-prima do homem, resta ainda outra coisa: a livre escolha do ser humano, uma escolha real feita a partir do ma­terial com que ele depara. O homem pode dar primazia a si mesmo ou aos outros. E este livre-arbítrio é a única coisa da qual a moralidade se ocupa.

O mau material psicológico não é um pecado, mas uma doença. Não é motivo para arrependimento, mas algo a ser curado, o que, por sinal, é muito im­portante. Os seres humanos julgam uns aos outros pe­las ações externas. Deus os julga por suas escolhas mo­rais. Quando um neurótico com horror patológico a gatos se obriga, por um bom motivo, a pegar um deles no colo, é bem possível que aos olhos de Deus esteja demonstrando mais coragem que outro homem que re­cebesse a Victoria Cross[4]. Quando um homem perver­tido desde a infância, durante a qual foi ensinado que a crueldade é correta, faz um pequeno gesto de bon­dade ou refreia-se de fazer um gesto cruel, correndo o risco de ser caçoado pelos seus companheiros, é possí­vel que, aos olhos de Deus, ele tenha feito mais do que nós faríamos se sacrificássemos nossa própria vida por um amigo.

Igualmente verdadeira é a possibilidade contrária. Há pessoas que parecem muito boas, mas fazem tão pouco uso de sua boa hereditariedade e de sua boa for­mação que acabam sendo piores que as que considera­mos perversas. Podemos dizer com certeza qual teria sido o nosso comportamento se sofrêssemos o estigma de um mau perfil psicológico e de uma má criação, com o agra­vante de subir ao poder, como um Himmler[5]? Esse é o motivo pelo qual os cristãos devem se abster de julgar. Só vemos o resultado das escolhas que os homens fa­zem a partir da matéria-prima de que dispõem. Deus, porém, não os julga por sua matéria-prima, mas pelo que fizeram com ela. Quase todo o arcabouço psicoló­gico do homem é derivado do corpo. Quando o corpo morrer, tudo isso desaparecerá, e o verdadeiro homem interior, aquele que escolhe e que pode fazer o melhor ou o pior com o material disponível, estará de pé, nu. Todas as coisas boas que pensávamos serem nossas, mas que não passavam do fruto de uma boa fisiologia, se­rão separadas de alguns de nós; e toda a sorte de coisas más, resultantes de complexos ou de uma saúde precária, serão separadas de outros. Veremos, então, pela primeira vez, cada qual como realmente era. Haverá surpresas.

Isso me traz à segunda questão. As pessoas normal­mente encaram a moral cristã como uma espécie de bar­ganha, na qual Deus diz: “Se você seguir uma série de regras, vou recompensá-lo; se não seguir, farei o con­trário.” Não creio que essa seja a melhor forma de ver as coisas. Seria melhor dizer que, toda vez que tomamos uma decisão, tornamos um pouco diferente a parte cen­tral do nosso ser, a responsável pela decisão tomada. Considerando então nossa vida como um todo, com as inúmeras escolhas feitas ao longo do caminho, aos pou­cos vamos tornando esse elemento central numa criatura celeste ou numa criatura infernal: uma criatura em harmonia com Deus, com as outras criaturas e consigo mesma, ou uma criatura cheia de ódio e em pé de guer­ra com Deus, com as outras criaturas e consigo mesma. Ser uma criatura do primeiro tipo é o paraíso, é alegria, paz, conhecimento e poder. Ser do segundo tipo é a loucura, o horror, a idiotia, a raiva, a impotência e a so­lidão eterna. Cada um de nós, a cada momento, pro­gride em direção a um estado ou ao outro.

Isso explica o que sempre me causou perplexidade a respeito dos autores cristãos, tão rígidos num sentido e tão liberais e abertos em outro. Às vezes falam de me­ros pecados de pensamento como se fossem imensamen­te escandalosos; no momento seguinte, falam dos mais terríveis assassinatos e traições como se fossem algo do qual basta o arrependimento para se obter o perdão. Aca­bei por me convencer de que estão com a razão. Sua preocupação constante é a marca deixada por nossas ações na parte mais minúscula, mas central de nós mesmos, a parte que ninguém pode enxergar nessa vida, mas que cada um de nós terá de suportar — ou poderá fruir — para sempre. Um homem pode estar colocado nesta vida de tal modo que sua ira o leve a derramar o sangue de mi­lhares de seus semelhantes, e outro pode encontrar-se numa situação tal que, por mais irado que fique, só consegue ser motivo de chacota; a pequena marca deixada na alma, porém, pode ser a mesma num caso e no outro. Cada um deles deixou uma marca em si mesmo. A não ser que se arrependam, terão mais dificuldade para resistir à ira na próxima vez em que forem tentados, e cairão numa ira pior a cada vez que cederem à tenta­ção. Cada um deles, caso se volte seriamente para Deus, pode endireitar de novo essa deformação do homem interior; caso não se voltem, ambos estarão, a longo pra­zo, condenados. A grandeza ou pequenez do ato, visto de fora, não é o que realmente importa.

Uma última questão. Lembre-se de que, como eu dis­se, a caminhada na direção certa leva não só à paz, mas também ao conhecimento. Quando um homem melhora, torna-se cada vez mais capaz de perceber o mal que ainda existe dentro de si. Quando um homem piora, torna-se cada vez menos capaz de captar a própria maldade. Um homem moderadamente mau sabe que não é muito bom; um homem completamente mau acha que está coberto de razão. Nós sabemos disso intuitivamente. Entendemos o sono quando estamos acordados, não quando adorme­cidos. Percebemos os erros de aritmética quando nossa mente está funcionando direito, não no momento em que os cometemos. Compreendemos a natureza da em­briaguez quando estamos sóbrios, não quando bêbados. As pessoas boas conhecem tanto o bem quanto o mal; as pessoas más não conhecem nenhum dos dois.

 

5. MORALIDADE SEXUAL

Consideremos agora a moralidade cristã no que diz respeito à questão do sexo, ou seja, o que os cristãos cha­mam de virtude da castidade. Não se deve confundir a regra cristã da castidade com a regra social da “modéstia”, no sentido de pudor ou decência. A regra social do pudor estipula quais partes do corpo podem ser mostradas e quais assuntos podem ser abordados, e de que forma, de acordo com os costumes de determinado círculo so­cial. Logo, enquanto a regra da castidade é a mesma para todos os cristãos em todas as épocas, a regra do pudor muda. Uma moça das ilhas do Pacífico, praticamente nua, e uma dama vitoriana completamente coberta, po­dem ambas ser igualmente “modestas”, pudicas e decentes de acordo com o padrão da sociedade em que vivem. Ambas, pelo que suas roupas nos dizem, podem ser igualmente castas (ou igualmente devassas). Parte do vocabulário que uma mulher casta usava nos tempos de Shakespeare só seria usado no século XIX por uma mulher completamente desinibida. Quando as pessoas transgridem a regra do pudor vigente no lugar e na épo­ca em que vivem, e o fazem para excitar o desejo sexual em si mesmas ou nos outros, cometem um pecado con­tra a castidade. Se, porém, a transgridem por ignorância ou descuido, sua única culpa é a da má educação. É mui­to freqüente que a regra seja transgredida a modo de desafio, para chocar ou causar embaraço nos outros. As pessoas que fazem isso não são necessariamente devas­sas, mas faltam com a caridade, pois é falta de caridade achar graça em incomodar os outros. Quanto a mim, não acho que um padrão de pudor extremamente rígido e exigente seja uma prova de castidade ou uma grande ajuda para que essa exista; por isso, considero um bom sinal o abrandamento e a simplificação dessa regra que se deu durante minha vida. O momento atual, entre­tanto, tem o inconveniente de que pessoas de idades e tipologias diferentes não reconhecem o mesmo padrão, de modo que não podemos saber em que pé estamos. Enquanto essa confusão durar, creio que as pessoas mais velhas, ou mais antiquadas, não devem julgar que os mais jovens ou “emancipados” estão corrompidos sem­pre que agem de forma despudorada (segundo o velho padrão). Em contrapartida, os mais jovens não devem chamar os mais velhos de moralistas ou puritanos só por­que não conseguem se adaptar facilmente ao novo pa­drão. O desejo sincero de pensar sempre o melhor do próximo e de tornar-lhe a vida mais confortável resol­verá a maior parte desses problemas.

A castidade é a menos popular das virtudes cristãs. Porém, não existe escapatória. A regra cristã é clara: “Ou o casamento, com fidelidade completa ao cônjuge, ou a abstinência total.” Isso é tão difícil de aceitar, e tão con­trário a nossos instintos, que das duas, uma: ou o cristia­nismo está errado ou o nosso instinto sexual, tal como é hoje em dia, se encontra deturpado. E claro que, sen­do cristão, penso que foi o instinto que se deturpou.

Tenho, no entanto, outras razões para pensar assim. O objetivo biológico do sexo são os filhos, da mesma forma que o objetivo biológico da alimentação é a con­servação do corpo. Se comêssemos sempre que tivésse­mos vontade e na quantidade que desejássemos, é bem verdade que muitos comeriam demais, mas não extraor­dinariamente demais. Uma pessoa pode comer por duas, mas não por dez. O apetite pode sobrepujar um pou­co a necessidade biológica, mas não de forma comple­tamente desproporcional. Já um jovem saudável que fosse indulgente com o seu apetite sexual, e que a cada ato produzisse um bebê, em dez anos conseguiria facilmen­te povoar uma pequena aldeia. Tal apetite excederia a sua função de forma cômica e absurda.

Tomemos outro exemplo. É fácil juntar uma gran­de platéia para um espetáculo de strip-tease — para ver uma garota se despir no palco. Agora suponha que você vá a um país em que os teatros lotassem para assistir a outro tipo de espetáculo: o de um prato coberto cuja tampa fosse retirada lentamente, de modo que, logo an­tes do apagar das luzes, se revelasse seu conteúdo – uma costeleta de carneiro ou uma bela fatia de bacon. Você não julgaria haver algo de errado com o apetite desse povo por comida? Será que, em contrapartida, uma pes­soa criada em outro ambiente também não julgaria er­rado o instinto sexual entre nós?

Um crítico disse que, se encontrasse um país onde se fizessem espetáculos de strip-tease gastronômico, con­cluiria que o povo desse país estava faminto. O que ele quis dizer, evidentemente, é que o strip-tease e coisas afins não resultam da corrupção sexual, mas da inanição se­xual. Concordo com ele que, estivesse eu num país em que o strip-tease de uma costeleta de carneiro fosse po­pular, uma das explicações que me ocorreria seria a fome. Mas, para comprovar essa hipótese, o passo seguinte se­ria descobrir se o povo desse país consome muita ou pouca comida. Caso se demonstrasse que muitos alimentos são consumidos, teríamos de abandonar a hipótese de inanição e tentar pensar em outra. Da mesma maneira, antes de aceitar a inanição sexual como causa do strip-tease, temos de procurar sinais de que, em nossa época, as pessoas praticam mais a abstinência sexual do que nas épocas em que o strip-tease era desconhecido. Esses si­nais, porém, não existem. Os métodos anticoncepcio­nais mais do que nunca tornaram a libertinagem sexual menos custosa dentro do casamento e bem mais segu­ra fora dele. A opinião pública nunca foi tão pouco hos­til às uniões ilícitas, e mesmo às perversões, desde a épo­ca do paganismo. Não é também a hipótese de “inani­ção” a única que pode nos ocorrer. Todos sabem que o apetite sexual, como qualquer outro apetite, cresce quan­do é satisfeito. Os homens famintos pensam muito em comida, mas os glutões também. Tanto os saciados quan­to os famintos gostam de estímulos novos.

Um terceiro ponto. Não existe muita gente que queira comer coisas que não são alimentos ou que goste de usar a comida em outras coisas que não a alimen­tação. Em outras palavras, as perversões do apetite ali­mentar são raras. As perversões do instinto sexual, po­rém, são numerosas, difíceis de curar e assustadoras. Des­culpe-me por descer a esses detalhes, mas tenho de fazê-lo. Tenho de fazê-lo porque, há vinte anos, temos sido obrigados a engolir diariamente uma série enorme de men­tiras bem contadas sobre sexo. Tivemos de ouvir, ad nauseam, que o desejo sexual não difere de nenhum outro desejo natural, e que, se abandonarmos a tola e anti­quada idéia vitoriana de tecer uma cortina de silêncio em torno dele, tudo neste jardim será maravilhoso. No mo­mento em que examinamos os fatos e nos distanciamos da propaganda, vemos que a coisa não é bem assim.

Dizem que o sexo se tornou um problema grave porque não se falava sobre o assunto. Nos últimos vin­te anos, não foi isso que aconteceu. Todo o dia se fala sobre o assunto, mas ele continua sendo um problema. Se o silêncio fosse a causa do problema, a conversa seria a solução. Mas não foi. Acho que é exatamente o con­trário. Acredito que a raça humana só passou a tratar do tema com discrição porque ele já tinha se tornado um problema. Os modernos sempre dizem que “o sexo não é algo de que devemos nos envergonhar”. Com isso, podem estar querendo dizer duas coisas. Uma de­las é que “não há nada de errado no fato de a raça hu­mana se reproduzir de um determinado modo, nem no fato de esse modo gerar prazer”. Se é isso o que têm em mente, estão cobertos de razão. O cristianismo diz a mes­ma coisa. O problema não está nem na coisa em si, nem no prazer. Os velhos pregadores cristãos diziam que, se o homem não tivesse sofrido a queda, o prazer sexual não seria menor do que é hoje, mas maior. Bem sei que alguns cristãos de mente tacanha dizem por aí que o cristianismo julga o sexo, o corpo e o prazer como coi­sas intrinsecamente más. Mas estão errados. O cristia­nismo é praticamente a única entre as grandes religiões que aprova por completo o corpo — que acredita que a matéria é uma coisa boa, que o próprio Deus cornou a forma humana e que um novo tipo de corpo nos será dado no Paraíso e será parte essencial da nossa felicidade, beleza e energia. O cristianismo exaltou o casamento mais que qualquer outra religião; e quase todos os gran­des poemas de amor foram compostos por cristãos. Se alguém disser que o sexo, em si, é algo mau, o cristia­nismo refuta essa afirmativa instantaneamente. Mas é claro que, quando as pessoas dizem “o sexo não é algo de que devemos nos envergonhar”, elas podem estar que­rendo dizer que “o estado em que se encontra nosso ins­tinto sexual não é algo de que devemos sentir vergonha”. Se é isso que querem dizer, penso que estão erra­das. Penso que temos todos os motivos do mundo para sentir vergonha. Não há nada de vergonhoso em apre­ciar o alimento, mas deveríamos nos cobrir de vergo­nha se metade das pessoas fizesse do alimento o maior interesse de sua vida e passasse os dias a espiar figuras de pratos, com água na boca e estalando os lábios. Não digo que você ou eu sejamos individualmente responsáveis pela situação atual. Nossos ancestrais nos legaram organismos que, sob este aspecto, são pervertidos; e cres­cemos cercados de propaganda a favor da libertinagem. Existem pessoas que querem manter o nosso instinto sexual em chamas para lucrar com ele; afinal de contas, não há dúvida de que um homem obcecado é um ho­mem com baixa resistência à publicidade. Deus conhe­ce nossa situação; ele não nos julgará como se não ti­véssemos dificuldades a superar. O que realmente im­porta é a sinceridade e a firma vontade de superá-las.

Para sermos curados, temos de querer ser curados. Todo aquele que pede socorro será atendido; porém, para o homem moderno, até mesmo esse desejo sin­cero é difícil de ter. E fácil pensar que queremos algo quando na verdade não o queremos. Um cristão famoso, de tempos antigos, disse que, quando era jovem, implo­rava constantemente pela castidade; anos depois, se deu conta de que, quando seus lábios pronunciavam “ó Se­nhor, fazei-me casto”, seu cotação acrescentava secreta­mente as palavras: “Mas, por favor, que não seja agora.” Isso também pode acontecer nas preces em que pedi­mos outras virtudes; mas há três motivos que tornam especialmente difícil desejar — quanto mais alcançar – a perfeita castidade.

Em primeiro lugar, nossa natureza pervertida, os de­mônios que nos tentam e a propaganda a favor da luxúria associam-se para nos fazer sentir que os desejos aos quais resistimos são tão “naturais”, “saudáveis” e ra­zoáveis que essa resistência é quase uma perversidade e uma anomalia. Cartaz após cartaz, filme após filme, ro­mance após romance associam a idéia da libertinagem sexual com as idéias de saúde, normalidade, juventude, franqueza e bom humor. Essa associação é uma menti­ra. Como toda mentira poderosa, é baseada numa ver­dade – a verdade reconhecida acima de que o sexo (à parte os excessos e as obsessões que cresceram ao seu re­dor) é em si “normal”, “saudável” etc. A mentira con­siste em sugerir que qualquer ato sexual que você se sinta tentado a desempenhar a qualquer momento seja também saudável e normal. Isso é estapafúrdio sob qual­quer ponto de vista concebível, mesmo sem levar em conta o cristianismo. A submissão a todos os nossos de­sejos obviamente leva à impotência, à doença, à inveja, à mentira, à dissimulação, a tudo, enfim, que é contrário à saúde, ao bom humor e à franqueza. Para qualquer tipo de felicidade, mesmo neste mundo, é necessário comedimento. Logo, a afirmação de que qualquer de­sejo é saudável e razoável só porque é forte não signifi­ca coisa alguma. Todo homem são e civilizado deve ter um conjunto de princípios pelos quais rejeita alguns de­sejos e admite outros. Um homem se baseia em princí­pios cristãos, outro se baseia em princípios de higiene, e outro, ainda, em princípios sociológicos. O verdadei­ro conflito não é o do cristianismo contra a “natureza”, mas dos princípios cristãos contra outros princípios de controle da “natureza”. A “natureza” (no sentido de um desejo natural) terá de ser controlada de um jeito ou de outro, a não ser que queiramos arruinar nossa vida. E bem verdade que os princípios cristãos são mais rígidos que os outros; no entanto, acreditamos que, para obe­decer-lhes, você poderá contai com uma ajuda que não terá para obedecer aos outros.

Em segundo lugar, muitas pessoas se sentem desen­corajadas de tentar seriamente seguir a castidade cristã porque a consideram impossível (mesmo antes de ten­tar). Porém, quando uma coisa precisa ser tentada, não se deve pensar se ela é possível ou impossível. Em face de uma pergunta optativa numa prova, a pessoa deve pen­sar se é capaz de respondê-la ou não; em face de uma pergunta obrigatória, a pessoa deve fazer o melhor que puder. Você poderá somar alguns pontos mesmo com uma resposta imperfeita, mas não somará ponto caso se abstenha de responder. Isso não vaie apenas para uma prova, mas também para a guerra, para o alpinismo, para aprender a patinar, a nadar e a andar de bicicleta. Até para abotoar um colarinho duro com os dedos enregelados, as pessoas conseguem fazer o que antes pare­cia impossível. O homem é capaz de prodígios quando se vê obrigado a fazê-los.

Podemos ter certeza de que a castidade perfeita — como a caridade perfeita — não será alcançada pelo mero esforço humano. Você tem de pedir a ajuda de Deus. Mesmo depois de pedir, poderá ter a impressão de que a ajuda não vem, ou vem em dose menor que a neces­sária. Não se preocupe. Depois de cada fracasso, levan­te-se e tente de novo. Muitas vezes, a primeira ajuda de Deus não é a própria virtude, mas a força para tentar de novo. Por mais importante que seja a castidade (ou a coragem, a veracidade ou qualquer outra virtude), esse processo de treinamento dos hábitos da alma é ainda mais valioso. Ele cura nossas ilusões a respeito de nós mesmos e nos ensina a confiar em Deus. Aprende­mos, por um lado, que não podemos confiar em nós mesmos nem em nossos melhores momentos; e, por ou­tro, que não devemos nos desesperar nem mesmo nos piores, pois nossos fracassos são perdoados. A única ati­tude fatal é se dar por satisfeito com qualquer coisa que não a perfeição.

Em terceiro lugar, as pessoas muitas vezes não en­tendem o que a psicologia quer dizer com “repressão”. Ela nos ensinou que o sexo “reprimido” é perigoso. Nes­se caso, porém, “reprimido” é um termo técnico: não significa “suprimido” no sentido de “negado” ou “proi­bido”. Um desejo ou pensamento reprimido é o que foi jogado para o fundo do subconsciente (em geral na infância) e só pode surgir na mente de forma disfarçada ou irreconhecível. Ao paciente, a sexualidade reprimi­da não parece nem mesmo ter relação com a sexualidade. Quando um adolescente ou um adulto se empenha em resistir a um desejo consciente, não está lidando com a repressão nem corre o risco de a estar criando. Pelo con­trário, os que tentam seriamente ser castos têm mais consciência de sua sexualidade e logo passam a conhe­cê-la melhor que qualquer outra pessoa. Acabam co­nhecendo seus desejos como Wellington conhecia Napoleão ou Sherlock Holmes conhecia Moriarty[6]; como um apanhador de ratos conhece ratos ou como um en­canador conhece um cano com vazamento. A virtude – mesmo o esforço para alcançá-la — traz a luz; a liber­tinagem traz apenas brumas.

Para encerrar, apesar de eu ter falado bastante a respeito de sexo, quero deixar tão claro quanto possível que o centro da moralidade cristã não está aí. Se alguém pensa que os cristãos consideram a falta de castidade o vício supremo, essa pessoa está redondamente enganada. Os pecados da carne são maus, mas, dos pecados, são os menos graves. Todos os prazeres mais tetríveis são de natureza puramente espiritual: o prazer de provar que o próximo está errado, de tiranizar, de tratar os outros com desdém e superioridade, de estragar o prazer, de difamar. São os prazeres do poder e do ódio. Isso por­que existem duas coisas dentro de mim que competem com o ser humano em que devo tentar me tornar. São elas o ser animal e o ser diabólico. O diabólico é o pior dos dois. E por isso que um moralista frio e pretensamente virtuoso que vai regularmente à igreja pode es­tar bem mais perto do inferno que uma prostituta. E claro, porém, que é melhor não ser nenhum dos dois.

 

6. O CASAMENTO CRISTÃO

O capítulo anterior foi quase todo negativo. Nele discuti o que há de errado com o impulso sexual no ho­mem, mas falei muito pouco sobre seu funcionamento correto – em outras palavras, sobre o casamento cristão. Há duas razões pelas quais não quis abordar o tema do casamento. A primeira é que a doutrina cristã sobre o as­sunto é extremamente impopular. A segunda é que nun­ca fui casado, e, portanto, não posso falar sobre ele por experiência própria. Apesar disso, sinto que não posso deixar este assunto de lado num sumário da moral cristã.

A idéia crista de casamento se baseia nas palavras de Cristo de que o homem e a mulher devem ser con­siderados um único organismo – tal é o sentido que as palavras “uma só carne” teriam numa língua moderna. Os cristãos acreditam que, quando disse isso, ele não estava expressando um sentimento, mas afirmando um fato — da mesma forma que expressa um fato quem diz que o trinco e a chave são um único mecanismo, ou que o violino e o arco formam um único instrumento mu­sical. O inventor da máquina humana queria nos dizer que as duas metades desta, o macho e a fêmea, foram feitas para combinar-se aos pares, não simplesmente na esfera sexual, mas em todas as esferas. A monstruosidade da relação sexual fora do casamento é que, cedendo a ela, tenta-se isolar um tipo de união (a sexual) de todos os outros tipos de união que deveriam acompanhá-la para compor a união total. A atitude cristã não toma como errada a existência de prazer no sexo, como não considera errado o prazer que temos quando nos alimen­tamos. O erro está em querer isolar esse prazer e tentar buscá-lo por si mesmo, da mesma maneira que não se deve buscar os prazeres do paladar sem engolir e digerir a comida, apenas mastigando-a e cuspindo-a.

Em conseqüência, o cristianismo ensina que o ca­samento deve durar a vida toda. Neste ponto, é claro que existem diferenças entre as diversas Igrejas: algumas não admitem o divórcio em hipótese alguma; outras o admitem com relutância em casos específicos. E uma grande lástima que os cristãos divirjam quanto a essa questão; para um leigo, porém, o fato a notar é que, no que diz respeito ao casamento, todas as Igrejas concor­dam muito mais umas com as outras do que concordam com o que vem do mundo exterior. Todas encaram o divórcio como se fosse algo que cortasse ao meio um or­ganismo vivo, como um tipo de cirurgia. Algumas acham que essa cirurgia é tão violenta que não deve ser feita de forma alguma. Outras a admitem como um recurso desesperado em casos extremos. Todas asseveram que o di­vórcio se parece mais com a amputação das pernas do corpo do que com a dissolução de uma sociedade co­mercial ou mesmo com o ato de deserção de um soldado. O que todas elas repudiam é a visão moderna de que o divórcio é simplesmente um reajustamento de parcei­ros, a ser feito sempre que as pessoas não se sentem mais apaixonadas uma pela outra, ou quando uma de­las se apaixona por outra pessoa.

Antes de analisar essa visão moderna e sua relação com a castidade, não devemos deixar de considerar sua relação com outra virtude – a saber, a justiça. A justiça, como eu disse antes, inclui a fidelidade à própria pala­vra. Todos os que se casaram na igreja fizeram a promes­sa pública e solene de permanecer unidos até a morte. O dever de cumprir essa promessa não tem nenhum vínculo especial com a moralidade sexual: ela está em pé de igualdade com qualquer outra promessa. Se, como as pessoas hoje em dia insistem em dizer, o impulso se­xual é igual a todos os outros impulsos, então deve ser tratado em pé de igualdade com eles. Assim como o gozo de todo e qualquer impulso é controlado por nos­sas promessas, assim deve ser o gozo do impulso sexual. No entanto, se, segundo penso, ele não é igual a nossos demais impulsos, mas encontra-se morbidamente in­flamado, devemos ter mais cautela para que ele não nos leve à desonestidade.

Certas pessoas podem retrucar dizendo que consi­deram a promessa feita na igreja uma simples formali­dade, a qual nunca tencionaram cumprir. A quem, en­tão, pretendiam enganar quando fizeram tal promessa? A Deus? Isso não é nada sensato. A si mesmas? Isso não é muito mais sensato que a alternativa anterior. Enganar a noiva, o noivo, os sogros? Isso é traição. E mais fre­qüente, na minha opinião, o casal (ou um deles) querer enganar o público. Quer a respeitabilidade que vem do casamento sem ter de pagar por isso: ou seja, são impostores, são enganadores. Se essas pessoas são desonestas e não se preocupam com isso, não tenho nada a lhes dizer. Quem poderia adverti-las a seguir o nobre, mas penoso, dever da castidade, se elas não pretendem nem mesmo ser honestas? Caso recobrassem a razão, a pró­pria promessa feita as constrangeria. Tudo isso, como você pode notar, está circunscrito ao âmbito da justiça, e não da castidade. Se as pessoas não acreditam em ca­samento para sempre, talvez seja melhor viver juntas sem estar casadas que fazer uma promessa que não pre­tendem cumprir. É claro que, ao viver juntas sem estar unidas pelo matrimônio, elas são culpadas de fornicação (sob o ponto de vista cristão). Uma falta, porém, não conserta a outra: a falta de castidade não é mino­rada quando a ela se acrescenta o perjúrio.

A idéia de que “estar enamorado” é o único motivo válido para permanecer casado é totalmente contrária à idéia do matrimônio como um contrato ou mesmo como uma promessa, Se tudo se resume ao amor, o ato da promessa nada lhe acrescenta; e, assim, nem deveria ser feito. Uma coisa curiosa é que os próprios amantes, enquanto permanecem apaixonados, sabem disso mui­to mais que os que só falam de amor. Como observou Chesterton[7], os apaixonados têm a tendência natural de fazer promessas um ao outro. As canções de amor do mundo inteiro estão repletas de juras de fidelidade eter­na. A lei cristã não exige do amor algo que é alheio à sua natureza: exige apenas que os amantes levem a sério algo que a própria paixão os impele a fazer.

E é evidente que a promessa de ser fiel para sem­pre, que fiz quando estava apaixonado e porque o estava, deve ser cumprida mesmo que deixe de estar. A promes­sa diz respeito a ações, a coisas que posso fazer: ninguém pode fazer a promessa de ter um determinado senti­mento para sempre. Seria o mesmo que prometer nunca mais ter dor de cabeça ou nunca mais ter fome. Pode-se perguntar, no entanto, qual o sentido de manter uni­das duas pessoas que não se amam mais. Existem várias razões sociais bem fundamentadas para tanto: dar um lar para os filhos, proteger a mulher (que provavelmen­te sacrificou a carreira pelo casamento) de ser trocada por outra quando o marido se cansar dela. Existe, no entanto, um outro motivo do qual estou bastante con­vencido, mesmo que o julgue difícil de explicar.

E difícil porque tanta gente não consegue se dar con­ta de que, mesmo que “B” seja melhor que “C”, talvez “A” seja melhor que ambos. As pessoas gostam de racio­cinar com os termos “bom” e “mau”, não com os ter­mos “bom”, “melhor” e “o melhor de todos”, e “ruim”, “pior” e “o pior de todos”. Elas perguntam se você jul­ga o patriotismo uma coisa boa; se você responde que ele é muito melhor que o egoísmo dos indivíduos, mas bastante inferior à caridade universal, e que deve ceder lugar a esta sempre que os dois estiverem em conflito, elas acham sua resposta evasiva. Perguntam o que você acha dos duelos. Se você responde que é muito melhor um homem perdoar o próximo que duelar com ele, mas que o duelo pode ser uma alternativa melhor que uma inimizade eterna, expressa no esforço secreto de causar a ruína do oponente, elas se queixam de que você não ofe­receu uma resposta franca e direta. Espero que ninguém cometa o mesmo erro com o que tenho a dizer agora. O que chamamos de “estar apaixonado” é um esta­do maravilhoso e, sob diversos aspectos, benéfico para nós. Ajuda-nos a ser mais generosos e corajosos, abre nos­sos olhos não apenas para a beleza do objeto amado, mas para toda a beleza, e subordina (especialmente no início) nossa sexualidade animal; nesse sentido, o amor é o grande subjugador do desejo. Ninguém que tenha o uso perfeito da razão negaria que estar apaixonado é melhor que a sensualidade ordinária ou o frio egocen­trismo. Mas, como eu disse antes, “a coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como padrão a ser seguido custe o que custar”. Estar apaixonado é muito bom, mas não é a melhor coisa do mundo. Existem muitas coisas abaixo, mas tam­bém muitas outras acima disso. A paixão amorosa não pode ser a base de uma vida inteira. E um sentimento nobre, mas, mesmo assim, é apenas um sentimento. Não podemos nos fiar em que um sentimento vá con­servar para sempre sua intensidade total, ou mesmo que vá perdurar. O conhecimento perdura, como também os princípios e os hábitos, mas os sentimentos vêm e vão.

E, o que quer que as pessoas digam, a verdade é que o estado de paixão amorosa normalmente não dura. Se o velho final dos contos de fadas: “E viveram felizes para sempre”, quisesse dizer que “pelos cinqüenta anos seguin­tes sentiram-se atraídos um pelo outro como no dia anterior ao casamento”, estaria se referindo a algo que não acontece na realidade, que não pode acontecer e que, mesmo que pudesse, seria pouquíssimo recomendável. Quem conseguiria viver nesse estado de excitação mes­mo por cinco anos? Que seria do trabalho, do apetite, do sono, das amizades? E claro, porém, que o fim da pai­xão amorosa não significa o fim do amor. O amor nesse segundo sentido – distinto da “paixão amorosa” – não é um mero sentimento. E uma unidade profunda, man­tida pela vontade e deliberadamente reforçada pelo há­bito; é fortalecida ainda (no casamento cristão) pela graça que ambos os cônjuges pedem a Deus e dele re­cebem. Eles podem fruir desse amor um pelo outro mes­mo nos momentos em que se desgostam, da mesma for­ma que amamos a nós mesmos mesmo quando não gos­tamos da nossa pessoa. Conseguem manter vivo esse amor mesmo nas situações em que, caso se descuidas­sem, poderiam ficar “apaixonados” por outra pessoa. Foi a “paixão amorosa” que primeiro os moveu a jurar fidelidade recíproca. O amor sereno permite que cum­pram o juramento. E através desse amor que a máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em funcionamento.

Se você discorda de mim, é claro que vai dizer: “Ele não sabe do que está falando. Ele nem é casado.” Talvez você tenha razão. Antes de dizer isso, porém, tome o cuidado de embasar seu julgamento nas coisas que você conhece por experiência pessoal ou pela obser­vação de seus amigos, e não em idéias derivadas de ro­mances ou de filmes. Isso não é tão fácil de fazer quanto as pessoas pensam. Nossa experiência é preenchida pelas cores dos livros, peças de teatro e filmes do cinema, e é necessário ter paciência para delas desentranhar e para separar o que aprendemos da vida por nós mesmos.

As pessoas tiram dos livros a idéia de que, se você casou com a pessoa certa, viverá “apaixonado” para sem­pre. Como resultado, quando se dão conta de que não é isso o que ocorre, chegam à conclusão de que comete­ram um erro, o que lhes daria o direito de mudar – não percebem que, da mesma forma que a antiga paixão se desvaneceu, a nova também se desvanecerá. Nesse de­partamento da vida, como em qualquer outro, a excita­ção é própria do início e não dura para sempre. A emoção intensa que um garoto tem quando pensa em aprender a pilotar um avião não sobrevive quando ele se junta à Força Aérea, onde realmente vai aprender o que é voar. A palpitação de conhecer um lugar novo se esvai quando se passa a morar lá. Acaso quero dizer que não devemos aprender a voar ou não devemos morar num lugar apra­zível? De jeito nenhum. Em ambos os casos, se você perseverar, o arrepio da novidade, quando morre, é com­pensado por um interesse mais sereno e duradouro. Além disso (e mal consigo lhe dizer o quanto isto é importan­te), são exatamente as pessoas dispostas a sofrer a perda do frêmito inicial e a acatar esse interesse mais sóbrio que têm maior probabilidade de encontrar novas emo­ções em campos diferentes. O homem que aprendeu a voar e se tornou um bom piloto subitamente descobre a música; o homem que se estabeleceu num local idílico descobre a jardinagem.

Segundo me parece, essa é uma pequena parte do que Cristo quis dizer quando afirmou que nada pode viver realmente sem antes morrer. Simplesmente não vale a pena tentar manter viva uma sensação forte e fu­gaz: é a pior coisa que podemos fazer. Deixe o frisson ir embora — deixe-o morrer. Se você passar por esse perío­do de morte e penetrar na felicidade mais discreta que o segue, passará a viver num mundo que a todo tempo lhe dará novas emoções. Mas, se fizer das emoções for­tes a sua dieta diária e tentar prolongá-las artificialmen­te, elas vão se tornar cada vez mais fracas, cada vez mais raras, até você virar um velho entediado e desiludido para o resto da vida. É por serem tão poucas as pessoas que entendem isso que encontramos tantos homens e mulheres de meia-idade lamentando a juventude per­dida, na idade mesma em que novos horizontes deve­riam descortinar-se e novas portas deveriam abrir-se. E muito mais divertido aprender a nadar que tentar resga­tar incessantemente (e inutilmente) a sensação da pri­meira vez que chapinhamos na água quando garotos.

Outra idéia que apreendemos de romances e peças de teatro é que a paixão amorosa é algo irresistível, algo que simplesmente “contraímos”, como sarampo. Por acre­ditar nisso, certas pessoas casadas largam tudo e se atiram a um novo amor quando se sentem atraídas por alguém. Penso, porém, que essas paixões irresistíveis são muito mais raras na vida real que nos livros, pelo menos depois de chegarmos à idade adulta. Quando conhecemos uma pessoa bonita, inteligente e bem-humorada, é claro que devemos, num certo sentido, admirar e amar essas belas qualidades. Porém, não cabe a nós em boa medida julgar se esse amor deve ou não dar lugar ao que chamamos de paixão amorosa? Sem dúvida, se nossa cabeça está cheia de romances, peças e canções sentimentalistas, e nosso corpo está cheio de álcool, vamos tender a transformar qualquer amor nesse tipo específico de amor, da mesma forma que, se houver uma valeta junto à estrada num dia de chuva, toda a água vai correr por ela, ou, se você esti­ver usando um par de óculos de lentes azuis, tudo ficará azulado. A culpa será sua.

Antes de deixar a questão do divórcio, gostaria de esclarecer a distinção entre duas coisas que geralmente se confundem. Uma delas é a concepção cristã de casa­mento; a outra, completamente diferente, é se os cris­tãos, enquanto eleitores ou membros do Parlamento, de­vem impor sua visão do casamento sobre o restante da comunidade, incorporando essa visão às leis estatais que regem o divórcio. Um grande número de pessoas pare­ce pensar que, se você é cristão, deve tentar tornar o di­vórcio difícil para todo o mundo. Eu não penso assim. Pelo menos creio que ficaria bastante zangado se os mu­çulmanos tentassem proibir que o restante da popula­ção tomasse vinho. Minha opinião é que as Igrejas devem reconhecer francamente que a maioria dos britâ­nicos não são cristãos, e, portanto, não se deve esperar que levem uma vida crista. Deve haver dois tipos dis­tintos de casamento: um governado pelo Estado, com regras aplicáveis a todos os cidadãos, e outro governa­do pela Igreja, com regras que ela mesma aplica a seus membros. A distinção entre os dois tipos deve ser bas­tante nítida, de tal forma que se saiba sem sombra de dúvida quais casais são casados pela Igreja e quais não.

Isso já é o bastante a respeito da doutrina cristã da indissolubilidade do casamento. Resta tratar de outra coisa, ainda menos popular. As esposas cristãs fazem o voto de obedecer a seus maridos. No casamento cristão, diz-se que os homens são a “cabeça”. Duas questões ob­viamente se levantam. (1) Por que a necessidade de uma “cabeça” — por que não a igualdade? (2) Por que a “cabeça” deve ser o homem?

  • A necessidade de uma cabeça segue-se da idéia de que o casamento é permanente. E claro que, na me­dida em que o marido e a esposa estão de acordo, a ne­cessidade de um líder desaparece; e gostaríamos que esse fosse o estado de coisas normal no casamento cristão. Mas, quando existe um desacordo real, o que se deve fa­zer? Conversar sobre o assunto, é claro; estou partindo da idéia de que tentatam fazer isso e mesmo assim não conseguiram chegar a um acordo. O que fazer então? O casal não pode decidir por votação, pois não existe maioria absoluta entre duas pessoas. Certamente, uma das duas coisas pode acontecer: podem separar-se e cada um ir para o seu lado, ou então uma das partes deve ter o poder de decisão. Se o casamento é permanente, uma das duas partes deve, em última instância, ter o poder de decidir a política familiar. Não se pode ter uma asso­ciação permanente sem uma constituição.
  • Se há a necessidade de um líder, por que o ho­mem? Em primeiro lugar, pergunto: existe uma vontade generalizada de que isso caiba à mulher? Como eu dis­se, não sou casado, mas, pelo que vejo, nem mesmo a mulher que quer ser a chefe de sua própria casa admira essa situação quando a observa na casa ao lado. Nessas circunstâncias, costuma exclamar: “Pobre sr. X! Por que ele se deixa dominar por aquela mulherzinha horrível? Isso está acima da minha compreensão.” Também não penso que ela fique lisonjeada quando alguém mencio­na o fato de ser ela a “cabeça”. Deve haver algo de anti-natural na proeminência das esposas sobre os maridos, pois as próprias esposas ficam bastante envergonhadas disso e desprezam o marido que se submete. Porém, há mais uma razão, e sobre ela falo francamente a partir da minha condição de solteiro, pois pode ser vista me­lhor por quem está de fora que por quem está dentro. As relações da família com o mundo exterior – o que poderíamos chamar de política externa — devem de­pender, em última análise, do homem, porque ele deve ser, e normalmente é, mais justo em relação às pessoas de fora. A mulher luta prioritariamente pelos filhos e pelo marido contra o resto do mundo. Naturalmente e, em certo sentido, quase com razão, as necessidades de­les são priorizadas em detrimento de todas as outras ne­cessidades. A mulher é a curadora especial dos interes­ses da família. A função do marido é garantir que essa predisposição natural da mulher não chegue a predo­minar. Ele tem a última palavra para proteger as outras pessoas do intenso patriotismo familiar da esposa. Se al­guém duvida de mim, deixe-me fazer uma pergunta simples. Se seu cachorro mordeu a criança da casa ao lado, ou se seu filho machucou o cachorro do vizinho, com quem você prefere tratar — com o chefe da família ou com a dona da casa? E, se você é uma mulher casada, deixe-me fazer outra pergunta. Apesar de admirar seu marido, você não diria que a falha principal dele está em não fazer valer os direitos da família contra os dos vizinhos tão vigorosamente quanto você gostaria? Não seria ele apaziguador demais?

 

7. O PERDÃO

Eu disse no capítulo anterior que a castidade era a menos popular das virtudes cristãs. Mas não estou tão certo disso. Acredito que haja uma virtude ainda me­nos popular, expressa na regra cristã “Amarás a teu pró­ximo como a ti mesmo”. Porque, na moral cristã, “amar o próximo” inclui “amar o inimigo”, o que nos impin­ge o odioso dever de perdoar nossos inimigos.

Todos dizem que o perdão é um ideal belíssimo até terem algo a perdoar, como nós tivemos durante a guer­ra. Nesse momento, a simples menção do assunto é re­cebida com bramidos de ódio. Não é que as pessoas julguem essa virtude muito elevada e difícil de praticar: julgam-na, isto sim, odiosa e desprezível. “Essa conversa nos dá nojo”, dizem. E metade de vocês já deve estar querendo me perguntar: “E, se você fosse judeu ou po­lonês, perdoaria a Gestapo?”

Eu também me faço essa pergunta. Faço-a muitas vezes. Do mesmo modo, quando o cristianismo me diz que não posso negar minha religião mesmo que seja para me salvar da morte pela tortura, pergunto-me muitas vezes qual seria minha atitude numa situação dessas. Neste livro, não quero lhe dizer o que eu faria — aliás, o que posso fazer é bem pouco —, mas sim o que é o cris­tianismo. Não fui eu que o inventei. E ali, bem no meio dele, encontro as palavras: “Perdoa as nossas dívidas, as­sim como perdoamos aos nossos devedores.” Não há a menor insinuação de que exista outra maneira de obter­mos o perdão. Está perfeitamente claro que, se não per­doarmos, não seremos perdoados. Não há alternativa. O que podemos fazer?

Vai ser difícil de qualquer modo, mas creio que exis­tem duas coisas que podemos fazer para facilitar um pouco as coisas. Quando vamos estudar matemática, não começamos pelo cálculo integral, mas pela simples arit­mética. Da mesma maneira, se realmente queremos (e tudo depende dessa vontade real) aprender a perdoar, o melhor talvez seja começar com algo mais fácil que a Gestapo. Você pode começar por perdoar seu marido ou esposa, seus pais ou filhos ou o funcionário público mais próximo por tudo o que fizeram e disseram na sema­na passada. Isso já vai lhe dar trabalho. Em segundo lu­gar, você deve tentar entender exatamente o que signi­fica amar o próximo como a si mesmo. Tenho de amá-lo como amo a mim mesmo. Bem, como é exatamente esse amor a mim mesmo?

Agora que começo a pensar no assunto, vejo que não nutro exatamente um grande afeto nem tenho especial predileção pela minha pessoa, e nem sempre gosto da minha própria companhia. Aparentemente, portanto, “amar o próximo” não significa “ter grande simpatia por ele” nem “considerá-lo um grande sujeito”. Isso já de­veria ser evidente, pois não conseguimos gostar de al­guém por esforço. Será que eu me considero um bom camarada? Infelizmente, às vezes sim (e esses são, sem dú­vida, meus piores momentos), mas não é por esse moti­vo que amo a mim mesmo. Na verdade, o que acontece é o inverso: não é por considerar-me agradável que amo a mim mesmo; é meu amor próprio que faz com que eu me considere agradável. Analogamente, portanto, amar meus inimigos não é o mesmo que considerá-los boas pessoas. O que não deixa de ser um grande alívio, pois muita gente imagina que perdoar os inimigos significa concluir que eles, no fim das contas, não são tão maus assim, ao passo que é evidente que são. Vamos dar um passo adiante. Nos meus momentos de maior lucidez, vejo que não somente não sou lá um grande sujeito como posso ser uma péssima pessoa. Recuo com horror e repugnância diante de certas coisas que fiz. Logo, isso parece me dar o direito de me sentir horrorizado e repugnado diante dos atos de meus inimigos. Aliás, pen­sando no assunto, lembro que os primeiros mestres cris­tãos já diziam que se devem odiar as ações de um ho­mem mau, mas não odiar o próprio homem; ou, como eles diriam, odiar o pecado, mas não o pecador.

Por muito tempo julguei essa distinção tola e insig­nificante: como se pode odiar o que um homem faz e não odiá-lo por isso? Somente anos depois me ocorreu que fora exatamente essa a conduta que eu sempre ti­vera com uma pessoa em particular: eu mesmo. Por mais que eu abominasse minha covardia, vaidade ou cobiça, continuei amando a mim mesmo. Nunca tive a menor dificuldade para isso. Na verdade, a razão mesma pela qual detestava tais coisas é que amava o homem que as co­metia. Por amar a mim mesmo, sentia um profundo pe­sar por agir assim. Conseqüentemente, o cristianismo não quer ver reduzida a um átomo a aversão que sentimos pela crueldade e pela deslealdade. Devemos odiá-las. Não devemos desdizer nada do que dissemos a esse res­peito. Porém, devemos odiá-las da mesma forma que odiámos nossos próprios atos: sentindo pena do homem que as praticou e tendo, na medida do possível, a esperança de que, de alguma forma, em algum tempo e lu­gar, ele possa ser curado e se tornar novamente um ser humano.

A verdadeira prova é a seguinte: suponha que você leia no jornal uma reportagem sobre atrocidades ignominiosas e que, no final, se revele que a reportagem era falsa ou que as atrocidades não eram tão terríveis quanto na primeira versão. Qual será sua reação? Será “graças a Deus, nem eles são capazes de tanta maldade”? Ou você ficará decepcionado, disposto até a continuar acre­ditando na primeira reportagem pelo simples prazer de continuar julgando seus inimigos tão maus quanto pos­sível? Se for a segunda reação, infelizmente você dará o primeiro passo de um processo que, no final, o trans­formará num demônio. E fácil notar que a pessoa que agiu assim está começando a desejar que a escuridão seja um pouco mais escura. Se dermos vazão a esse tipo de sentimento, logo estaremos desejando que a penumbra também seja escura, e, depois, que a própria claridade seja negra. No final, insistiremos em ver tudo — inclusi­ve Deus, nossos amigos e nós mesmos — como maus, e não seremos capazes de parar. Estaremos presos para sempre num universo de puro ódio.

Vamos dar um passo além. Será que amar o inimigo quer dizer que não devemos puni-lo? Não, de maneira alguma. O amor que sinto por mim não me exime do dever de me submeter à punição — nem mesmo à morte. Se você cometesse um assassinato, a coisa correta a fa­zer, segundo o cristianismo, seria entregar-se à polícia para ser enforcado. Na minha opinião, portanto, é per­feitamente correto que um juiz cristão sentencie um homem à morte ou que um soldado cristão mate o ini­migo em combate. Sempre pensei assim, desde que me tornei cristão e desde muito antes da guerra, e meu pen­samento não mudou em nada agora que estamos em paz. Não vai adiantar citar “Não matarás”. Existem no grego duas palavras: uma geral para matar, e outra es­pecífica para assassinar. Quando Cristo pronunciou esse mandamento, ele usou a palavra equivalente a assassinar nos três relatos: em Mateus, Marcos e Lucas. Disseram-me que a mesma distinção existe no hebraico. Nem todo ato de matar é assassinato, da mesma forma que nem todo ato sexual é adultério. Quando os soldados se dirigiram a João Batista perguntando-lhe o que fazer, ele nem de longe sugeriu que abandonassem o exército; tampouco o fez Cristo quando conheceu um sargento-mor romano — que eles chamavam de centurião. O ideal do cavaleiro — o cristão armado na defesa de uma boa causa – é um dos grandes ideais cristãos. A guerra é uma coisa terrível e tenho respeito pelos pacifistas ho­nestos, apesar de achar que eles estão redondamente en­ganados. O que não consigo entender é esse semipacifismo de hoje em dia, que dá às pessoas a idéia de que, apesar de ser nosso dever lutar, devemos fazê-lo desola­dos, como se estivéssemos envergonhados desse ato. Não é outro o sentimento que rouba um grande número de nossos magníficos jovens cristãos, jovens que se alista­ram e que têm toda justificativa para lutar, de algo que é a conseqüência natural da coragem — uma espécie de brio, júbilo e entusiasmo.

Penso com freqüência no que teria acontecido se, durante a Primeira Guerra Mundial, quando servi como soldado, eu e um jovem alemão matássemos um ao ou­tro e nos encontrássemos logo depois da morte. Não consigo imaginar que nenhum de nós sentisse um pingo de ressentimento ou de embaraço. Creio que, juntos, daríamos boas risadas.

Imagino que alguém dirá: “Bem, se podemos con­denar os atos do inimigo, puni-lo e mesmo matá-lo, qual é então a diferença entre a moral cristã e a moral co­mum?” Toda a diferença do mundo. Lembre-se de que nós, cristãos, acreditamos que o homem vive eterna­mente. Logo, o que realmente importa são as pequenas marcas deixadas e as pequenas mudanças feitas na parte central e interior da alma, as quais vão nos tornar, a longo prazo, numa criatura celestial ou infernal. Talvez sejamos obrigados a matar, mas não devemos alimentar o ódio nem gostar de odiar. Podemos punir, se isso for necessário, mas não devemos gostar de punir. Em outras pa­lavras, os sentimentos de ressentimento e de vingança de­vem ser simplesmente exterminados de dentro de nós. Bem sei que ninguém tem o poder de decidir que, des­te momento em diante, não terá tais sentimentos. As coisas não acontecem assim. Quero somente dizer que, toda vez que esses sentimentos levantarem a cabeça, de­vemos espancá-la — dia após dia, ano após ano, até o fim da nossa vida. É um trabalho árduo, mas não é im­possível tentar executá-lo. Mesmo no momento em que castigamos ou matamos o inimigo, devemos sentir por ele o mesmo que sentimos por nós — devemos desejar que ele não seja mau; devemos ter a esperança de que algum dia, neste mundo ou em outro, ele venha a curar-se. Falando claramente, devemos desejar o seu bem. E isso que a Bíblia quer dizer com o amor ao próximo: desejar o seu bem, sem ter de sentir afeto nem dizer que ele é gentil quando não é.

Admito que isso significa amar pessoas que não têm nada de amáveis. Mas pergunto: será que eu mesmo sou uma pessoa digna de ser amada? Amo a mim mes­mo simplesmente porque sou eu mesmo. Deus quer que amemos a todas as criaturas, todos os “eus”, da mesma forma e pela mesma razão: apenas, no caso pessoal de cada um, já deu o resultado certo da conta para nos en­sinar como é que se soma. Devemos, a partir disso, aplicar a regra a todas as outras pessoas. Talvez isso se tor­ne mais fácil se lembrarmos que é dessa forma que ele nos ama. Não pelas belas qualidades que julgamos pos­suir, mas simplesmente porque cada um de nós é um “eu”. Pois, na realidade, não existe mais nada em nós que seja digno de amor: nós, que encontramos um prazer tão grande no ódio que abdicar dele é mais difícil que largar a bebida ou o cigarro…

 

8. O GRANDE PECADO

Chego agora à parte em que a moral cristã difere mais nitidamente de todas as outras morais. Existe um ví­cio do qual homem algum está livre, que causa repug­nância quando é notado nos outros, mas do qual, com a exceção dos cristãos, ninguém se acha culpado. Já ouvi quem admitisse ser mau humorado, ou não ser capaz de resistir a um rabo de saia ou à bebida, ou mesmo ser covarde. Mas acho que nunca ouvi um não-cristão se acusar desse vício. Ao mesmo tempo, é raríssimo encon­trar um não-cristão que tenha alguma tolerância com esse vício nas outras pessoas. Não existe nenhum outro defeito que torne alguém tão impopular, e mesmo as­sim não existe defeito mais difícil de ser detectado em nós mesmos. Quanto mais o temos, menos gostamos de vê-lo nos outros.

O vício de que estou falando é o orgulho ou a pre­sunção. A virtude oposta a ele, na moral cristã, é cha­mada de humildade. Você deve se lembrar de que, quan­do falávamos sobre a moralidade sexual, adverti que não era ela o centro da moral cristã. Bem, agora chegamos ao centro. De acordo com os mestres cristãos, o vício fun­damental, o mal supremo, é o orgulho. A devassidão, a ira, a cobiça, a embriaguez e tudo o mais não passam de ninharias comparadas com ele. E por causa do orgulho que o diabo se tornou o que é. O orgulho leva a todos os outros vícios; é o estado mental mais oposto a Deus que existe.

Parece que estou exagerando? Se você acha que sim, pense um pouco mais no assunto. Agora há pouco, ob­servei que, quanto mais orgulho uma pessoa tem, me­nos gosta de vê-lo nos outros. Se quer descobrir quão orgulhoso você é, a maneira mais fácil é perguntar-se: “Quanto me desagrada que os outros me tratem como inferior, ou não notem minha presença, ou interfiram nos meus negócios, ou me tratem com condescendência, ou se exibam na minha frente?” A questão é que o or­gulho de cada um está em competição direta com o orgu­lho de todos os outros. Se me sinto incomodado por­que outra pessoa fez mais sucesso na festa, é porque eu mesmo queria ser o grande sucesso. Dois bicudos não se beijam. O que quero deixar claro é que o orgulho é es­sencialmente competitivo — por sua própria natureza -, ao passo que os outros vícios só o são acidentalmente, por assim dizer. O prazer do orgulho não está em se ter algo, mas somente em se ter mais que a pessoa ao lado. Dizemos que uma pessoa é orgulhosa por ser rica, inte­ligente ou bonita, mas isso não é verdade. As pessoas são orgulhosas por serem mais ricas, mais inteligentes e mais bonitas que as outras. Se todos fossem igualmente ri­cos, inteligentes e bonitos, não haveria do que se orgu­lhar. É a comparação que torna uma pessoa orgulhosa: o prazer de estar acima do restante dos seres. Eliminado o elemento de competição, o orgulho se vai. E por isso que eu disse que o orgulho ê essencialmente competitivo de uma forma que os outros vícios não são. O impulso sexual pode levar dois homens a competir se ambos es­tão interessados na mesma moça. Mas a competição ali é acidental; eles poderiam, com a mesma facilidade, ter se interessado por moças diferentes. Um homem orgu­lhoso, porém, fará questão de tomar a sua garota, não por desejá-la, mas para provar para si mesmo que é me­lhor do que você. A cobiça pode levar os homens a com­petir entre si se não existe o suficiente para todos; mas o homem orgulhoso, mesmo que tenha mais do que ja­mais poderia precisar, vai tentar acumular mais ainda só para afirmar seu poder. Praticamente todos os males no mundo que as pessoas julgam ser causados pela cobi­ça ou pelo egoísmo são bem mais o resultado do orgulho. Veja a questão do dinheiro. A cobiça pode fazer com que o homem deseje ganhar dinheiro para comprar uma casa melhor, poder viajar nas férias e ter coisas mais apetitosas para comer e beber. Mas só até certo ponto. O que faz com que um homem que ganha 10.000 li­bras por ano fique ansioso para ganhar 20.000 libras? Não é a cobiça de mais prazer. A soma de 10.000 libras pode sustentar todos os luxos de que ele queira desfrutar. E o orgulho — o desejo de ser mais rico que os outros ricos e, mais do que isso, o desejo de poder. Pois, evi­dentemente, é do poder que o orgulho realmente gos­ta: nada faz o homem sentir-se tão superior aos outros quanto o fato de poder movê-los como soldadinhos de brinquedo. Por que uma moça bonita à caça de admi­radores espalha a infelicidade por onde quer que vá? Cer­tamente não é por causa de seu instinto sexual: esse tipo de moça é quase sempre sexualmente frígida. É o orgulho. O que faz um líder político ou uma nação inteira quererem expandir-se indefinidamente, exigindo tudo para si? De novo, o orgulho. Ele é competitivo pela pró­pria natureza: é por isso que se expande indefinidamen­te. Se sou um homem orgulhoso, enquanto existir al­guém mais poderoso do que eu, ou mais rico, ou mais es­perto, esse será meu rival e meu inimigo.

Os cristãos estão com a razão: o orgulho é a causa principal da infelicidade em todas as nações e em todas as famílias desde que o mundo foi criado. Os outros ví­cios podem, às vezes, até mesmo congregar as pessoas: pode haver uma boa camaradagem, risos e piadas entre gente bêbada ou entre devassos. O orgulho, porém, sem­pre significa a inimizade – é a inimizade. E não só ini­mizade entre os homens, mas também entre o homem e Deus.

Em Deus defrontamos com algo que é, em todos os aspectos, infinitamente superior a nós. Se você não sabe que Deus é assim — e que, portanto, você não é nada comparado a ele -, não sabe absolutamente nada sobre Deus. O homem orgulhoso sempre olha de cima para baixo para as outras pessoas e coisas: é claro que, fazen­do assim, não pode enxergar o que está acima de si.

Isso levanta uma questão terrível. Como podem exis­tir pessoas evidentemente cheias de orgulho que decla­ram acreditar em Deus e se consideram muitíssimo reli­giosas? Infelizmente, elas adoram um Deus imaginário. Na teoria, admitem que não são nada comparadas a esse Deus fantasma, mas na prática passam o tempo todo a imaginar o quanto ele as aprova e as tem em melhor con­ta que ao resto dos comuns mortais. Ou seja, pagam al­guns tostões de humildade imaginária para receber uma fortuna de orgulho em relação a seus semelhantes. Suponho que é a esse tipo de gente que Cristo se referia quando dizia que pregariam e expulsariam os demônios em seu nome, mas no final ouviriam dele que jamais os conhecera. Cada um de nós, a todo momento, vê-se diante dessa armadilha mortal. Felizmente, temos como saber se caímos nela ou não. Sempre que constatamos que nossa vida religiosa nos faz pensar que somos bons — sobretudo, que somos melhores que os outros —, po­demos ter certeza de que estamos agindo como mario­netes, não de Deus, mas do diabo. A verdadeira prova de que estamos na presença de Deus é que nos esque­cemos completamente de nós mesmos ou então nos ve­mos como objetos pequenos e sujos. O melhor é esque­cer-nos de nós mesmos.

É uma coisa terrível que o pior de todos os vícios insinue-se assim no próprio centro de nossa vida religio­sa. Mas é fácil saber por que isso acontece. Todos os vícios menores vêm do diabo quando trabalha sobre o nosso lado animal. Este vício, porém, não nasce em absoluto da nossa natureza animal. Vem diretamente do infer­no. E puramente espiritual: conseqüentemente, muito mais sutil e perigoso. Pela mesma razão, o orgulho é usa­do com freqüência para vencer os vícios mais simples. Os professores, que sabem disso, apelam costumeiramente para o orgulho dos meninos, ou, como dizem, para seu amor-próprio, a fim de fazê-los comportar-se direito. Mais de um homem conseguiu superar a covar­dia, a luxúria ou o mau humor pela crença inculcada de que tudo isso estava abaixo da sua dignidade. Ou seja, venceram pelo orgulho. O diabo ri às gargalhadas. Fica satisfeitíssimo de nos ver castos, corajosos e controla­dos desde que, em troca, prepare para nós uma Dita­dura do Orgulho. Do mesmo modo, ele ficaria contente de curar as frieiras dos nossos pés se pudesse, em troca, nos deixar com câncer. O orgulho é um câncer espiri­tual: ele corrói a possibilidade mesma do amor, do con­tentamento e até do bom senso.

Antes de sair deste assunto, é bom me resguardar de certos mal-entendidos:

(1) O prazer do elogio não é orgulho. A criança que recebe um tapinha nas costas por fazer bem o dever de casa, a mulher cuja beleza é elogiada pelo marido, a alma salva para quem Cristo diz “Muito bem”: todos ficam contentes, e têm todo o direito de ficar. Em cada uma dessas situações, as pessoas não se comprazem naquilo que são, mas no fato de terem agradado a alguém que (pelos motivos corretos) queriam agradar. O problema começa quando você deixa de pensar “Eu o agradei: tudo está bem”, e substitui esse pensamento por outro: “Eu sou mesmo uma pessoa magnífica por ter feito isso.” Quanto mais você se compraz em si mesmo e menos no elogio, pior você fica. Quando todo o seu deleite vem de você mesmo e você não se importa mais com o elogio, chegou ao fundo do poço. É por isso que a vaidade, em­bora seja o tipo de orgulho mais visível no exterior, é também o menos grave e mais facilmente perdoável. A pessoa vaidosa deseja demais o elogio, o aplauso, a ad­miração, e está sempre em busca dessas coisas. É um de­feito – mas é um defeito quase infantil e (estranhamen­te) bastante modesto. Demonstra que a pessoa não está inteiramente satisfeita com a admiração que nutre por si mesma. Levando em conta a opinião alheia, ela mos­tra que ainda valoriza um pouco as outras pessoas. Em resumo, ela ainda é humana. O orgulho diabólico nas­ce quando desprezamos tanto os outros que não mais le­vamos em consideração o que pensam de nós. Eviden­temente, é corretíssimo, e às vezes é nosso dever, não nos importar com a opinião dos outros, mas sempre pelo motivo correto, ou seja, porque nos importamos infi­nitamente mais com a opinião de Deus. Já o homem orgulhoso tem um motivo diferente para não se impor­tar. Ele pensa: “Por que devo me importar com o aplau­so da plebe se a opinião dela não vale nada? Mesmo se valesse, não sou de ficar corado por causa de um cumpri­mento como se fosse uma mocinha em seu primeiro baile. Não; sou dono de uma personalidade adulta e integrada. Tudo o que fiz foi para satisfazer meus pró­prios ideais – ou minha consciência artística — ou minha tradição familiar – ou, resumindo, porque Eu Sou O Tal. Se a turba gosta ou não, o problema é dela. Ela não vale nada para mim.” Dessa maneira, o orgulho plena­mente desenvolvido pode até coibir a vaidade; como eu disse agora há pouco, o diabo adora “curar” um de­feito menor com um maior. Devemos nos esforçar para não sermos vaidosos, mas não devemos jamais nos valer do orgulho para curar a vaidade.

  • Dizemos, em inglês [ou em português], que um homem tem “orgulho” de seu filho, de seu pai, de sua escola, de seu regimento. Podemos nos perguntar se, nes­se caso, o “orgulho” é um pecado. Acho que isso depende do que queremos dizer com “ter orgulho de algo”. Com muita freqüência, essa expressão significa “ter uma calo­rosa admiração por algo ou alguém”. Tal admiração, evi­dentemente, está bem distante do pecado. Mas talvez sig­nifique que a pessoa “empine o nariz” por ter um pai ilus­tre ou pertencer a um regimento famoso. Isso com certe­za é um defeito; mesmo nesse caso, entretanto, é melhor isso que ter orgulho de si mesmos. Amar e admirar algo exterior a nós mesmos é um passo para longe da ruína espiritual, desde que esse amor e admiração não sobre­pujem o que sentimos por Deus.
  • Não devemos julgar que Deus proibiu o orgu­lho porque ele o ofende, ou que a humildade nos foi prescrita por causa de sua dignidade — como se o próprio Deus fosse orgulhoso. Ele não está nem um pouco preocupado com sua dignidade. A questão é simples: ele quer que nós o conheçamos, quer se doar para nós. O ser humano e ele são feitos de tal modo que, no mo­mento em que efetivamente entramos em contato com ele, nos sentimos de fato humildes: deliciosamente hu­mildes, aliviados de uma vez por todas do fardo das fal­sas crenças sobre nossa dignidade, que só serviam para nos deixar desassossegados e infelizes. Deus tenta nos tornar humildes para que esse momento seja possível: o momento de lançarmos fora a tola e horrenda fantasia com que nos adornamos e que nos entravava os movi­mentos, enquanto a exibíamos por aí feito idiotas. Gos­taria de ter mais experiência da humildade. Assim, pro­vavelmente poderia falar mais sobre o alívio e o consolo de despir essa fantasia – de lançar fora esse falso eu, com todos os seus “Olhem para mim” e “Eu sou um bom menino, não sou?”, todas as suas poses e falsas postu­ras. O mero fato de estar próximo disso, ainda que por um breve momento, é tão reconfortante quanto um gole de água fresca no deserto.

(4) Não pense que, se você conhecer um homem verdadeiramente humilde, ele será o que as pessoas cha­mam de “humilde” hoje em dia: não será nem uma pes­soa submissa ou bajuladora, que vive lhe dizendo que não é nada. Provavelmente, o que você vai pensar dele é que se trata de um camarada animado e inteligente, que realmente se interessou pelo que você tinha a lhe di­zer. Se você não simpatizar com ele, será porque sente um pouco de inveja de alguém que parece contentar-se tão facilmente com a vida. Ele não estará pensando so­bre a humildade; não estará pensando em si mesmo de modo algum.

Se alguém quer adquirir a humildade, creio poder dizer-lhe qual é o primeiro passo: é reconhecer o pró­prio orgulho. Aliás, é um grande passo. O mínimo que se pode dizer é que, se ele não for dado, nada mais po­derá ser feito. Se você acha que não é presunçoso, isso sig­nifica que você é presunçoso demais.

 

9. A CARIDADE

Eu disse num capítulo anterior que existem quatro virtudes “cardeais” e três “teológicas”. As virtudes teoló­gicas são a fé, a esperança e a caridade. Trataremos da fé nos últimos dois capítulos. A caridade foi exposta par­cialmente no Capítulo 7, em que tratei sobretudo daquela parte dela que se chama perdão. Quero acrescentar ago­ra mais algumas palavras.

Em primeiro lugar, quanto ao significado da palavra. “Caridade” hoje significa simplesmente o que antes se chamava “esmola” — ou seja, o que damos para os po­bres. Originalmente, seu significado era muito mais am­plo. (Você vai entender por que ela ganhou essa acepção moderna: se uma pessoa é “caridosa”, dar esmolas aos pobres é uma das coisas mais óbvias que ela faz, e, assim, as pessoas passaram a dar a esse ato o nome da própria virtude. A mesma coisa aconteceu com a poesia, cuja expressão mais óbvia é a rima. Ora, para a maioria das pessoas, hoje, a “rima” é a própria poesia.) A caridade sig­nifica “amor no sentido cristão”. Mas o amor no sentido cristão não é uma emoção. Não é um estado do senti­mento, mas da vontade: aquele estado da vontade que temos naturalmente com a nossa pessoa, mas devemos aprender a ter com as outras pessoas.

No capítulo sobre o perdão, observei que o amor que temos por nós mesmos não implica simpatia por nós mesmos. Significa que queremos nosso próprio bem. Do mesmo modo, o amor cristão (ou caridade) em re­lação ao próximo é bem diferente da afinidade ou da afeição. Nós temos “afinidade” ou “afeição” em relação a algumas pessoas, mas não a outras. E importante en­tender que essa “afinidade” ou “gosto” não é nem um pe­cado nem uma virtude, como tampouco o são nossas preferências pessoais de alimentação. É somente um fato. É claro, porém, que nossas atitudes em relação a esses gostos podem ser pecaminosas ou virtuosas.

A afeição natural pelas pessoas torna mais fácil a “ca­ridade” com elas. Por isso, normalmente temos o dever de estimular nossas afeições — de gostar dos outros tan­to quanto pudermos (da mesma maneira que, em geral, temos o dever de estimular em nós o gosto pelo exercí­cio físico ou por alimentos saudáveis) – não por ser em si esse gostar a virtude da caridade, mas por nos ajudar a alcançar esse fim. Por outro lado, é necessário tomar muitíssimo cuidado para que nosso afeto por alguém não nos torne pouco caridosos, ou até mesmo injustos, com outra pessoa. Existem inclusive casos em que nos­sas escolhas afetivas entram em conflito com a caridade em relação à própria pessoa de quem gostamos. Uma mãe extremosa, por exemplo, por causa de sua afeição na­tural, pode ser tentada a “mimar” o filho; ou seja, a dar vazão a seus impulsos afetivos à custa da verdadeira fe­licidade da criança mais tarde.

Normalmente, a afeição natural deve ser encorajada. No entanto, seria um erro pensar que o caminho para se obter a caridade consiste em sentar-se e tentar fabri­car bons sentimentos. Certas pessoas são “frias” por temperamento; isso pode ser um azar para elas, mas é tão pecaminoso quanto ter problemas de digestão — ou seja, não é pecado. Isso não lhes tira a oportunidade nem as exime do dever de aprender a caridade. A regra co­mum a todos nós é perfeitamente simples. Não perca tempo perguntando-se se você “ama” o próximo ou não; aja como se amasse. Assim que colocamos isso em prá­tica, descobrimos um dos maiores segredos. Quando você se comporta como se tivesse amor por alguém, logo começa a gostar dessa pessoa. Quando faz mal a alguém de quem não gosta, passa a desgostar ainda mais dessa pes­soa. Já se, por outro lado, lhe fizer um bem, verá que a aversão diminui. Existe, porém, uma exceção a essa re­gra. Se você lhe fizer um bem, não para agradar a Deus e obedecer à lei da caridade, mas para lhe mostrar como você é uma pessoa capaz de perdoar, para lhe deixar em dívida e para sentar-se à espera de manifestações de “gratidão”, provavelmente vai decepcionar-se. (As pes­soas não são bobas: elas têm um olho clínico para to­das as formas de exibicionismo ou condescendência pa­ternalista.) Sempre, porém, que fizermos o bem ao pró­ximo por ser ele um “eu” igual a nós, criado por Deus, que deseja sua própria felicidade como nós desejamos a nossa, teremos aprendido a amá-lo um pouco mais ou, no mínimo, a desgostar dele um pouco menos.

Conseqüentemente, apesar de a caridade cristã pa­recer fria para as pessoas cujas cabeças estão cheias de sentimentalismo, e apesar de ser bem diferente da afeição, ela nos conduz a este sentimento. A diferença entre um cristão e um ímpio não é que este tem afeições e gos­tos pessoais ao passo que o cristão só tem a “caridade”. O ímpio trata bem certas pessoas porque “gosta” delas; o cristão, tentando tratar a todos com bondade, tende a gostar de um número cada vez maior de pessoas no decorrer do tempo — inclusive de pessoas de quem ele não poderia imaginar que um dia fosse gostar.

A mesma lei espiritual funciona de maneira terrí­vel no sentido oposto. Pode ser que os alemães, de início, maltratassem os judeus porque os odiassem; depois, passaram a odiá-los ainda mais por tê-los maltratado. Quanto mais cruel você é, mais ódio você terá; quanto mais ódio tiver, mais cruel será – e assim para sempre, num círculo vicioso perpétuo.

O Bem e o Mal aumentam ambos à velocidade dos juros compostos. E por isso que as pequenas decisões que eu ou você tomamos todos os dias têm tanta im­portância. O menor gesto de bondade feito hoje garante a conquista de um ponto estratégico a partir do qual, em alguns meses, você poderá alcançar vitórias nunca sonhadas. Já uma concessão aparentemente trivial à luxúria ou à ira significa a perda de uma colina, de uma li­nha férrea ou de uma cabeça de ponte a partir das quais o inimigo poderá lançar um ataque que, de outro modo, seria inviável.

Alguns escritores usam a palavra “caridade” para de­signar não somente o amor cristão entre seres humanos, mas também o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus. As pessoas costumam preocupar-se mais com este último. Ouviram dizer que devem amar a Deus, mas elas não encontram esse amor dentro de si. O que devem fazer? A resposta é a mesma de antes. Aja como se você amasse. Não fique sentado tentando fabricar esse sentimento. Pergunte a si mesmo: “Se es­tivesse certo de que amasse a Deus, o que eu faria?” Quando encontrar a resposta, vá e faça.

No geral, o amor de Deus por nós é um tema mui­to mais seguro que o nosso amor por ele. Ninguém con­segue ter sempre o sentimento de devoção: e, mesmo que conseguisse, não são os sentimentos que mais im­portam a Deus. O amor cristão, seja para com Deus, seja para com os homens, é um assunto da vontade. Se nos esforçamos para obedecer à sua vontade, estamos cum­prindo o mandamento “Amarás o Senhor teu Deus”. Ele nos dará o sentimento do amor se assim desejar. Não podemos criá-lo por nós mesmos nem podemos exigi-lo como se fosse um direito nosso. Porém, a grande coisa a se lembrar é que, apesar de nossos sentimentos irem e virem, o amor dele por nós não se altera. Não se des­gasta por causa dos nossos pecados nem por nossa in­diferença. Logo, é inflexível em sua determinação de que seremos curados desses pecados custe o que custar, seja para nós, seja para ele.

 

10. A ESPERANÇA

A esperança é uma das virtudes teológicas. Isso quer dizer que (ao contrário do que o homem moderno pen­sa) o anseio contínuo pelo mundo eterno não é uma forma de escapismo ou de auto-ilusão, mas uma das coi­sas que se espera do cristão. Não significa que se deve deixar o mundo presente tal como está. Se você estudar a história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram exatamente os que mais pensavam no outro mundo. Os apóstolos, que desencadearam a con­versão do Império Romano, os grandes homens que erigiram a Idade Média, os protestantes ingleses que abo­liram o tráfico de escravos – todos deixaram sua marca sobre a Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos deixa­ram de pensar no outro mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui. Se você aspirar ao Céu, ga­nhará a Terra “de lambuja”; se aspirar à Terra, perderá ambos. Essa regra parece esquisita, mas pode-se obser­var algo semelhante em outros assuntos. A saúde é uma grande bênção, mas, no momento em que fazemos dela um dos nossos principais objetivos, nos tornamos hi­pocondríacos e passamos a imaginar que há algo de er­rado conosco. Só nos mantemos saudáveis na medida em que queremos outras coisas além da saúde: comida, jogos, trabalho, lazer, a vida ao ar livre. Do mesmo mo­do, nunca conseguiremos salvar a civilização enquanto for esse o nosso principal objetivo. Temos de aprender a querer outra coisa ainda mais do que queremos isso.

A maioria de nós acha muito difícil desejar o “Pa­raíso” – a não ser que por esse nome queiramos dizer o encontro com os amigos que já morreram. Uma das ra­zões dessa dificuldade é que não tivemos uma boa forma­ção: toda a educação atual tende a fixar nossa atenção neste mundo. Outra razão é que, quando o verdadeiro anseio pelo Paraíso está presente em nós, não o reconhe­cemos. A maior parte das pessoas, se tivesse aprendido a examinar profundamente seus corações, saberia que querem, e querem com veemência, algo que não pode ser alcançado neste mundo. Existem aqui coisas prazerosas de todo tipo que nos prometem isso que queremos, mas que nunca cumprem o prometido. Aquele anseio que nasce em nós quando nos apaixonamos pela primei­ra vez, quando pela primeira vez pensamos numa terra estrangeira, quando começamos a estudar um assunto que nos entusiasma, é um anseio que nenhum casamen­to, viagem ou estudo pode realmente satisfazer. Não es­tou falando aqui do que costumam chamar de casa­mentos infelizes, férias frustradas e carreiras fracassadas, mas sim das melhores possibilidades em cada um des­ses campos. Havia algo que vislumbramos no primeiro instante de encantamento e que simplesmente desapa­rece quando o anseio se torna realidade. Acho que todos sabem do que estou falando. A esposa pode ser uma boa esposa, os hotéis e a paisagem podem ter sido excelen­tes, e talvez a Química seja uma bela profissão: algo, po­rém, nos escapou. Ora, existem duas maneiras erradas, e uma certa, de lidar com esse fato.

(1) A Via do Tolo — Ele põe a culpa nas próprias coisas. Passa a vida toda a conjectutar que, se arranjasse outra mulher, fizesse uma viagem mais cara, ou seja lá o que for, conseguiria dessa vez capturar essa coisa mis­teriosa que todos nós procuramos. A maior parte dos ri­cos entediados e descontentes do nosso mundo são des­se tipo. Eles passam a vida toda pulando de uma mulher para outra (com a ajuda dos tribunais), de continente para continente, de passatempo para passatempo, sempre na esperança de que o último será, enfim, “a coisa certa”, e sempre decepcionados.

  • A Via do “Homem Sensato” Desiludido – Logo ele conclui que tudo não passava de conversa fiada. “E bem verdade”, diz ele, “que, quando é jovem, a pessoa se sente assim. Quando chega à minha idade, porém, você desiste de buscar o fim do arco-íris.” Então, ele se acomoda, aprende a não esperar muito da vida e repri­me a parte de si mesmo que, nas suas palavras, costuma­va “uivar para a lua”. Essa é, sem dúvida, uma via bem melhor que a primeira; torna o homem mais feliz e não faz dele um problema para a sociedade. Tende a torná-lo um chato (sempre pronto a se achar superior diante dos que julga “adolescentes”), mas, de maneira geral, faz com que ele leve uma vida sem grandes sobressaltos. Seria a melhor opção se o homem não tivesse uma vida eter­na. Mas suponha que a felicidade infinita realmente exis­ta e esteja logo ali, à nossa espera. Suponha que real­mente seja possível alcançar o fim do arco-íris — nesse caso, seria uma pena descobrir tarde demais (imediata­mente após a morte) que, por causa do nosso suposto “bom senso”, sufocamos em nós mesmos a faculdade de gozar dessa felicidade.
  • A Via Cristã – Dizem os cristãos: “As criaturas não nascem com desejos que não podem ser satisfeitos. Um bebê sente fome: bem, existe o alimento. Um pati­nho gosta de nadar: existe a água. O homem sente o de­sejo sexual: existe o sexo. Se descubro em mim um dese­jo que nenhuma experiência deste mundo pode satis­fazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo. Se nenhum dos prazeres terrenos satis­faz esse desejo, isso não prova que o universo é uma tre­menda enganação. Provavelmente, esses prazeres não existem para satisfazer esse desejo, mas só para desper­tá-lo e sugerir a verdadeira satisfação. Se assim for, tenho de tomar cuidado, por um lado, para nunca desprezar as bênçãos terrenas nem deixar de ser grato por elas; por outro, para nunca tomá-las pelo ‘algo a mais’ do qual são apenas a cópia, o eco ou a miragem, Tenho de man­ter viva em mim a chama do desejo pela minha verda­deira terra natal, a qual só encontrarei depois da morte; e jamais permitir que ela seja arrasada ou caia no esque­cimento. Tenho de fazer com que o principal objetivo de minha vida seja buscar essa terra e ajudar as outras pessoas a buscá-la também.”

Não devemos nos preocupar com os irônicos que tentam ridicularizar a esperança cristã do “Paraíso” di­zendo que “não querem passar a eternidade tocando har­pa”. A resposta que devemos dar a essas pessoas é que, se elas não entendem os livros que são escritos para adultos, não devem palpitar sobre eles. Todas as imagens das Escrituras (as harpas, as coroas, o ouro etc.) são, ob­viamente, uma tentativa simbólica de expressar o inexprimível. Os instrumentos musicais são mencionados porque, para muita gente (não todos), a música é o ob­jeto conhecido nesta vida que mais fortemente sugere o êxtase e a infinitude. A coroa é mencionada para nos dar a entender que todo aquele que estiver reunido com Deus na eternidade tem parte no seu esplendor, no seu poder e na sua alegria. O ouro é citado para nos dar a idéia da eternidade do Paraíso (o ouro não enferruja) e também da sua preciosidade. As pessoas que entendem esses sím­bolos literalmente poderiam também pensar que, quan­do Cristo nos exortou a ser como as pombas, quis dizer que deveríamos botar ovos.

 

11. A FÉ

Devo falar neste capítulo sobre o que os cristãos entendem por fé. Grosso modo, a palavra “fé” é usada no cristianismo em dois sentidos, ou em dois níveis, e trata­rei primeiro de um deles e depois do outro. No primei­ro sentido, significa simplesmente a crença – aceitar ou considerar verdadeiras as doutrinas do cristianismo. Isso é bastante simples. O que provoca confusão nas pessoas pelo menos provocava confusão em mim – é que os cristãos consideram a fé, nesse sentido, uma vir­tude. Eu queria saber como ela poderia ser uma virtu­de – o que existe de moral ou imoral em acreditar ou não acreditar num conjunto de princípios? Eu costuma­va dizer: é óbvio que todo homem são aceita ou rejeita uma determinada afirmação não por querer, mas por ha­ver provas que a confirmem ou refutem. Se ele se enga­nar sobre as provas, isso não fará dele um homem mau, apenas um homem não muito inteligente. Se ele achar que as provas indicam que a afirmação é falsa, e mesmo assim tentar acreditar nela, isso será mera estupidez.

Bem, ainda sou dessa opinião. O que eu não via en­tão — e muita gente ainda não vê — é o seguinte: eu supu­nha que, a partir do momento em que a mente huma­na aceita algo como verdadeiro, vai automaticamente continuar considerando-o verdadeiro até encontrar um bom motivo para reconsiderar essa opinião. Na verdade, eu partia do pressuposto de que a mente é completa­mente regida pela razão, o que não é verdade. Vou dar um exemplo. Minha razão tem motivos de sobra para acreditar que a anestesia geral não me asfixiará e que os cirurgiões só começarão a operar quando eu estiver com­pletamente sedado. Isso, porém, não altera o fato de que, quando eles me prendem na mesa da operação e me cobrem a face com sua tenebrosa máscara, um pânico infantil toma conta de mim. Começo a pensar que vou me asfixiar e que os médicos vão começar a cortar meu corpo antes que eu perca a consciência. Em outras pa­lavras, perco a fé na anestesia. Não é a razão que me faz perder a fé: pelo contrário, minha fé é baseada na razão. São, isto sim, a imaginação e as emoções. A batalha se dá entre a fé e a razão, de um lado, e as emoções e a ima­ginação, de outro.

Quando você pára para pensar, começa a lembrar de vários exemplos como esse. Um homem tem provas concretas de que aquela moça bonita é uma mentirosa, não sabe guardar segredos e, portanto, é alguém em quem não se deve confiar. Entretanto, no momento em que se vê a sós com ela, sua mente perde a fé no conhecimen­to que possuí e ele pensa: “Quem sabe desta vez ela seja diferente”, e mais uma vez faz papel de bobo com ela, contando-lhe segredos que deveria guardar para si. Seus sentidos e emoções destruíram-lhe a fé em algo que ele sabia ser verdadeiro. Ou tomemos o exemplo do garo­to que aprende a nadar. Ele sabe perfeitamente bem que o corpo não vai necessariamente afundar na água: já viu dezenas de pessoas boiando e nadando. Mas a ques­tão principal é se ele continuará crendo nisso quando o instrutor tirar a mão, deixando-o sozinho na água -ou se vai repentinamente deixar de acreditar, entrar em pânico e afundar.

A mesma coisa acontece no cristianismo. Não que­ro que ninguém o aceite se, na balança da sua razão, as provas pesarem contra ele. Não é aí que entra a fé. Va­mos supor, entretanto, que a razão de um homem deci­da a favor do cristianismo. Posso prever o que vai acon­tecer com esse sujeito nas semanas seguintes. Chegará um momento em que receberá más notícias, terá pro­blemas ou será obrigado a conviver com pessoas descren­tes; nesse momento, de repente, suas emoções se insur­girão e começarão a bombardear sua crença. Haverá, além disso, momentos em que desejará uma mulher, sentir-se-á propenso a contar uma mentira, ficará vaidoso de si mesmo ou buscará uma oportunidade para ganhar um dinheirinho de maneira não totalmente lícita; nes­ses momentos, seria muito conveniente que o cristianis­mo não fosse a verdade. Mais uma vez, suas emoções e desejos serão artilharia pesada contra ele. Não estou fa­lando de momentos em que ele venha a descobrir no­vas razões contrárias ao cristianismo. Essas razões têm de ser enfrentadas, e isso, de qualquer modo, é um assunto completamente diferente. Estou falando é dos meros sentimentos que se insurgem contra ele.

A fé, no sentido em que estou usando a palavra, é a arte de se aferrar, apesar das mudanças de humor, àquilo que a razão já aceitou. Pois o humor sempre há de mudar, qualquer que seja o ponto de vista da razão. Agora que sou cristão, há dias em que tudo na religião parece muito improvável. Quando eu era ateu, porém, passava por fases em que o cristianismo parecia probabilíssimo. A rebelião dos humores contra o nosso eu ver­dadeiro virá de um jeito ou de outro. E por isso que a fé é uma virtude tão necessária: se não colocar os humores em seu devido lugar, você não poderá jamais ser um cristão firme ou mesmo um ateu firme; será apenas uma criatura hesitante, cujas crenças dependem, na ver­dade, da qualidade do clima ou da sua digestão naque­le dia. Conseqüentemente, temos de formar o hábito da fé.

O primeiro passo para que isso aconteça é reco­nhecer que os sentimentos mudam. O passo seguinte, se você já aceitou o cristianismo, é garantir que algumas de suas principais doutrinas sejam mantidas deliberadamente diante dos olhos de sua mente por alguns mo­mentos do dia, todos os dias. É por esse motivo que as orações diárias, as leituras religiosas e a freqüência aos cultos são partes necessárias da vida cristã. Temos de nos recordar continuamente das coisas em que acreditamos. Nem essa crença nem nenhuma outra podem perma­necer vivas automaticamente em nossa mente. Têm de ser alimentadas. Aliás, se examinarmos um grupo de cem pessoas que perderam a fé no cristianismo, me pergun­to quantas delas o terão abandonado depois de conven­cidas por uma argumentação honesta. Não é verdade que a maior parte das pessoas simplesmente se afasta, como que levadas pela correnteza?

Volto-me agora para a fé no seu segundo sentido, o mais elevado: será o assunto mais difícil de que terei tratado até aqui. Para abordá-lo, retorno ao tópico da humildade. Você há de se lembrar que eu disse que o primei­ro passo em direção à humildade era dar-se conta do próprio orgulho. Acrescento agora que o segundo passo consiste em empenhar um esforço dedicado para pra­ticar as virtudes cristãs. Uma semana não basta. As coisas vão de vento em popa na primeira semana. Experimen­te seis semanas. Até lá, depois de sucumbir e voltar à estaca zero, ou ter decaído para um ponto ainda inferior, teremos descoberto algumas verdades a respeito de nós mesmos. Nenhum homem sabe realmente o quanto é mau até se esforçar muito para ser bom. Circula por aí a idéia tola de que as pessoas virtuosas não conhecem as tentações. Trata-se de uma mentira deslavada. Só os que tentam resistir às tentações sabem quão fortes elas são. Afinal de contas, para conhecer a força do exército alemão, temos de enfrentá-lo, e não entregar as armas. Para conhecer a intensidade do vento, temos de andar contra ele, e não deitar no chão. Um homem que cede à tentação em cinco minutos não tem a menor idéia de como ela seria uma hora depois. Por esse motivo, as pes­soas más, em certo sentido, sabem muito pouco a respei­to da maldade. Na medida em que sempre se rendem, levam uma vida protegida. É impossível conhecer a for­ça do mal que se esconde em nós até o momento em que decidimos enfrentá-lo; e Cristo, por ter sido o úni­co homem que nunca caiu em tentação, é também o único que conhece a tentação em sua plenitude – o mais realista de todos os homens. Pois bem. A principal coi­sa que aprendemos quando tentamos praticar as virtu­des cristãs é que fracassamos. Se tínhamos a idéia de que Deus nos impunha uma espécie de prova na qual po­deríamos merecer passar por tirar boas notas, essa idéia tem de ser eliminada. Se tínhamos a idéia de uma es­pécie de barganha — a idéia de que poderíamos cum­prir a parte que nos cabe no contrato e deixar Deus em dívida conosco, de tal modo que, por uma questão de justiça, ele ficasse obrigado a cumprir a parte dele —, ela deve ser eliminada também.

Creio que quantos possuem uma vaga crença em Deus acreditam, até se tornarem cristãos, nessa idéia da prova ou da barganha. O primeiro resultado do verdadei­ro cristianismo é o de reduzir essa idéia a pó. Quando a vêem reduzida a pó, certas pessoas chegam à conclusão de que o cristianismo é um embuste e dele desistem. Essa gente parece imaginar que Deus é extremamente simpló­rio. Na verdade, ele sabe de tudo isso. Uma das intenções do cristianismo é justamente reduzir essa idéia a pó. Deus está à espera do momento em que você vai descobrir que jamais conseguirá tirar a nota mínima para passar nesse exame, e não poderá jamais deixá-lo em dívida.

Com isso vem outra descoberta. Todas as faculdades que você possui, sua faculdade de pensar ou de mover os membros a cada momento, lhe são dadas por Deus. Mesmo se dedicasse cada momento de sua vida exclusi­vamente ao seu serviço, você não poderia dar-lhe nada que, em certo sentido, já não lhe pertencesse. Logo, quando uma pessoa diz que faz algo para Deus ou lhe dá algo, é como se fosse uma criança pequena que inter­pelasse o pai e lhe pedisse: “Papai, me dê cinqüenta cen­tavos para lhe comprar um presente de aniversário.” E claro que o pai dá o dinheiro e fica contente com o ges­to do filho. Tudo é muito bonito e muito correto, mas só um imbecil acharia que o pai lucrou cinqüenta cen­tavos com a transação. Quando o homem descobre es­sas duas coisas, Deus pode realmente começar a agir. E depois disso que a verdadeira vida começa. O homem agora está desperto. Podemos passar a discorrer sobre o segundo sentido da palavra “fé”.

 

12. A FÉ

Vou começar por dizer algo em que gostaria que to­dos prestassem a máxima atenção. E o seguinte. Se este. capítulo não significar nada para você, se ele der a im­pressão de procurar responder a perguntas que você nun­ca fez, largue-o imediatamente. Não se amofine por causa dele. Existem coisas no cristianismo que podem ser compreendidas mesmo por quem está de fora, por quem ainda não é cristão; existe, por outro lado, um grande número de coisas que só podem ser compreen­didas por quem já percorreu um certo trecho da estra­da cristã. São coisas puramente práticas, embora não o pareçam. São instruções de como lidar com certas en­cruzilhadas e obstáculos da jornada, instruções que não têm sentido até que a pessoa esteja diante deles. Sem­pre que você deparar com uma frase de um escrito cristão que você não seja capaz de compreender, não se aborre­ça. Deixe-a de lado. Virá um dia, talvez anos mais tarde, em que você subitamente entenderá o que ela queria di­zer. Se não consegue entendê-la agora, é porque ela só lhe faria mal.

E claro que isso diz respeito não só aos outros, mas a mim também. O que tentarei explicar neste capítulo talvez esteja muito acima da minha compreensão. E pos­sível que eu pense que já tenha chegado lá, mas na rea­lidade não tenha. Só posso pedir aos cristãos instruídos que ouçam com muita atenção o que digo e me avisem se estiver errado; quanto aos outros, que aceitem com cautela o que for dito – como algo que ofereço por pen­sar que pode ajudar, não por ter a certeza de estar com a razão.

Estou tentando falar sobre a fé nesse segundo sen­tido, o mais elevado. Disse há pouco que essa questão surge no homem depois que ele tentou ao máximo pra­ticar as virtudes cristãs, constatou-se incapaz e chegou à conclusão de que, mesmo que tivesse conseguido, não estaria oferecendo a Deus nada que já não lhe per­tencesse. Em outras palavras, ele descobre que está fa­lido. E bom repetir: o que importa para Deus não são nossas ações enquanto tais. O que lhe importa é que sejamos criaturas de determinado tipo ou qualidade — o tipo de criaturas que ele tencionava que fôssemos quan­do nos criou -, vinculadas a ele de uma determinada maneira. Não acrescento “e vinculados uns aos outros”, porque isso é uma conseqüência natural. Se você tem a atitude correta diante de Deus, inevitavelmente terá a ati­tude correta diante do próximo, da mesma forma que, quando os raios de uma roda estão bem encaixados no cubo e no aro, inevitavelmente guardam as distâncias corretas entre si. E, enquanto o homem concebe Deus como uma espécie de examinador que nos passa uma prova, ou como a outra parte numa espécie de barga­nha em que cada parte tem seus direitos e obrigações, não está ainda com a atitude correta diante de Deus. Não sabe nem o que ele é nem o que é Deus, e só poderá ter a atitude correta quando descobrir que está falido.

Quando digo “descobrir”, quero dizer exatamente isso: não é o mesmo que repetir palavras como um pa­pagaio. Qualquer criança que tenha recebido a educa­ção cristã mais elementar aprende rapidamente que o homem não tem nada a oferecer a Deus que já não seja dele, e que nem isso conseguimos oferecer sem surru­piar uma parte para nós. Mas estou falando de uma des­coberta real, advinda da experiência pessoal.

Nesse sentido, só podemos descobrir que somos in­capazes de cumprir a Lei de Deus depois de tentar cumpri-la com todas as nossas forças (e fracassar em seguida). Se não tentarmos, continuaremos pensando em nosso íntimo que, se nos esforçarmos mais na próxima vez, conseguiremos ser completamente bons. Assim, em cer­to sentido, a estrada que nos leva de volta a Deus é a do esforço moral, a via da auto-superação. Mas, em outro sentido, não é o esforço que nos levará para casa. Toda a força que fazemos nos conduz ao momento crucial em que nos voltamos para Deus e lhe dizemos: “O Se­nhor tem de fazer isso. Não consigo.” Imploro que vo­cês não comecem a se perguntar: “Será que já cheguei a esse momento?” Não fique sentado esperando, obser­vando a própria mente para ver se o momento está che­gando. Isso o levará a tomar o bonde errado. Quando acontecem as coisas mais importantes da vida, nem sem­pre nos damos conta do que está ocorrendo. A pessoa não pára de repente e diz para si mesma: “Opa, estou crescendo!” Em geral, é só quando olha para trás que percebe o que aconteceu e reconhece que é isso que as pessoas chamam de “crescer”. Isso pode ser notado até nos assuntos mais prosaicos. O homem que começa a querer saber se vai conseguir dormir ou não, com toda probabi­lidade vai passar a noite em claro. Além disso, o fenôme­no de que estou falando pode não ocorrer de repente, como ocorreu com o apóstolo Paulo ou Bunyan. Pode se dar de forma tão gradual que ninguém consiga apontar uma hora específica, ou mesmo o ano em que acon­teceu. O que interessa é a natureza da mudança em si, e não como nos sentimos quando ela ocorre. É a mudan­ça do sentimento de confiança em nossos próprios es­forços para um estado em que nos desesperamos com­pletamente e deixamos tudo nas mãos de Deus.

Sei que as palavras “deixar tudo nas mãos de Deus” podem ser entendidas de forma errada, mas vamos dei­xá-las assim por enquanto. O sentido em que um cristão deixa tudo nas mãos de Deus é que ele deposita toda a sua confiança em Cristo: confia em que, de alguma for­ma, Cristo vai dividir sua obediência humana perfeita com ele, obediência que Cristo carregou consigo do nascimento à crucificação. Cristo fará do homem uma imagem de si, compensando, de certa forma, suas de­ficiências. Na linguagem cristã, ele repartirá a sua “fi­liação”, fará de nós “filhos de Deus”, como ele mesmo; no Livro IV, farei um esforço para analisar o significa­do dessas palavras com mais profundidade. Se lhe agrada colocar as coisas sob essa perspectiva, Cristo nos oferece algo por nada; na verdade, oferece tudo por nada. Num sentido, toda a vida cristã se baseia em aceitar essa ofer­ta extraordinária. A dificuldade está em chegar ao pon­to de reconhecer que tudo o que fazemos e podemos fazer se resume a nada. Gostaríamos que a coisa fosse diferente, que Deus contasse nossos pontos bons e ignorasse os ruins. Ou senão, num certo sentido, podemos dizer que nenhuma tentação pode ser superada se não desistirmos de superá-la – se não jogarmos a toalha. Por outro lado, ninguém poderia “parar de tentar” da for­ma correta e pelas razões corretas se antes não tentasse com todas as suas forças. E, num outro sentido ainda, é claro que deixar tudo nas mãos de Cristo não signifi­ca que devemos parar de nos esforçar. Confiar nele sig­nifica tentar fazer tudo o que ele disse. Não há sentido em dizer que confiamos em tal pessoa se não aceitamos seus conselhos. Logo, se você realmente se entregou nas mãos dele, conclui-se daí que está tentando obedecer-lhe. No entanto, está tentando de uma forma nova, menos preocupada. Não está fazendo essas coisas para ser sal­vo, mas porque ele já começou a salvá-lo. Não está es­perando ganhar o Paraíso como recompensa das suas ações, mas quer inevitavelmente agir de uma determi­nada forma porque já tem dentro de si os primeiros e tênues vislumbres do Paraíso.

Os cristãos sempre tiveram o costume de polemi­zar sobre o que conduz o cristão à sua morada: se as boas ações ou se a fé em Cristo. Na verdade, não tenho o direito de falar sobre um assunto tão difícil, mas me parece que é como perguntar qual das lâminas de uma tesoura é a mais importante. O esforço moral sério é a única coisa que pode nos conduzir ao ponto de jogar a toalha. A fé em Cristo é a única coisa que pode nos sal­var do desespero nesse ponto: e, dessa fé, é inevitável que surjam boas ações. No passado, alguns grupos cris­tãos acusaram outros grupos cristãos de parodiar a ver­dade de duas formas. O exagero das situações talvez ajude a tornar a verdade mais clara. Um dos grupos era acusado de dizer: “As boas ações são tudo o que interessa. A melhor das boas ações é a caridade. O melhor tipo de caridade é dar dinheiro. A melhor forma de dar di­nheiro é fazer uma doação para a Igreja. Logo, faça uma doação de 10.000 libras e garantiremos sua entrada na vida eterna.” A resposta a esse absurdo é que as ações feitas com essa intenção, com a idéia de que o Paraíso pode ser comprado, não são boas ações de forma alguma, mas somente especulações comerciais. Outro grupo era acusado de dizer: “A fé é tudo o que importa. Logo, se você tem fé, não importam as suas ações. Peque à von­tade, meu filho, divirta-se a valer, que para Jesus Cristo não vai fazer a mínima diferença no final.” A resposta a esse absurdo é que, se o que você chama de “fé” em Cris­to não implica dar atenção ao que ele disse, ela não é fé de maneira alguma — nem Fé nem confiança, mas ape­nas a aceitação mental de alguma teoria a seu respeito.

A Bíblia encerra a discussão quando junta as duas coisas numa única sentença admirável. A primeira me­tade diz: “Ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor” – o que dá a idéia de que tudo depende de nós e de nossas boas ações; mas a segunda metade complementa: “Pois é Deus que efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar” – o que dá a idéia de que Deus faz tudo e nós, nada. Esse é o tipo de coisa com a qual nos defrontamos no cristianismo. Fico perplexo, mas não surpreso. Veja você, estamos tentando compreender e separar em compartimentos estanques o que Deus faz e o que o homem faz quando se põem a trabalhar juntos. É claro que a nossa concepção inicial desse trabalho é a de dois homens que atuam em conjunto, de quem poderíamos dizer: “Ele fez isto e eu, aquilo.” Porém, essa maneira de pensar não se sustenta. Deus não é as­sim. Não está só fora de você, mas também dentro: mes­mo que pudéssemos compreender quem fez o quê, não creio que a linguagem humana pudesse expressá-lo de forma apropriada. Na tentativa de expressar essa verdade, as diferentes igrejas dizem coisas diversas. Você há de cons­tatar, porém, que mesmo as que mais insistem na im­portância das boas ações lhe dirão que você precisa ter fé; e as que mais insistem na fé lhe dirão para praticar boas ações. Neste assunto, não me arrisco a ir mais longe. • Creio que todos os cristãos concordariam comigo se eu dissesse que, apesar de o cristianismo, num primeiro momento, dar a impressão de só se preocupar com a mo­ral, com deveres, regras, culpa e virtude, ele nos leva além, para fora de tudo isso e para algo completamente dife­rente. Vislumbramos então um país cujos habitantes não falam dessas coisas, a não ser, talvez, como piada. Todos eles são repletos do que chamaríamos de bondade, co­mo um espelho é repleto de luz. Eles mesmos, porém, não chamam isso de bondade. Não o chamam por nome algum. Não pensam a respeito desse assunto, pois estão ocupados demais em contemplar a fonte de onde isso provém. Mas nos aproximamos aí do ponto em que a estrada cruza o limiar deste nosso mundo. Nenhum olhar pode enxergar muito além disso; muitos olhares podem enxergar bem mais longe que o meu.

[1] Referência a John Bunyan (1628-1688), escritor e pregador inglês, autor do clássico O pe­regrino, (N. do R. T.) 1. Na língua inglesa corrente, em específico, a palavra tem esse significado, (N. do T.)

[2] Guts, literalmente “intestino”. Expressão informal para designar coragem – to have guts é semelhante ao nosso “ter peito”. (N. do T)

[3] Samuel Johnson (1709-1784), crítico literário, ensaísta e poeta inglês. Sua verve e sua personalidade viva foram retratadas na biografia Life of Johnson, escrita pelo amigo e pupilo James Boswell, um clássico da literatura inglesa. (N. do T.)

[4] Condecoração militar britânica para atos de bravura. (N. do T.)

[5] Heirich Himmler (1900-1945), diretor da Gestapo e ministro do Interior durante o go­verno nazista na Alemanha, responsável pela aniquilação em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. (N. do R. T.)

[6] Professor Moriarty, o maior inimigo de Sherlock Holmes nas histórias criadas por Conan Doyle. (N.doT.)

[7] Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), escritor cristão inglês. (N. doR.T.)


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