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Egiptomania

Khepesh: O Ferro de Set

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Texto de G. B. Marian.
Traduzido por Caio Ferreira Peres.

Explicando as conexões de Set com a Ursa Maior e o por quê delas serem importantes.

Na mitologia egípcia o Khepesh (“A Coxa”) é o Ferro de Set. Essa poderosa força uma vez foi parte do Próprio Set, mas ela foi removida Dele por Hórus durante Sua guerra pelo trono da civilização. Ela é algumas vezes descrita como sendo o “osso”, “pata dianteira” e “sêmen” de Set, ou até mesmo como Seus “testículos” (o que quer dizer que sua remoção é às vezes descrita como uma “castração”). Esse Ferro é o que permitiu que Set matasse Osíris, e foi devolvido a Ele assim que Ele tenha sido “domado” o suficiente para se reconciliar com o restante dos deuses. Set agora usa o Khepesh para defender Rá da Serpente do Caos, e sua contraparte física na natureza inclui o asterismo que conhecemos hoje como Grande Concha[1], assim como também o elemento químico Fe (ferro).

O Khepesh algumas vezes é contrastado com o Wedjat, o Olho de Hórus (ou o “Olho que tudo vê”), ao qual Set tirou de Hórus durante Sua briga. Usamos nossos olhos para ver as coisas, o que explica a associação do Wedjat com a luz, conhecimento e ordem; ele representa “lançar luz” sobre o desconhecido e o tornar conhecido. O Khepesh, em contrapartida, está ligado à libido de Set;  ele representa a habilidade do desconhecido de invadir o conhecido e forçá-lo a se adaptar. Apesar dessa perturbação, o Khepesh é um tipo completamente diferente de “caos” do que aquele da Serpente do Caos, pois ele não ameaça destruir tudo na Criação; ele simplesmente destrói certas coisas para abrir espaço a outras. Por isso, ele é a arma perfeita contra a Serpente, sendo frequentemente representado como uma lança que Set carrega para as batalhas.

O Ferro de Set é comparável a outras armas matadoras de monstros na mitologia, como o Mjollnir (o martelo de Thor). Ambas são associadas com deuses ruivos das tempestades; ambas precisam permanecer externas aos seus usuários (pois até mesmo Thor precisa usar luvas ao manusear o Mjollnir); e ambas têm uma forte conotação fálica (como quando o Mjollnir é colocado no colo da noiva nas cerimônias de casamento nórdicas). Podemos também comparar o Khepesh a Thurisaz, a terceira runa no Futhark Antigo, que representa o quanto os poderes destrutivos da natureza podem ser usados para propósitos protetivos. A palavra Khepesh era adicionalmente usada para uma espada que os antigos egípcios usavam em batalha, cuja forma é similar à Grande Concha.

Uma espada-foice khepesh egípcia.

O Khepesh foi “amarrado” à estrela Polaris (a atual estrela polar setentrional do nosso planeta) pela deusa Taweret para mantê-lo o mais longe possível de Osíris. Ele é mantido lá como uma espécie de “espantalho cósmico” para impedir a Serpente do Caos de atacar o nosso mundo pelo céu do norte. Nos papiros mágicos gregos, Set é dito de viver em algum lugar por “detrás” da Grande Concha, em um “Local Secreto” que nenhum dos outros deuses podem alcançar. Esse reino já foi associado com o conceito hermético de Daath na Árvore da Vida, e ele é algumas vezes chamado de “a Zona Malva” ou “o Deserto de Set”. Esse último termo foi tirado do fato que os egípcios consideravam o seu país como o auge da civilização humana. Os Desertos que cercavam o Egito (chamados de Deshret ou “as Terras Vermelhas”) eram vistos como uma proteção contra “o mundo lá fora”; daí essa noção de que Set percorre o turbilhão caótico “lá fora” para manter o mundo criado seguro “aqui dentro”.

Por uma perspectiva animista, tudo que envolve a Grande Concha pode ser visto como uma reflexão astral de Khepesh. Mantendo esse princípio em mente, podemos fazer as seguintes observações sobre o Ferro de Set:

  • A maioria dos deuses egípcios estão ligados a objetos estelares que “caem abaixo” e “sobem acima” do horizonte, incluindo o Sol, a Lua, Sirius e constelações como Orion. Essas divindades são ditas de “morrerem” e “ressuscitarem” (ou de acompanhar outros deuses que morrem-e ressuscitam em suas transições). Mas a Grande Concha é circumpolar e nunca se põe, representando a incapacidade de Set de morrer. Enquanto os outros deuses experimentam um tipo cíclico de imortalidade, Set é contínuo e linear. Khepesh é o que dá a Ele a enorme força que Ele precisa para ser verdadeiramente imortal.
  • Como a Concha aponta para o norte, ela é um perfeito “compasso cósmico” e foi usada como tal por séculos. Para os antigos povos do deserto que O adoravam, parecia que Set estava os guiando fielmente pela noite sempre que se perdiam. Isso indica que o Khepesh, não importando o quão destrutivo ou aterrorizante ele possa ser, é realmente uma força para o bem neste mundo, bem como sua última linha de defesa contra a Serpente e suas qliphoth.
  • A Concha gira em sentido anti-horário (para a esquerda), e a esquerda sempre foi ligada à assimetria, inversão e reversão (seja social, política ou espiritual)[2]. Portanto, Khepesh está ligado às sensibilidades anti-establishment de Set, o que explica sua popularidade entre os ocultistas do caminho da mão esquerda.
  • A Concha forma uma enorme suástica no céu do norte. Na verdade, trata-se de um símbolo de prosperidade e boa sorte em muitas culturas; ela não “pertence” aos nacional-socialistas, assim como as cruzes não “pertencem” à Ku Klux Klan. Mas isso não muda o fato de que a maioria dos ocidentais reage mal à suástica por motivos que são totalmente compreensíveis. Isso está relacionado à reputação de Set como o assim chamado deus “maligno”. Assim como ele realmente representa algo bom, mas é confundido com o “mal” por pessoas de fora, a suástica também representa algo bom em religiões como o hinduísmo e o budismo, apesar de estar ligada ao nazismo no Ocidente. Parte de ser setiano, em minha opinião, envolve ser capaz de entender esse tipo de nuance, o que não é fácil para a maioria das pessoas.

Que o Khepesh está ligado ao ferro (Fe) também é interessante, dado que esse elemento químico é tradicionalmente usado para afastar daemons malignos, fadas, bruxas e o Mau Olhado. As barras de prisão já foram feitas de ferro para restringir qualquer energia negativa que possa emanar dos prisioneiros mais perigosos. Até mesmo hoje em dia, os beduínos ainda acreditam que uma pessoa que lute com uma espada forjada de ferro meteórico vencerá qualquer batalha. É um pouco assustador que o filósofo grego Pitágoras tenha afirmado que o número de Tífon é 56, considerando que o peso atômico do ferro é 55,845 (que arredonda para 56). Também não é coincidência o fato de o ferro estar ligado à cor vermelha, ao planeta Marte ou à esfera qabalística de Geburah.

Na Cerimônia de Abertura da Boca, o Khepesh é invocado a um enxó ou cinzel que tenha sido forjado com ferro meteórico e cujo formato lembra a Grande Concha. Esse enxó era então pressionado contra a boca de uma múmia ou estátua enquanto o sacerdote recitava encantamentos que invoca “o ferro que veio de Set”. Fazer isso efetivamente transformava o objeto inanimado em um condutor vivo para uma divindade ou fantasma de um ente querido. O princípio por trás dessa magia cerimonial é mais ou menos idêntico ao da transubstanciação católica. Antes da missa, o pão e o vinho comunitários são meramente alimentos; eles não se tornam o corpo e o sangue místicos de Cristo até que todas as palavras mágicas tenham sido devidamente recitadas. Da mesma forma, uma imagem de culto egípcia começava sua existência como uma mera imagem; ela não “ganhava vida” com o espírito do deus ou fantasma que deveria representar até que sua boca fosse simbolicamente “aberta”. É interessante que o Khepesh, o mesmo poder que Set usa para pisotear Osíris e ferir a Serpente, também pode ser usado para criar interfaces mágicas entre este mundo e o próximo.

Hórus “abrindo a boca” de uma múmia.

O Khepesh é também conectado ao cetro was, que tem a cabeça e a cauda bifurcada do animal Sha. O nome was (que rima com “Oz”) significa “poder” ou “domínio”, e o cetro representa o poder real para subliminar o caos. Usar o Sha nesse simbolismo é parecido com o uso das gárgulas de pedra nas igrejas cristãs. As gárgulas representam forças obscuras e caóticas que foram “domesticadas” e que agora nos protegem de outras forças ainda piores. Isso me lembra de paralelos entre Set e o monstro gigante favorito de Tóquio, o Godzilla. Ambos começam de forma bastante inocente, mas depois se tornam seres extremamente perigosos que ameaçam destruir o mundo inteiro. Depois, ambos acabam sendo “dominados” para defender a Terra de monstros infernais malignos como Apep e King Ghidorah.

“Figura 2.5. Variações do cetro was. De Schwaller de Lubicz, Sacred Science [Trad. Ciência Sagrada], fig. 29.”

Como consideração final, o Khepesh é semelhante em conceito ao que os cristãos chamam de “o Sangue de Cristo”. Esse último é supostamente uma substância mística real que lava todo o pecado do coração de uma pessoa. Da mesma forma, o ferro de Set “endireita as espinhas” e “abre as bocas” dos deuses e dos mortos. Ambos os objetos faziam parte do corpo de uma divindade e ambos podem ser magicamente “atraídos” pelos adoradores para dispositivos físicos. Assim como o pão e o vinho sacramentais em uma missa católica podem se tornar o corpo e o sangue reais de Cristo, as pessoas e os objetos com propriedades tifonianas também podem ser “carregados” com a força de Khepesh.

Notas do Tradutor:

[1] Um asterismo é um grupo de estrelas que formam um padrão reconhecido e destacado dentro de uma constelação, ou simplificando de uma forma bem grosseira, “uma constelação dentro de uma constelação”. O asterismo que o autor menciona se trata das setes estrelas mais brilhante da constelação de Ursa Maior, que é conhecida como Big Dipper (“Grande Concha” ou “Grande Carro”) na América do Norte, e conhecido no Reino Unido como Plough (“Arado”), inclusive esse asterismo e a estrela polar são mencionados no sexto capítulo do Liber Ararita de Aleister Crowley.

[2]  Vale lembrar que a palavra sinister e sinistrum (sinistro/a) originalmente era usada no latim (e mais tarde no italiano) para se referir ao lado esquerdo, e na idade média os canhotos eram frequentemente acusados de bruxaria e de ter ligação com o diabo, sendo punidos com a fogueira.

Referências

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Apêndice do Morte Súbita:

Caso o leitor tenha se interessado pelo tema das constelações circumpolares, as “Estrelas Imperecíveis”, as “Estrelas que nunca se põem”, forneço aqui uma sugestão de leituras complementares para se aprofundar no tema:

  • Stairway to Heaven: Chinese Alchemists, Jewish Kabbalists and the Art of Spiritual Transformation (Trad.: Escadaria para o Céu: Alquimistas Chineses, Kabbalistas Judeus e a Arte da Transformação Espiritual, inédito no Brasil) de Peter Levenda, publicado no ano de 2008 pelo selo Continuum da editora Bloomsbury Publishing. Este livro explora a importância do asterismo das sete estrelas mais brilhantes da constelação de Ursa Maior pelas mais diversas tradições espirituais, desde a Mesopotâmia, Egito Antigo, China, o Culto Mitraico e até sugerindo até que o Touro que é morto por Mitra não se trata da constelação zodiacal de Touro mas sim de Ursa Maior, até tradições espirituais modernas como a Irmandade Hermética de Luxor, Aurora Dourada e até Kenneth Grant.
  • Arktos: The Polar Myth in Science Symbolism, and Nazi Survival (Trad.: Arktos: O Mito Polar na Ciência, Simbolismo e a Sobrevivência Nazista, inédito no Brasil) de Joscelyn Godwin publicado no ano de 1996 pela editora Adventures Unlimited Press. Explora a importância do mito de uma civilização polar e as constelações circumpolares no nazismo, ufologia, na teoria da Terra oca, os reinos ocultos de Agartha e Shambala, etc.

Link para o original: https://desertofset.com/2020/06/16/khepesh/


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