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Entre outras Oniromancias: dos gregos aos ameríndios

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Gustavo Ruiz da Silva

Começa-se este artigo indagando, seria possível vermos o sonho de outra maneira? Apresenta-se, então, outras possibilidades analíticas, como foi visto na Grécia Antiga, no Império Romano e no mundo ameríndio.

CAMINHO PRIMEIRO: OS GREGOS, ARTEMIDORO SEGUNDO FOUCAULT

É pela perspectiva de Artemidoro que proponho fazer a primeira viagem mental pela Grécia antes de tomarmos outros rumos. Desta maneira, segundo Foucault (1988, pp. 16-49), a interpretação dos sonhos é apresentada como uma técnica de exame de si. É uma técnica que, no século XIX, veio a conhecer um destino importante, apesar de ocupar uma posição peculiar na Antiguidade. A interpretação dos sonhos era importante, porque é por meio da significação destes que se pode ler o indício de um acontecimento futuro. Os filósofos da Antiguidade tinham, em relação à interpretação dos sonhos, uma atitude ambivalente. Ainda que a maior parte dos estóicos se mostrasse cética e crítica, a interpretação dos sonhos era uma prática geral e popular. Existiam, de um lado, os “experts” capazes de interpretar os sonhos – como Pitágoras e alguns filósofos estóicos – e, de outro, os especialistas que escrevem livros, a fim de ensinar às pessoas a maneira de interpretar os seus próprios sonhos. Os escritos sobre esse tema eram inúmeros, mas o único manual de onirocrítica que nos sobrou foi Sobre a Interpretação do Sonhos (2009), de Artemidoro, do século II d.C.

Em A História da Sexualidade III: O Cuidado de Si (2002), Foucault inicia o livro dizendo que Artemidoro se ocupou “sem interrupção, noite e dia”, com a interpretação dos sonhos. Para ele, Artemidoro empreendeu a redação de uma obra metodológica, que deveria ser um manual para as práticas cotidianas, mas também um tratado teórico sobre a validade dos procedimentos interpretativos. Como já dito, os sonhos, mais especificamente as suas imagens, eram tidos como presságios do futuro ou signos da realidade e, assim, uma vida racional não poderia fugir desta tarefa. Segundo Foucault, a oniro-análise era uma prática da vida, pois era por lá que os deuses davam conselhos ou opiniões – era preciso tomar os sonhos como uma espécie de profeta sempre pronto, conselheiro silencioso.

Para Artemidoro (2009, p. 23), na escrita de um livro não só voltado para a interpretação, mas sim para uma téchne, uma arte que permite a interpretação, os sonhos são movimentos ou modelagem da alma que significar o futuro, pois são feitos de “imagens particulares conforme a natureza das coisas”. Na leitura de Foucault (2002, p. 16): “o texto de Artemidoro é revelador de um modo de existência e de um tipo de preocupações próprias às pessoas comuns”. Ele quer refutar os seus adversários, não mostrando nuamente os seus resultados, mas sim discutindo os procedimentos metodológicos de inquérito e reflexão dos sonhos. Reconhece-se, assim, como procedimentos de inquérito, noções como de história e experiência, formas de controle, coletas de saberes da ordem natural ou medicina.

Subsequentemente, Artemidoro distinguiria dois tipos de sonho, que agem 1) sobre o corpo e a alma, e 2) sobre o desenrolar da cadeia do tempo. Os sonhos do desejo dizem o real da alma em seu estado atual e os sonhos do ser dizem o futuro dos acontecimentos na ordem do mundo. O que se interessa expor aqui, então, é este segundo. Cabe-se agora a pergunta: como distinguir, nos Sonhos de Acontecimento, aqueles que são transparentes e “teoremáticos” daqueles alegóricos? Os sonhos teoremáticos se abrem sobre aquilo que anunciam, não deixando margem à interpretação, nem tempo indispensável; já os alegóricos não são seguidos de realização direta, convém interpretá- los. E é na interpretação da alegoria onírica que o analista opera por analogia. É nesse esquema que Artemidoro vai abordar os mecanismos interpretativos, mostrando as apreciações morais e as suas representações nos sonhos…

Ele não diz se determinado ato é bom ou mal, moral ou imoral, em si mesmo e em sua realização, mas sim se é vantajoso ou temeroso sonhar que tal ato é cometido. Há, aí, uma guinada, não se observa, então, os próprios atos, mas sim os autores do cenário onírico e as circunstâncias em que estes atos se porão concretamente no mundo social. Segundo a interpretação de Foucault (2002, p. 22), acerca das obras de Artemidoro, “o sonho diz o acontecimento, a fortuna ou o infortúnio, a prosperidade ou a infelicidade que irão caracterizar no real o modo de ser do sujeito, e o diz através de uma relação de analogia com o modo de ser do sujeito enquanto autor”.

Não há sentido psicológico no sonho, mas antes desenvolvimento cósmico que afeta o sonhador, sua família e sua cidade. O que se expressa aqui é uma possibilidade, uma outra metodologia de análise onírica fora parâmetros contemporâneos, mas que possibilita ver formas diversas de organizarmos a nós mesmos como sonhadores e o mundo que deles decorre. Como indicado por Foucault, é uma técnica, prática de si, antes de tudo. É neste ponto que trago um caso trabalhado por Paul Veyne que expressa o impacto dos sonhos no mundo real a ponto de mudar o Ocidente tal como conhecemos…

CAMINHO SEGUNDO: OS ROMANOS, CONSTANTINO SEGUNDO VEYNE

Ano de 312 d.C.. Imenso Império Romano. A igreja Cristã ia mal, milhares de mortos eram o resultado de uma das piores perseguições da Europa. Buracos surgiam no tecido religioso da sociedade. “O salvador da humanidade: Constantino”, este é o título do primeiro capítulo de Quando nosso mundo se tornou cristão, de Paul Veyne (2011). O ato mais audacioso que já se viu de um autocrata e uma revolução religiosa que desagradava 90% da população. Hoje, mais de um bilhão e meio de pessoas no mundo são marcados por uma noite, por uma epopeia sobrenatural. Aos 35 anos, chefe do ocidente romano, Constantino, como líder político e religioso, crê-se chamado a salvar a humanidade. Megalomaníaco, era um homem de ação e, por causa e meio de um sonho, transformando o trono romano em cristão, tirou a Igreja do status de seita de vanguarda.

Século IV. O império se dividia entre 4 co-imperadores, 2 repetiriam o rico Oriente romano e 2 o Ocidente, Licínio e Constantino, que governava a Gália, Inglaterra e Espanha, mas também deveria ser o governante de Roma e da Itália. Contudo, as mesmas tinham sido usurpadas por Mexênico, levando Constantino à guerra por sua reconquista. Segundo Veyne (2011, p. 9), foi no curso desta campanha que, confiando no Deus cristão, Constantino ganhou a batalha. Mas, por que teria ele feito isto? Na véspera do dia em questão, do decisivo embate, um sonho. Um sonho no qual o Deus dos cristãos prometeu-lhe a vitória caso anunciasse publicamente a sua nova religião. E assim foi feito: Maxênico foi destruído e um novo símbolo figurava nos escudos romanos. De agora em diante, o cristianismo seria, frente ao paganismo, como a grande religião favorecida.

Como no supracitado, os imperadores do Ocidente eram 2: Constantino e Licínio, que também tinha tido um sonho numa véspera de batalha, contra um dos outros co- imperadores do Oriente. Naquela noite, um “anjo” prometera-lhe a vitória caso rezasse ao “Deus supremo” e pedisse a este que orasse pelo seu exército. Nas palavras de Veyne: “Licínio conseguiu a vitória, tornou-se o senhor do Oriente e lá mandou afixar um edito da tolerância. Desse modo livrou os cristãos orientais de seu perseguidor”. Licínio, o pagão, e Constantino, o cristão, assim, findaram em seu indivisível império o acordo de igualdade entre as suas religiões, um compromisso indispensável para uma época que se pretendia pacífica. Com a vitória de 312 d.C., o discurso religioso mantido pelo poder, então, mudou radicalmente e em 324 d.C., Constantino conseguiu reunir as duas metades do império sob o cetro cristão ao, nas palavras de Veyne, esmagar Licínio no Oriente (VEYNE, 2011, pp. 10-11).

A partir daí, o cristianismo dispunha de tudo aquilo que se considerava civilização, aquilo que se chamou por muito tempo o Império Cristão. Em 312 d.C., a religião tolerada era o cristianismo, em 324 d.C., o paganismo. Dois sonhos mudaram a história do Ocidente em 12 anos e o mundo europeu foi posto dos pés à cabeça. A conversão de Constantino foi um acontecimento providencial. O sonho que na noite precedente à batalha deu a ordem a Constantino para ostentar um símbolo cristão em seus escudos – uma mensagem de Deus; Constantino foi o primeiro a acreditar nisso. Naquela noite, um sonho trouxera a Constantino a revelação da crisma, sinal e promessa de vitória. Certamente, nada era mais comum, nessa época, do que tomar uma decisão depois de um sonho, considerado uma mensagem do céu. Só para nós, “modernos”, é que esse sonho é uma estranheza histórica que carrega as cores do tempo…

A crisma, produto da simbolização onírica e as palavras “sob este sinal vencerás” eram a forma imaginada sob a qual essa decisão ou essa convicção surgiram na tela do sonho. Imagística onírica que o sonhador crédulo tomou ao pé da letra e a concretizou ao gravá-la em seu capacete, escudo e estandarte. Nessa formação histórica, era normal para qualquer pessoa, entre os cristãos e pagãos, receber a ordem de um deus em um sonho, uma verdadeira visão. Também não era raro que uma vitória fosse atribuída à intervenção divina. Mas hoje tal coisa não seria levada a sério…

usaria eu insinuar que esse crisma aparecido em sonho se reduz à mais simplezinhas das curiosidades psicológicas? […] o que Constantino viu em sonho, sob forma alegórica e metafórica como é a linguagem onírica, não passava de sua própria decisão de se converter ao deus dos cristãos para obter a vitória […] Duas ou três historinhas convenceriam o leitor cético, mas deixemos isso para uma nota (VEYNE, 2011, p. 38)

É dessa forma que Veyne ri das formas contemporâneas que criam explicações céticas sobre convicções outras. Por que não imaginar que, desde sua conversão, uma visão do porvir, ainda que imprecisa e virtual, porém ampla, apoderou-se dele? Quanto à razão profunda dessa conversão, nunca saberemos. Portanto, não especularemos sobre a conversão de Constantino, por ser a crença em um estado de fé cuja causalidade nos escapa. Mas o que podemos dizer é que o sonho de Constantino ultrapassava o seu Império, era universal. Constantino despertou-se com a esperança de Salvação: foi o que ele ousou escrever numa mensagem diplomática extravagante ao seu rival, o xá da Pérsia; confessou-lhe o seu horror pelos sacrifícios sangrentos e lhe suplicou, em nome desse Deus, que não perseguisse os cristãos que já existiam no Império Iraniano. E desfere contra ele o argumento habitual: a Providência pune os príncipes perseguidores. O cristianismo assumia uma dimensão diplomática.

Contudo, o Império continuava pagão, os cultos públicos continuavam e Constantino permanecia sendo o Grande Pontífice dos pagãos. Mas, de alguma forma, Constantino começou a comportar-se como era o esperado: levando em conta que a célebre narrativa da sua conversão e do seu sonho era verídica. Com isso, ele mandou restituir aos cristãos os bens confiscados por ocasião das perseguições e começou a privilegiar o clero, por exemplo, enviando dinheiro à Igreja da África e dispensando os clérigos de qualquer imposto e obrigação pública, a fim de que os seus membros pudessem se consagrar ao serviço divino, para a maior felicidade do Império e dos humanos.

O que se mostra aqui é: quando se interpreta o sonho, tal como o mesmo era feito em sua determinada formação histórica, uma outra possibilidade analítica se abre. A não interferência das nossas concepções modernas sobre a cosmovisão dos outros tempos e lugares pode se mostrar muito útil, pois, mesmo que a historiografia se desenvolva, a visão de cada formação social é o que orienta aquele povo. Mas então cabe pensar: e os povo não-europeus, como o fazem?

CAMINHO TERCEIRO: OS AMERÍNDIOS SEGUNDO RELATOS ETNOGRÁFICOS

Frequentemente, os relatos etnográficos (Cf. ALMEIDA, 2016) se deparam com a problemática dos sonhos, muitas vezes atrelados à ideia de parentes antigos, não só avós ou bisavós, mas pessoas falecidas, nunca conhecidas, mas detentores de sabedora. É durante o sono que as famílias tupis-guaranis recebem o seus mborei (cantos-rezas), indicações, mensagens e histórias. Lá, os sonhos estão na dimensão do movimento, onde devem ser analisados.

Na Terra Indígena Araribá, a referida aldeia ganhou vida. O sonho levou-os a fundar a aldeia Ywy Pyhaú. O sonho lá é uma questão de territorialidade, não só para a organização social, mas como cosmovisão. É uma forma de mobilidade, um processo de migração em busca da Terra sem Mal, mas que também é pessoal, produzindo resultado para os indivíduos envolvidos. O exemplo que vos apresento agora é o da Revelação de Nhanderu, o sonho de fundação de uma nova aldeia. Dona Juventina, um dia, apareceu na casa de sua família, 11 anos atrás, aflita, dizendo que algo lhe havia ocorrido. Narrou ela: “Nhanderu me revelou que você fundará uma nova aldeia, e que será batizada de Ywy Pyhaú (Terra Nova que Nasceu)” (ALMEIRA, 2016, p. 25).

Contudo, Ywy é o nome de aldeia em tupi antigo, arcaico, outrora significara Terra, mas hoje é diferente, usa-se tekoha. O sonho, então, foi discutido coletivamente, com toda a família, em suas possíveis interpretações. A família procurou o cacique da aldeia sobre a revelação de Nhanderu. Ele cedeu um pedaço de terra, para que a nova aldeia fosse formada – uma nova ocupação foi autorizada num território em que a liderança já estava estabelecida, mas tal coisa não era usual do cacique. Dizem os relatos que ele era muito bravo e gostava muito de organização. No entanto, a revelação fê-lo tomar tal atitude. Os sonhos, entre os tupis-guaranis, são uma experiência significativa e não podem ser esquecidos.

Dessa forma, quatro casas de madeira formaram a nova aldeia e se concretizou o que Nhanderu havia mostrado em sonho. A aldeia contava, agora, com a liderança de Dona Juraci. Mas eles não estavam contentes, diziam que seus parentes antigos andavam por diversos lugares e viveram onde hoje localiza-se o município de Barão de Antonina. Como dito por Almeida (2016), os sonhos indicaram outros lugares, influenciaram as famílias Ywy Pyhaú e os levaram aos antigos aldeamentos. Histórias de antepassados em caminhos e buscas por outros foram narrados em sonhos e, também, foram necessários para o deslocamento de Dona Juraci em direção a Barão de Antonina, onde hoje vivem.

O que acontece no sono é assunto de extrema importância no cotidiano das famílias tupis-guaranis. O que chamamos de sonho é uma maneira simplificada de dizer o que se denominava xeke rupi. Xeke rupi (caminho do sono) configura-se como o modo de saber, caminhos a serem percorridos, formas de se relacionar, grandes decisões, assuntos corriqueiros do dia a dia. O sonho, para eles, é uma viagem da alma enquanto o corpo dorme e é nestas viagens que eles recebem as mensagens, canto-rezas, notícias de parentes distantes e falecidos… Mas isso não os exime de perigo. A vida indígena é uma vida de perigos e, como tal, alguns caminhos e maus encontros durante o sono devem ser evitados, a fim de prevenir que seus corpos-espíritos sejam seduzidos ou capturados por outros tipos de gente.

Na literatura americanista, é comum ouvir sobre viagens da alma, uma espécie de vagar, como para os Achuar (Cf. Descola, 2016), em que as pessoas dessa tribo veem o Wakan, a sobra, a representação e o reflexo, de um indivíduo deixar o corpo para passear pelo cosmo; para os Parakanã, enquanto o corpo se encontra inerte, cabe ao -a’owa, o duplo onírico, a atividade dos sonhos; ou para os Yanesha, em que as vitalidades separam- se do corpo e vagam por outros níveis do mundo. Segundo Nimuendaju (1954), os sonhos de lá são experiências vividas pelas almas das pessoas, mas que são capazes de interferir no rumo de suas vidas, provendo saberes e poderes. Para eles, quem sonha sabe e pode muito mais do que aquele que não.

Em Entre Deuses e Animais: Xamanismo, Parentesco e Transformação entre os Chiripá e Mbyá Guarani (2006), os sonhos nas tribos guarani são constantemente narrados pela manhã, como foram, o que se via e, caso uma pessoa comum comece a ver seres de outro plano, é sinal de que seus poderes xamânicos estão se manifestando. Contudo, apesar de sua maior expressividade na literatura especializada, os sonhos não se restringem à dimensão xamânica. Tanto o sonho das pessoas comuns, quanto o sonho dos xamãs, podem colocar a aldeia em movimento. A interlocução divindade-pessoa funciona como um aconselhamento, capaz de orientar uma coletividade e dar impulso aos acontecimentos maiores.

Sonhar, assim, é muito mais do que uma determinação, é um modo de ver na forma de pressentimento; não se trata de algo simplesmente premonitório. O que se pressente durante o sono pode ou não acontecer na realidade, abrindo uma possibilidade negociativa entre o sonhador e o experienciado. A experiência subjetiva permanece em disputa na escolha do relato do sonhador aos outros. Entre os Wayuu (Cf. ROMERO, 2010b), povo indígena Arawak que habita a Península da Guajira, extremo nordeste da Colômbia e norte da Venezuela, o espírito dos sonhos (ajapüjawa) relaciona-se com os outros seres (plantas, mortos), com intencionalidade, permeando e influenciando as práticas cotidianas.

A questão é: no contexto das sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul, o dualismo construído entre natureza e cultura não corresponde às dinâmicas cosmológicas dos povos ameríndios. Há um continuum entre humanos e não-humanos. Como dito por Descola (2014), as cosmologias amazônicas estabelecem uma diferença de grau, não de natureza, entre os homens, as plantas e os animais. Neste contexto, diversos seres existentes têm faculdade e ação para interagir como sujeitos ativos. Nessa compreensão de economia simbólica da alteridade, aborda-se as cosmologias ameríndias não como sistemas mônadas de natureza a partir de trocas simbólicas entre diversos existentes humanos e não-humanos – a dialética entre alteridade e identidade é condição sine qua non dos regimes sociopolíticos amazônicos4.

Para Romero (2010), nos Wayuu o sonho é um espírito que se manifesta permanentemente na vida cotidiana das pessoas, o espírito tem a faculdade de interagir e orientar os destinos das pessoas. Mas, aqui, não há uma separação estrita entre pessoas, vivas ou mortas e outras alteridades (espíritos, plantas); logo, todos esses têm ação para influenciar práticas e experiências comuns. Para eles, o sonho revela novas relações sociais que podem estar atreladas tanto às práticas funerárias quanto aos rituais de morte e vingança pautados na sukua’ipa wayuu. Sukuai’pa wayuu significa, literalmente, à maneira Wayuu; é um sistema de compensações e cobranças em episódios de morte, lágrimas, ofensas, honra e moral das pessoas e do grupo. Os wayuu vingam as ofensas morais e as mortes a partir de uma lógica que organiza o valor social da ofensa e os valores sociais.

Assim, a vingança é o modus operandis desse processo, mas não é o significado da vingança o mais relevante, mas o que ela veicula. Para os Wayuu vingar a morte ou as ofensas morais sofridas por um parente remete-se às compreensões da noção de pessoa Wayuu, que é ressignificada pelo protagonismo manifesto de existentes como alapüjawa (espírito do sonho), que revela, antecipa, ordena as práticas culturais, conflitos e reciprocidades sociais. Os sonhos podem antecipar desgraças, acidentes ou episódios de mortes não apenas relacionados com a pessoa que sonha, mas também com o outro. O alapüjawa, permanentemente manifesto pelos sonhos, tem agência nos processos ritualísticos relacionados com a morte, e neles a proteção do corpo é um locus de suas práticas. Nesse caso, há um estado de “alteração” e transfiguração, potente e perigoso, tanto de humanidades vivas quanto mortas, potencializado nas relações que alepüjawa anuncia, antecipa e ordena. “Sonhar com os mortos é um evento permanente entre os Wayuu” (ROMERO, 2010a, p. 131).

Por meio dos sonhos, eles mantêm o contato com o mais-além, recebendo mensagens de como proceder com a pessoa morta. Os rituais funerários são influenciados pelas orientações que o morto dá em sonho. A transfiguração nos mundos possíveis de existência, em (e por meio do) sonho representa, para os Wayuu, perigos e poderes dos existentes espirituais. Os sonhos são mais do que uma simbologia onírica que funciona como elemento norteador de experiências sociais. Para eles, os sonhos representam uma interação constante com alteridades em jogo que apresentam perigos, saberes e poderes. Nos processos simbólicos, os corpos são atravessados pela mediação dos sonhos. Eles fluem para desquitar a dor nos vivos e, também, nos mortos. É no ato de sonhar que se extraem as certezas, os dilemas e os desejos dos vivos e dos mortos. Nesse sentido, quem sonha tem poderes.

CONCLUSÃO: POSSÍVEIS CRUZAMENTOS

Desta forma, ao modo de conclusão, poderíamos dizer que há milênios, os sonhos ocupam o imaginário das pessoas, que tentam lhes dar sentido e estatuto. Inúmeras técnicas fulguram na História, dos índios sul-americanos à Antiguidade Clássica. Desses tempos, contudo, só a obra de Artemidoro de Daldis, do século II, permaneceu intacta. Tal obra aparece em diálogo oculto em muitas maneiras de entender a experiência onírica nos tempos atuais. As tecnologias5, noção que expressa um “modelo” metodológico- analítico, neste caso para interpretação dos sonhos, não imprime somente uma perspectiva do saber, mas sim seus impactos na maternidade empírica. Estas ferramentas são também modos de dar direção à vida, contendo em si estreito consórcio com as práticas de conduzir uma prática individual e coletiva. As tecnologias dos sonhos auxiliam o governo de si, como trabalhado por Foucault em sua análise de Artemidoro, e o governo dos outros, como no caso de Dona Juraci.

Na leitura da “onirocrítica” de Artemidoro (2009, p. 26) não há dúvidas de que o sonho liga-se impreterivelmente ao sonhador. Nas palavras dele: “nunca teremos sonhos a respeito de coisas que nunca nos preocupam, já que mesmo quando se trata de nossos próprios problemas, se não nos preocupamos não sonhamos com eles”. Em Artemidoro, então, a interpretação enuncia o que há de vantajoso ou temeroso para o sonhador, o que vai lhe acontecer, pressagiando o destino do sonhador na vida social. O sonho faz previsões por meio das alegorias que devem ser decifradas pelas analogias que o onirocrítico encontra, comparando as semelhanças das imagens da noite com as da vigília. A claridade do dia confirma a verdade trazida na dramática onírica. A realidade do sonho tem uma estruturação homogênea com a realidade do dia claro, a realidade estende-se até o universo noturno e lá apresenta-se por antecipação. Segundo Foucault (2002, p. 48), a interpretação não se volta para uma curiosidade pessoal, mas é um trabalho para “gerir a própria existência” e preparar para os acontecimentos do futuro.

Em Artemidoro (2009), o universo prático e empírico da existência estende-se aos processos oníricos, permitindo predizer os acontecimentos futuros – o onirocrítico grego mantinha-se no campo experimental da conduta. Já em Paul Veyne, encontrar-se-á pontos de um percurso cronológico e religioso esclarecedores sobre o tão complexo tema enfrentado: a conversão de Constantino, episódio que abriu caminho para o advento do cristianismo. Cronologicamente, o texto inicia-se pela batalha de Ponte Mílvio, perto de Roma, onde Constantino elimina o seu rival. Esta vitória, que ele atribuiu à proteção do Deus cristão, é o ponto de partida da sua conversão ao cristianismo. Essa batalha foi, em si, apenas um epifenômeno político e militar que permitiu impor um indivíduo à frente do Império. Com efeito, é a partir de 312 que Constantino afirmou-se e cada vez mais como cristão.

Apesar de descreverem Constantino como um homem e militar frio e calculista, Veyne expõe uma outra compreensão acerca da sua conversão. Ele não procura desvendar os motivos do imperador, mas mostra como ele foi um crente sincero, habitado pela convicção de ser o receptor afortunado de uma graça providencial que lhe permitiu restaurar a unidade do Império. Com isso em mente, Veyne retoma o sonho que o imperador havia tido, em que previu a sua vitória. Segundo ele, o imperador não age pôr um fim calculista. Com ênfase na boa-fé de Constantino, o livro de Veyne presta uma grande contribuição a uma abordagem até então ignorada: o sonho. Para ele, Constantino foi um príncipe cristão de uma astúcia excepcional, que tinha em mente um projeto maior: construir uma sociedade cristã e, por conseguinte, um império político e religioso.

Assim, o político, o religioso e o individual estão, nas mais diversas multiplicidades, relacionadas com os sonhos. Nos diversos “modelos” vemos sua presença. O ápice, o mais desvelado desses exemplos sociais, é o caso do cenário ameríndio. Como por mim apresentado, o sonho nas terras baixas da América do Sul age de modo muito efetivo… À aurora do dia, após uma noite de contato divino, o sonho flui pelas ações humanas, leva a migrações, aos ritos funerários, às narrações coletivas e à própria formação da pessoa.

Todas essas tecnologias de sonhos apresentadas, embora distintamente, se jogam às questões sociais de sua época, mas no caso romano ou indígena, os sonhos se originam à noite e terminam por produzir ações durante o dia. Com o olhar para a atualidade e suas preocupações, cabe ver qual “modelo” escolheremos, qual cosmovisão construiremos e como ela impactará no âmbito individual e coletivo. As diversas cosmovisões vão sendo construídas, escolhidas, pedaço a pedaço, constantemente em sua composição, procedendo, cada uma à sua maneira, no fazer prático do sonhador. Cabe rever as relações que temos com os nossos sonhos, pois eles ganham diversos sentido por meio dos “modelos” interpretativos que nós escolhemos. O sonho, então, não se explica pelo que é sonhado, mas sim pela interpretação que escolhemos dar hoje ao sonhar.

O sonhado, então, pode ser explicado pelo “modelo” que foi escolhido em cada momento ou lugar da história e, dessa forma, impactar das mais diversas maneiras na própria realidade ali em questão. Contudo, somente terão escolhas possíveis se houver o que ser escolhido. Dessa maneira, cabe, primeiramente, a nós, abrimos maneiras possíveis de pensar, maneiras que poderão ser escolhidas no trato dos sonhos. Criar as multiplicidades para que cada “modelo” possa ser uma opção, para além de explicativa, mas sim efetiva no mundo. Aí pode-se ver uma linha transformativa nos sonhos; não os colocamos como algo que se finda ao abrir dos olhos, mas sim que, neste momento, começa a produzir efeitos na realidade. Amanhã, depois de despertar, você verá o seu sonho como um catalizador de movimento, ou um resíduo do seu passado? Escolha a ser feita?

Fonte: https://revistas.pucsp.br/index.php/paralaxe/article/view/49906


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