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Texto de G. B. Marian. Traduzido por Caio Ferreira Peres
Comparando o deus egípcio Set com o titã grego Tífon e explicando como a palavra “tifoniano” se tornou sinônimo para “setiano.”
O nome Tífon[1] originalmente pertencia a um titã na mitologia grega que aparecia como um gigante com centenas de serpentes em suas cabeças e pernas. Os titãs eram seres primordiais que existiam antes dos olimpianos (Zeus, Hera, Afrodite, etc.) e que eram governados por um deus chamado Cronos. Depois que Zeus destronou Cronos e assumiu o controle do universo, Tífon levou os titãs à uma guerra contra os olimpianos. Mas Zeus o dominou na batalha e o enterrou vivo sob a Terra, de onde ele agora envia lava e erupções vulcânicas. A companheira de Tífon é a horrível mulher-serpente Equidna, com quem ele gerou terríveis monstros do cão como Cérbero e a Quimera. Até o momento, não vi nenhuma evidência de que os gregos adoravam Tífon (mas se alguém souber de tal evidência, por favor, me avise). Parece que ele era só adorado contra, assim como Apep na religião egípcia.
No entanto, o nome Tífon se tornou fortemente associado ao deus egípcio Set após o Reino Novo sucumbir aos invasores estrangeiros durante o século VIII a.C. Como Set é o deus de todas as coisas estrangeiras ao Egito, Ele foi culpado por essas invasões assim como a dissolução final do poder faraônico. Assim, os egípcios ficaram loucos e destruiram todas as Suas estátuas, riscaram o Seu nome de todos os monumentos e mataram os Seus animais sagrados de formas demasiadamente cruéis (como empurrar burros assustados e indefesos de penhascos). Eles deixaram de acreditar Nele como o Salvador de Rá e igualaram Ele com Apep. Eles também perseguiam, e algumas vezes, matavam qualquer pessoa que continuasse a seguir Set ou que fosse considerada muito parecida com Ele (como os ruivos). Isso eventualmente levou a um dos primeiros casos registrados de libelo de sangue, na qual judeus alexandrinos foram acusados de praticar “onolatria” (adoração a burros), envenenar poços e de assassinar pessoas em seus rituais religiosos. Até mesmo o Próprio Javé foi igualado com Set nesse período, o que significa que os judeus e os setianos eram retratados como algo semelhante a um “culto satânico” pré-cristão.
Na época em que caras como Heródoto começaram a escrever sobre os egípcios no século V a.C., havia muito mais de Apep no entendimento popular de Set do que do Próprio Set. Assim, Heródoto aplicou o conceito da interpretatio graeca ao panteão egípcio (identificando deuses de povos estrangeiros como deuses gregos com nomes diferentes), ele identificou esse híbrido falacioso de Set/Apep com o Tífon de sua própria cultura. Depois de estabelecer essa ligação, os sincretistas greco-egípcios começaram a chamar o Grande Vermelho de Seth-Tífon, e pessoas que continuavam a adorar ou se “parecer” com Ele ficaram conhecidas como tifonianos. Esse era um termo de escárnio hostil, e egípcios, gregos e romanos clássicos o usaram da mesma forma que os cristãos continuam a usar os termos “satanista” ou “adorador do diabo” atualmente.
Não sou um grande fã da interpretatio graeca; entendo o por que ela fazia sentido para os gregos, mas eu mesmo sou cético em relação a ela (especialmente nesse caso). Não é preciso ser um arqueólogo para saber que o Set egípcio e o Tífon grego não são quase nada parecidos. Claro, há certas semelhanças superficiais; ambos se tornaram “vilões” assustadores por um tempo. Mas, pelo menos até os anos 400 a.C., sempre foi aceito como parte do arco de Set o fato de Ele ser um vilão que se tornou herói. Ele também tinha um sacerdócio Próprio e era honrado pelos faraós; esse claramente não era o caso de Tífon, que nunca teve nenhum tipo de seguidor endossado pelo estado.
Se Set e Tífon são verdadeiramente idênticos, então a família de Tífon na mitologia grega deveria ser como uma “segunda família” que Set tem, além de Seus parentes egípcios e cananeus. Teoricamente, pelo menos, isso significaria que criaturas como a Quimera e o Cérbero seriam companheiros Filhos de Set, e que eu deveria sentir algum tipo de ressonância espiritual com eles. A teologia não é uma ciência, é claro, portanto, não há como ter 100% de certeza sobre essas coisas; mas, além da completa ausência de tradição nesse sentido, eu nunca adquiri nenhuma gnose que apoiasse essa ideia. Equidna e Sua assustadora ninhada não parecem ter relação a Set; e se Set é de fato estéril e incapaz de gerar filhos (como é descrito na mitologia egípcia), como diabos Ele poderia procriar com Equidna? Embora a mitologia nunca deva ser levada ao pé da letra, é necessário que haja, pelo menos, alguma consistência interna. Se Heródoto estiver correto e Set e Tífon são realmente o mesmo ser, esperaria que houvesse histórias de Tífon sem filhos, de Set gerando filhos monstruosos gigantescos, ou talvez até de ambos.
Entretanto, devo admitir que sou culpado de usar o nome Tífon em referência a Set o tempo todo. Isso não é hipócrita? Não estaria eu blasfemando contra o Grande Vermelho por usar um nome que foi dado a Ele por ódio e medo? Eu não deveria me ater aos nomes egípcios e dizer a Heródoto para ir embora? E eu não deveria ter mais respeito por mim mesmo do que aceitar ser chamado de tifoniano?
Ocorreu-me que pode haver outros Companheiros de Set por aí que não gostam muito do meu uso do apelido Tífon. (E se isso for verdade, agradeço a todos vocês por serem extremamente educados comigo, pois ninguém me escreveu nenhum e-mail irritado sobre isso ainda.) Mas, tenho de fato vários bons motivos para algumas vezes me referir a Set como Tífon, apesar de tudo o que expliquei acima.
1. Isso tem precedentes históricos.
Há vários feitiços nos papiros mágicos greco-egípcios que invocam um “Tífon” que não está de acordo com o caráter do titã grego. O “Tífon” dos papiros está fortemente associado com o ferro, os burros, a cor vermelha, a Ursa Maior e as corrupções helenizadas dos nomes hebraicos de Deus. Ele é até mesmo chamado de “odiador dos ímpios” em um feitiço específico, o que nada se parece com o Tífon grego. Além do mais, muitos dos feitiços envolvendo “Tífon” não são maléficos (maldições de morte), mas encantamentos para amor, proteção e outras variedades de boa sorte. Absolutamente nenhuma dessas coisas são consistentes com o Tífon grego—mas elas são consistentes com Set, como Ele era adorado antes do Período Tardio.
Também, posso pessoalmente atestar que esses feitiços têm bastante poder de fogo e que o Grande Vermelho responde favoravelmente a eles. Se Ele não gostasse de ser chamado de Tífon, seria de se esperar que os feitiços falhassem totalmente (ou que tivessem resultados mortais). Há muitas teorias diferentes sobre por que a magia funciona, é claro, e nem todas elas se baseiam na suposição de que qualquer coisa “sobrenatural” está realmente acontecendo. Mas mesmo que os feitiços greco-egípcios sejam apenas exercícios de auto-hipnose, os seus procedimentos tifonianos são claramente modelados no deus egípcio Set (e não no monstro grego Tífon).
2. A palavra Tifoniano basicamente pertence a Set de qualquer forma.
Esse termo simplesmente não existia antes do surgimento do sincretismo greco-egípcio. Quando ele foi cunhado pela primeira vez, ele era usado para descrever animais que eram sagrados para Set (incluindo burros, peixes, hipopótamos, etc.) e pessoas que identificavam com Ele. Portanto, embora ele tenha sido tirado do nome de uma entidade completamente diferente, o termo tifoniano sempre foi usado especificamente para coisas que pertenciam a Set. (Isso se deve provavelmente ao Tífon original nunca ter tido o seu próprio culto.) Na verdade, podemos ir em frente e dizer que tifoniano é apenas um sinônimo para setiano.
3. Tífon é muito útil ao interagir com divisores de cabelo acadêmicos.
No meio acadêmico, o Set egípcio é algumas vezes chamado de Seth-Tífon para distingui-Lo do Seth bíblico (o terceiro filho de Adão e Eva). Este último desempenha um papel importante em certas formas heréticas de judaísmo e cristianismo que se desenvolveram nos últimos anos a.C. e os primeiros anos da era cristã. Esses sistemas de crenças são frequentemente chamados de “sethianismo” ou “gnosticismo sethiano”, e alguns estudiosos se referem a Set como Seth-Tífon para distingui-Lo dessa outra religião. Eles também tendem a usar a palavra tifoniano para coisas que pertençam a Set, enquanto eu frequentemente vejo o termo sethiano sendo usado nas discussões sobre o gnosticismo.
De certa forma, isso é um pouco desagradável; o Grande Vermelho fica com a parte mais curta do bastão, enquanto um personagem bíblico obscuro (que mal é mencionado no livro de Gênesis) recebe tratamento preferencial. Mas, seja como for, o uso do nome Tífon em conjunto com o de Set certamente dissipará qualquer possível confusão com o gnosticismo sethiano (ou pelo menos entre os acadêmicos).
(Devo observar que alguns dos seguidores do Grande Vermelho acham que Ele e o Seth gnóstico são realmente a mesma entidade. Eu mesmo discordo respeitosamente dessa ideia, mas essa é uma discussão para outro dia).
4. O significado do nome faz total sentido.
Tífon significa literalmente “redemoinho” em grego, o que está relacionado ao papel de Set como deus do vento e das tempestades. O nome está ligado à nossa palavra moderna tufão[2], que é o equivalente a um furacão no Oceano Pacífico. Portanto, o nome não significa, de fato, algo insultante em si mesmo; na verdade, se trata de uma descrição válida da jurisdição de Set na natureza.
5. Ele descreve um dos aspectos mais esquecidos do Grande Vermelho.
Lembra-se de como Set cortou Osíris em pedaços e deu seu pênis a um peixe? É irônico que um deus do deserto seria associado com um animal aquático, mas é o que acontece. Peixes—especialmente os da família Mormyridae ou peixe-elefante—eram considerados sagrados para Set em áreas como a cidade de Oxyrhynchus. Hipopótamos também são sagrados para Ele e também são animais aquáticos, pois passam a maior parte de seu tempo na água. Portanto, com base apenas na religião egípcia, Set definitivamente tem um aspecto aquático, e Tífon é o nome perfeito para descrevê-Lo nesse contexto.
6. É um lembrete dos males do libelo de sangue.
O nome Tífon foi dado a Set por pessoas que tinham tanto medo Dele, que elas estavam dispostas a machucar animais e pessoas inocentes para afastá-Lo. Pode parecer blasfêmia chamá-Lo por esse nome por esse mesmo motivo, mas acho que é uma boa maneira de me lembrar dos males do libelo de sangue. Os Tempos Ardentes, os Julgamentos das Bruxas de Salem, o Holocausto e o “Pânico Satânico” da década de 1980; tudo isso foram apenas versões diferentes da mesma coisa que foi feita aos setianos e aos judeus no Egito Alexandriano. A lembrança desses eventos horríveis é uma grande parte da minha espiritualidade (especialmente o Pânico Satânico, já que eu estava vivo enquanto ele ainda estava acontecendo). Portanto, reivindicar o nome Tífon como um termo positivo para Set e para mim é muito parecido como reivindicar uma palavra como bruxa para os wiccanos.
7. Set nunca me matou por ter o usado.
Há muito tempo venho me referindo a Set como Tífon, e Ele nunca me deu nenhum desgosto por isso. Estou bastante confiante de que, se Ele não gostasse que eu usasse esse nome para Ele, eu já estaria morto.
8. Afinal, quem liga para os sentimentos do Tífon grego?
Eu nunca encontrei uma única pessoa que afirmasse adorar ou mesmo se importar com o Tífon grego em si mesmo (é acredite em mim, eu procurei por tal pessoa em todos os lugares; e caso tenha algum reconstrucionista helênico por aí que adore Tífon e que por acaso tropece neste sermão, espero que ele compartilhe os seus pensamentos sobre isso comigo). Sempre que encontro alguém que trabalha com algo que eles chamam de “Tífon”, a entidade que eles estão experienciando sempre acaba sendo Set após uma inspeção mais minuciosa (exceto no caso de Kenneth Grant, cujo Tífon “fêmea draconiano” me parece ser uma versão mal identificada da deusa hipopótamo Taweret.) Se o Tífon original não tem nenhum culto, e se os próprios gregos deram seu nome a Set, então por que eu deveria me importar? Será que alguém se importa com o fato de eu estar falando sobre isso?
Então, Set e Tífon são a mesma entidade? Os pan-culturalistas podem dizer “sim”, e os politeístas ferrenhos podem dizer “não”—mas quem pode ter certeza? Tudo o que sei é que Set e Tífon não me parecem a mesma coisa, mas isso não significa que as duas figuras não possam ter o mesmo nome. Se pode haver mais de um “Seth”, por que diabos não pode haver mais de um “Tífon”?
Notas do Tradutor:
[1] N. T.: No original em inglês escrito como Typhon. Outra forma como o nome pode ser escrito em português é Tifão.
[2] N. T.: No original em inglês, typhoon.
Fonte: https://desertofset.com/2020/06/16/typhon/
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