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Egiptomania

A Tradição LV-426

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Texto de G. B. Marian.
Traduzido por Caio Ferreira Peres

Alguns detalhes sobre um clã setiano único ao qual me tornei sacerdote

Existem outros três setianos com os quais eu tive o privilégio de operar alguns rituais que realmente mudariam as nossas vidas ao longo dos anos. Esses indivíduos sabem quem eles são, mas pelo o respeito de sua privacidade, eu apenas os identificarei como Blackwyn, o Tonester, e Irmã Bean. Caminhar com Set é um caminho solitário, mesmo se você participar de um grupo, e nem todos em meu círculo irão concordar com os outros em tudo. Mas a questão não é que nós sempre acreditamos ou praticamos as mesmas coisas. A questão é que nós somos atraídos por Set com nosso próprio jeito e pelas nossos próprios motivos; que nós fizemos vários rituais e feitiços efetivos juntos; e que nós testemunhamos os mesmos resultados sobrenaturais que esses procedimentos renderam. Anos se passaram desde que nos declaramos como um clã em 2003; agora estamos distantes de cada um vivendo em suas próprias áreas e focando em suas prioridades. Mas mesmo que nós nunca mais nos encontremos pessoalmente para fazer outro ritual juntos novamente, nós sempre estaremos conectados com cada um de alguma maneira.

Essa “alguma maneira” é Set.

Em 2007, começamos a referir nossos ritos coletivos como a Tradição LV-426 pelos seguintes motivos:

  • O filme de terror e ficção científica Alien: O Oitavo Passageiro é um ótimo exemplo do que chamamos “os filmes de monstros como mitologia”, e por esse motivo queríamos que o nosso nome homenageasse o filme.
  • O Tonester e eu estávamos ambos vivendo em Bible Belt[1] naquele momento, e o conflito de Ripley contra o Alien era uma metáfora perfeita sobre como nós nos sentíamos ao viver por lá.
  • Sendo uma dupla de espertinhos, queríamos um nome que fosse muito complicado de ser repetido em uma breve conversa. (Diga “Tradição LV-426” seis vezes no mesmo parágrafo para entender o que quero dizer!)

Da esquerda para a direita: O Tonester, Irmã Bean, Yours Truly, e Blackwyn.

Caso você nunca o tenha assistido (e que vergonha se você ainda não o fez!), o Alien original é sobre esses astronautas em um futuro distante que parece ser um sinal de socorro de origem desconhecida. Eles chegam em um planeta desolado chamado “LV-426” em seus mapas estelares, onde eles encontram uma nave alienígena acidentada com a equipe morta e uma tonelada de ovos de couro estranho como carga. Um desses ovos se choca, liberando uma terrível besta que se reproduz ao estuprar um dos homens (!). Devido a uma quebra no protocolo, a criatura entra na próxima fase de seu ciclo de vida a bordo da nave, e o filme então se torna um slasher no espaço sideral. A última pessoa a sobreviver é Ellen Ripley, interpretada por Sigourney Weaver, que emerge do caos e da carnificina para se tornar a primeira heroína feminina de filmes de ação.

O Alien lembra fortemente Apep, o eterno arqui-inimigo de Set. Proposta pelo surrealista suíço, H. R. Giger, sua biologia não faz o menor sentido. Como ela pode enxergar sem olhos? Por que qualquer coisa evoluiria para ter duas bocas—uma dentro da outra—sendo que uma já é o suficiente? Como pode o seu sangue ser tão corrosivo que queima qualquer metal, mas sem ser letal para a própria criatura?[1] Nada na natureza pode existir como aquilo, e o mesmo vale para Apep. Ela é descrita como não tendo órgãos sensoriais—ela não tem olhos e nem orelhas—e ainda assim de alguma forma ela é capaz de localizar e paralisar sua presa com um olhar hipnótico. Ela é descrita como como capaz de “respirar por meio de seu próprio rugido” e “viver por meio de seus gritos”, o que significa que ela não precisa de qualquer sustento para a sua sobrevivência; ela apenas come coisas para fazê-las sofrer (Manassa, 2014). Ambos Apep e o Alien são monstros que só podem existir nos pesadelos, que operam na total ausência da lei natural, e que seriam absolutamente venenosos a qualquer ecossistema em que eles tentassem viver.

Ellen Ripley, em contrapartida, é a substituta perfeita para o Senhor Vermelho. Ela é a estranha ou “ovelha negra” entre sua equipe, a única que leva o seu trabalho a sério e uma verdadeira defensora do protocolo (mesmo recusando a deixar o Capitão Dallas [Tom Skerritt] entrar na nave quando ela descobre que ele tem um membro da tripulação infectado a reboque). Compare isso com a outra tripulante, Lambert (interpretada por Veronica Cartwright), que reclama, grita ou até mesmo chora desesperadamente o filme todo. Há também o fato de que Ripley se veste e se comporta como um homem. Uma das muitas amantes de Set é a deusa ugarítica Anat, a qual é frequentemente representada com roupas masculinas (Patai, 1990), e a qual se diz que Set acha atraente por esse motivo. Dado o quanto Ele gosta de eliminar monstros como o xenomorfo e o quanto ele gosta de mulheres andróginas como Anat, é difícil para mim imaginar Set não torcendo por Ripley em Seu trono atrás de Ursa Maior (Além do mais, o fato de se dar tanto trabalho para salvar Jones o Gato certamente daria pontos à mais para Ripley com Bast, Ishtar, Sekhmet e outras deusas parecidas da bondade felina.)[2]

Anat, uma deusa ugarítica que é uma das muitas consortes de Set.

 

Alien também está repleto com várias referências à anatomia sexual e aos processos reprodutivos. O computador da nave é chamado de “Mãe”; os astronautas parecem que estão nascendo quando acordam de suas câmaras de sono criogênico; os túneis da nave abandonada em LV-426 lembra enormes tubos de falópio; e a cabeça do xenomorfo parece um penis ereto (o que me faz sempre pensar em alguém sendo estuprado ao contrário na infame cena do “chestburster”).[3] Ripley tem até mesmo o seu confronto final com a besta usando suas roupas íntimas,[4] e ela também precisa confrontar a “Mãe”, que insiste em manter o Alien vivo para estudos futuros (mesmo ao custo da vida dos astronautas). Há portanto um conflito secundário entre Ripley e o computador, que se preocupa mais com a sobrevivência da “criança” do que com a dos “pais”. Isso é especialmente intrigante dado que acredita-se que Set cause abortos (te Velde, 1977). Como o Seu avatar cinemático, Ripley precisa alienar a si mesma da sociedade ao “abortar” a forma de vida gestante que os seus superiores julgaram mais importante que ela (Cobbs, 1990).

H. R. Giger obviamente foi influenciado pelo escritor de terror da Nova Inglaterra H. P. Lovecraft, mas tenho quase certeza de que ele também foi inspirado por um ocultista britânico chamado Kenneth Grant. Uma vez discípulo do infame Aleister Crowley, Grant era obcecado com o que ele chamava de os “Túneis de Set”, que seriam supostamente buracos de minhoca astrais que circulam entre vários universos alternativos. Ele foi o primeiro autor ocultista a sugerir que H. P. Lovecraft era um “profeta dormente”, e que monstros como Cthulhu e Nyarlathotep são seres reais que existem em alguma outra dimensão. (Ele antecipou o Necronomicon de Simon por pelo menos uma década, se não mais). Dado isso, estou certo de que o ajna chakra ou “terceiro olho” de Grant provavelmente explodiu se é quando ele chegou a ver o Alien por si mesmo. E se H. R. Giger não pensava especificamente sobre os “Túneis de Set” quando imaginou pela primeira aqueles corredores sinuosos e ciclópicos daquela nave fantasma, certamente ele poderia ter me enganado.

Da esquerda para a direita: H.P. Lovecraft (1890–1937), Kenneth Grant (1924–2011) e H.R. Giger (1940–2014).

 

Apesar de tendemos a partilhar do entusiasmo de Grant pelos “muitos mundos” da interpretação da mecânica quântica, meus parceiros do coven e eu temos nenhum interesse em contatar qualquer ser da horrível fauna que H. P. Lovecraft imaginou para os seus contos lúgubres. Ao invés disso, nós enfatizamos a execração ou usar a magia para afastar a negatividade e desgraças da vida das pessoas. Isso é funcionalmente parecido em princípio em jogar uma maldição fatal em alguém, salvo que o alvo de seu feitiço é Apep, a verdadeira fonte de todo o mal, e não qualquer vítima humana. No que nos diz a respeito, caminhar com Set não é se tornar amiguinho de monstros espaciais lovecraftianos; e sim sobre defender ferozmente a autonomia de todos os seres sencientes.

A ideia de que temos que ser “ferozes” nesse aspecto vem de quando eu e o Tonester vivíamos em Bible Belt durante o início dos anos 2000. Estávamos constantemente sobre o cerco de professores, colegas, empregadores, policiais e políticos “prontos para o Arrebentamento”. Não podíamos nem fazer caminhadas de oração nos bosques sem sermos assediados por pessoas que achavam que estávamos “adorando o diabo”. Após um tempo, parecia que nós estávamos realmente presos em um lugar selvagem hostil, com um monstro real vindo atrás de nós. Esse monstro não era de fato um xenomorfo, claro, mas Apep; e ao invés de literalmente tentar nos devorar, ele estava tentando devorar nossos corações por dentro. Mas Set é misericordioso; Ele nos uniu naquele maldito lugar, contra todas as adversidades, e Ele nos abençoou com a companhia e apoio um do outro. Depois nós encontramos Blackwyn e Irmã Bean em Michigan algum tempo depois, e o resto é história. Cada um de nós é a prova para os outros da providência de Set, e Alien é uma excelente parábola para as nossas caças particulares contra a Serpente.

 

Mas execrações não são o único elemento básico de nossa prática; temos também nosso ritual sabático semanal, que é realizado nas noites de sexta-feira. Nós entramos numa sala escura que foi preparada com um altar, uma imagem de Set e algumas velas vermelhas. Nós recitamos nossa invocação padrão juntos, e depois nos revezamos para orar informalmente a Set, como se Ele fosse uma pessoa comum em nossa sala. Normalmente isso significa discutir nossas esperanças e medos, nossos melhores e/ou piores momentos da semana, ou alguma coisa nessa linha. Quando alguém finaliza sua oração, ela se volta para a próxima pessoa na sequência (o qual está sempre à esquerda) e diz, “Se há alguma coisa que você queira dizer ao Senhor Vermelho neste momento, sinta-se à vontade para fazê-lo.” E se a próxima pessoa não tiver nada que ela queira orar para, ela ficará quieta para que a próxima pessoa proceda. Quando todos finalizam, abrimos cervejas, tocamos heavy metal e conversamos até altas horas da madrugada, às vezes não terminando antes do amanhecer. Essas trocas que compartilhamos durante essas conversas noturnas no Sabá são uma das mais profundas meditações que experimentei em minha vida.

Algumas outras que fizemos incluem um feitiço para proteção durante o sono, uma técnica de peregrinação astral e uma cerimônia matrimonial que foi usada durante o meu casamento em 2012 e para o de Irmã Bean em 2015. Há também um ritual de iniciação que é usado para induzir novos membros, mas este procedimento só é conhecido por aqueles que passaram no nosso processo seletivo e são convidados a participar. (Considerando que tem apenas quatro de nós desde que Set me atingiu com Seu raio negro pela primeira vez em 1997, você deve imaginar o quão raro isso acontece.) Nosso calendário litúrgico inclui não apenas o nosso Sabbat semanal mas também Hallowtide (31 de outubro à 2 de novembro), Walpurgisnacht (30 de abril), e a Sexta-feira Treze (a qual celebramos Set como o catalisador da ressurreição de Osíris e a concepção de Hórus). Mais importante, não temos um líder ou um/a “sumo/suma sacerdote/sacerdotisa”; cada um de nós é plenamente qualificado para administrar nossos ritos a qualquer um que precisar deles, e todas as decisões de nosso grupo (incluindo tanto para iniciar qualquer novos irmãos e/ou irmãs) são feitas por voto unânime.

À parte do que foi dito acima, nós setianos da Tradição LV-426 podemos acolher quaisquer crenças ou práticas adicionais que gostemos. Alguns de nós reverenciamos outras figuras sagradas junto de Set, como Buda, o deus nórdico Odin, ou a deusa babilônica Ishtar. Alguns de nós até comemoramos o Natal ou o Dia de São Patrício. Nosso ecletismo é baseado no papel de Set durante o Reino Novo como o embaixador entre os deuses egípcios e outros panteões. Assim como Ele pode vagar entre realidades alternativas e brincar com divindades alienígenas, então somos livres para misturar a antiga sabedoria kemética com qualquer coisa que achemos útil, desde a história americana colonial das bruxas à demonologia zoroastra. Algumas pessoas de fora podem achar essa repugnante permissividade em relação ao dogma religioso, mas não estamos nem aí; o Grande Vermelho é a única justificativa que precisamos.

Já faz algum tempo que nos encontramos pela última vez para manter o Sabbat, execrar nossos demônios interiores na Walpurgisnacht ou oferecer um banquete de melancia ao Grande Vermelho na Sexta-feira Treze. Não posso dizer sobre como os outros podem ou não “acompanhar” com essas práticas atualmente (apesar de eu precisar admitir que foi difícil para mim as fazer consistentemente), mas nenhum de nós sequer esperava ter tal comprometimento de qualquer forma. É o fato de que nós fizemos todas essas coisas—e da magia que compartilhamos quando fazíamos—que realmente importa. E há sempre a possibilidade de algum momento na caminhada, um quinto iniciado da LV-426 pode se apresentar a nós, iniciando todo um novo ciclo de rituais. Por agora, todos os ex-alunos da LV-426 estão explorando outros mundos proverbiais, mas sempre com o Ferro de Set em nossas espinhas.

O sigilo da LV-426.

Referências

Cobbs, J.L. (1990). Alien as an abortion parable. Literature / Film Quarterly, 18(3), 198–201. Retrieved on October 5, 2017.

King, S. (1983). Danse macabre (2nd edition). New York, NY: Berkley Books.

Manassa, C. (2014). Soundscapes in ancient Egyptian literature and religion. In E. Meyer-Dietrich (Ed.), Laut und leise: Der gebrauch von stimme und klang in historischen kulturen (pp. 147–172). Bielefield, Germany: Transcript Verlag.

Patai, R. (1990). The Hebrew goddess (3rd edition). Detroit, MI: Wayne State University Press.

Plutarch (1970). De Iside de Osiride. Cardiff, Wales: University of Wales. te Velde, H. (1977). Seth, god of confusion: A study of His role in Egyptian mythology and religion. Leiden, Netherlands: E.J. Brill.

NOTAS

[1] Estou bem ciente de que nas prequências de Ridley Scott para este filme—Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017)—é revelado que os xenomorfos não evoluíram naturalmente, mas foram geneticamente modificados como um tipo de arma biológica. Isso ainda não explica o por que seu sangue, que pode queimar qualquer maldito metal, não queima os seus próprios corpos também.

[2] Alguns telespectadores—incluindo o Grande Steve King—reclamam que a missão de Ripley para salvar Jones o Gato é um “interlúdio sexista” que prejudica seu papel como personagem femininista (King, 1983). Sou um orgulhoso pai de gatos, e se eu estivesse na posição de Ripley, eu faria de tudo para também salvar o meu bebê peludo. (Aposto dez dólares que se Jones fosse um cachorro, ninguém estaria reclamando disso.)

[3] A cena do “chestburster” é um tanto similar à história do nascimento de Set, de acordo com Plutarco (1970). Ele conta que Set não nasceu num tempo normal ou de forma normal, mas que Ele impacientemente explodiu do ventre de sua mãe, a deusa do céu Nut. É tentador pensar que o roteirista, Dan O’Bannon, pode ter encontrado essa história em algum momento enquanto escrevia o roteiro para Alien.

[4] Alguns telespectadores—novamente, incluindo Mr. King—reclamam que esta sequência final “sexualiza” demais a Ripley (King, 1983). Tenho que dizer isto como um cara hetero, essa cena nunca me fez pensar “Oooh, olhe a garota pelada!” Em vez disso, ela sempre me faz pensar numa vez em que tive que me remexer nu no porão para tirar algumas roupas limpas da secadora e fui recebido por uma aranha enorme que me fez mijar de medo. Em outras palavras, isso faz com que eu me identifique com Ripley em vez de objetificá-la, e eu aplaudo Ridley Scott por enquadrar a cena dessa maneira.

Nota do Tradutor:

[1] O Bible Belt (“Cinturão Bíblico”) é uma região dos Estados Unidos que abrange o sul do país e partes da regiões oeste e centro-oeste, na qual a prática do cristianismo protestante conservador desempenha um forte e importante papel na sociedade.

Link para o original: https://desertofset.com/2020/06/15/the-lv-426-tradition/

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