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Afirma-se que uma sólida crença nos bruxos não é doutrina católica: veja o capítulo 26, pergunta 5 da obra de Epíscopo. Quem ache que qualquer criatura pode ser mudada para melhor ou para pior, ou transformada em outra coisa ou outro ser, por qualquer um que não seja o Criador de todas as coisas, é pior que um pagão e um herege. De maneira que quando informam que deveras coisas são efetuadas por bruxos, sua afirmação não é católica, senão simplesmente herética. Mais ainda, não existe ato de bruxaria que possua efeito permanente entre nós. E esta é a prova disso: Se assim fosse, seria efetuada por obra dos demônios.
Mas assegurar que o diabo tem o poder de mudar os corpos humanos e lhes infligir dano permanente não parece estar de acordo com os ensinamentos da Igreja. Porque deste modo poderiam destruir o mundo inteiro, e levá-lo a uma horrível confusão. Mas ainda toda alteração que se produz no corpo humano – por exemplo, o estado de saúde ou de doença – pode se atribuir a causas naturais, como demonstrou Aristóteles em seu sétimo livro da Física. E a maior destas causas é a influência das estrelas. Mas os demônios não podem interferir no movimento das estrelas. Esta é a opinião de Dionísio em sua epístola, a São Policarpo. Porque isso só pode ser feito por Deus. Portanto é evidente que os demônios não podem em verdade efetuar nenhuma transformação permanente nos corpos dos humanos; isto é, nenhuma metamorfose real e desse modo devemos atribuir a aparição de qualquer dessas mudanças a alguma causa obscura e oculta.
E o poder de Deus é más forte que o do diabo, assim como as obras divinas são mais verdadeiras que as demoníacas. De onde, quando o mal é poderoso no mundo, tem de ser obra do diabo, em permanente conflito com a de Deus. Portanto, como é ilegal sustentar que as más artes do demônio podem em aparência superar a obra de Deus, do mesmo modo é ilegal achar que as mais nobres obras da criação, isto é, os homens e os animais, possam ser danados – prejudicadas ou estragadas – pelo poder do diabo. Mais ainda, que o que se encontra sob a influência de um objeto material não pode ter poder sobre os objetos corpóreos. Mas os demônios estão subordinados a certas influências das estrelas, porque os magos observam o curso de determinadas estrelas para invocar os demônios. Portanto, eles carecem do poder de provocar mudança alguma num objeto corpóreo, e daí que as bruxas possuem menos poder que os demônios. Porque estes não têm poder algum, salvo verdadeira arte sutil. Mas uma arte não pode produzir permanentemente uma forma verdadeira. E certo autor diz: os que escrevem sobre alquimia sabem que não existe esperança de nenhuma transmutação real. Portanto os demônios, por sua vez, mediante o uso do mais seleto de sua indústria, não podem produzir curas permanentes, nem permanentes doenças. Mas se tais estados existem, deve-se em verdade a outra causa, que pode ser desconhecida e que nada tem que ver com as obras de diabos ou bruxos. Mas segundo as Decretales (33), o caso é o inverso. “Se por bruxaria ou por qualquer arte mágica permitida pelo oculto mas justíssimo desígnio de Deus, e com a ajuda do poder do demônio, etc …” Isto se refere a qualquer ato de bruxaria, que possa impedir a finalidade do matrimônio, e para que este impedimento produza efeito podem coincidir três causas, a saber: a bruxaria, o demônio e a permissão de Deus. Mais ainda, o mais forte pode influir sobre o mais fraco. Mas o poder do demônio é mais forte que qualquer poder humano (Jó, XL). Não há na terra poder que possa se comparar ao seu, que foi criado de modo que não temesse a nada. Resposta: A aqui três erros heréticos que se deve enfrentar, e quando os tiver refutado se verá a verdade com singeleza. Porque certos autores que pretendem basear sua opinião nas palavras de São Tomás (IV, 24), quando trata dos impedimentos causados pelos encantamentos mágicos, tentaram afirmar que não existe a magia, e que ela só está na imaginação dos homens que atribuem efeitos naturais, cujas causas não são conhecidas, à bruxaria e aos feitiços. Há outros que reconhecem, por verdadeiro, que os bruxos existem, mas declaram que a influência da magia e os efeitos dos sortilégios são puramente imaginários e fantásticos. Um terceiro tipo de escritores sustenta que os efeitos que segundo dizem causam os feitiços mágicos, são por completo ilusórios e fantasiosos, ainda que bem pudesse ser que o diabo assista a alguns bruxos. Desta maneira, é possível expor e refutar os erros de cada uma destas pessoas. Porque, em primeiro lugar, muitos escritores ortodoxos, em especial São Tomás, demonstraram que suas opiniões são antes de tudo um ponto de vista herético; este autor sustenta que tais opiniões são em absoluto contrárias à autoridade dos santos, e que se baseiam numa total infidelidade. Porque a autoridade das Sagradas Escrituras diz que os demônios têm poder sobre os corpos e as mentes dos homens, só quando Deus lhes permite exercer esse poder, tal como se desprende com clareza de várias passagens das Escrituras.
Portanto, erram quando dizem que a bruxaria não existe, que é algo puramente imaginário, ainda que não acreditem que os diabos existam, salvo na imaginação de gente ignorante e vulgar, e os acidentes naturais que ocorrem ao homem os atribui por erro, a um suposto demônio. Pois a imaginação de alguns homens é tão vívida, que lhes faz crer que vêem figuras e aparições reais, que não são outra coisa que o reflexo de seus pensamentos, e então são tomados por aparições de espíritos malignos, ou por espectros de bruxas. Mas isto é contrário à verdadeira fé, que nos ensina que certos anjos caíram do céu e agora são demônios, e devemos reconhecer que por natureza são capazes de fazer coisas que nós não podemos. E quem trata de induzir os outros a realizar tais maravilhas de má índole, são chamados bruxos ou bruxas. E como a infidelidade em uma pessoa batizada se denomina tecnicamente heresia, essas pessoas são pura, e claramente hereges. No que se refere a quem sustenta os outros dois erros, isto é, quem não nega que existam demônios e que estes possuem um poder natural, mas que diferem entre si a respeito dos possíveis efeitos da magia e das possíveis obras dos bruxos: Uma opinião afirma que podem na verdade provocar determinados efeitos e que, no entanto tais efeitos não são reais, apenas fantásticos, enquanto outra opinião admite que é verdade que algum dano real cai sobre a pessoa ou pessoas atacadas, mas que quando um bruxo imagina que este dano é efeito de suas artes, se engana grosseiramente. Este erro parece basear-se em duas passagens dos Cânones nas quais se condenam umas mulheres por imaginarem falsamente que durante a noite cavalgavam com Diana ou Herodias.
Isto pode ser lido no Cânon. No entanto, já que tais coisas acontecem com freqüência por ilusão, quem supõe que todos os efeitos das bruxarias são simples ilusão e imaginação, se equivocam plenamente. Em segundo lugar, com respeito a um homem que crê ou afirma que uma criatura pode ser feita ou transformada para melhor ou para pior, ou convertida em outra coisa ou semelhança, por qualquer um que não seja Deus, Criador de todas as coisas, tal homem é um infiel e pior ainda que um pagão. Por isso e levando em conta as palavras “transformada para pior” dizem que se tal efeito é provocado por bruxaria, não pode ser real, não passando de pura fantasia. Diana ou Herodias: Esses nomes foram freqüentemente utilizados no Conselho Geral de Ancyra, e mais tarde considerados de uma data posterior, e foram incluídos no “De Ecclesiasticis Disciplinis” atribuído a Regino de Prum (906), e daí para os canonistas São Ivo de Chartres e Johannes Gratian. Na seção 364 do abade beneditino seu trabalho relaciona “…certas mulheres abandonadas que dançam ao redor de Satã, sendo seduzidas por ilusões de fantasmas e demônios, e acreditam e professam abertamente, que nas horas mortas da noite, cavalgam em algum tipo de besta com a deusa pagã Diana e inúmeras hordas de mulheres, e que nestas silenciosas horas, galopam por vastas áreas de seu país, obedecendo seu amante, enquanto que em outras noites, saem sozinhas a pagar-lhe homenagem…”
John de Salisbury, que morreu em 1180, em seu “Policraticus” I, XVII, fala da crença popular em uma bruxa-rainha chamada Herodias, que chamava os magos em reunião à noite. Em “De Sortilegis”, na seguinte passagem ocorre: “… nós inquirimos em seguida a respeito de determinados tipos ímpios que crêem e professam que durante à noite passeiam com Diana, a deusa pagã, ou então com Herodias, e um anfitrião de inúmeras mulheres, mediante certos animais, e que, em silêncio no morto da noite elas passeiam por imensas distâncias, obedecendo os comandos de seu amante…” (Nota do Tradutor em Língua Portuguesa, NT-Pt) Como esses erros conhecem a heresia e contradizem o sentido do Cânon, primeiro provaremos nossas afirmações por meio da lei divina, assim como pela lei eclesiástica e civil, mas antes de mais nada de maneira geral. Para começar, as expressões do Cânon devem ser tratadas em detalhes (ainda que o sentido do Cânon fique mais claro nas questões seguintes). Porque em muitas partes a lei divina ordena que não só se deve evitar os bruxos, mas que também devem ser executados, e em verdade não imporia esta pena extrema se os bruxos não fizessem reais e autênticos pactos com os demônios para provocar danos e males verdadeiros. Pois a pena de morte impõe-se só em casos de delitos graves e notórios, mas às vezes adota a forma de morte da alma, que pode ser causada pelo poder de uma ilusão fantástica ou ainda pela extensão da tentação. Esta é a opinião de São Tomás, quando considera se é mau utilizar a ajuda dos demônios (II,7). Pois no capítulo 18 do Deuteronômio ordena-se a destruição de todos os magos e encantadores. Também o Levítico diz, em seu capítulo 19: “Nos vos voltareis aos encantadores ou adivinhos; não os consulteis sujando-se com eles; eu colocarei meu rosto contra tal varão, e o apartarei de seu povo”.
Assim como no capítulo 20: “E o homem ou a mulher que evocarem espíritos de mortos ou se entregarem à adivinhação, terão de ser mortos; os apedrejarão com pedras; e o seu sangue será sobre eles”. Diz-se que são adivinhas as pessoas em quem os demônios fizeram coisas extraordinárias. Mais ainda, deve se recordar que por causa deste pecado enfermo Ocozías morreu (veja IV, Reis I, também Saul e I Paralipómenos 10). Consideremos também, as autorizadas opiniões dos Padres que comentaram as Escrituras e que trataram em detalhes sobre o poder dos demônios e as artes mágicas. Podem consultar-se os escritos de muitos doutores a respeito do Livro 2 das Sentenças, e se comprovará que todos concordam em dizer que existam bruxos e feiticeiros que pelo poder do diabo são capazes de produzir efeitos reais e extraordinários, e não são imaginários, e que Deus permite que tal coisa aconteça. Sem mencionar as muitas outras obras em que São Tomás considera em muitos detalhes as ações deste tipo. Como por exemplo, em sua Summa contra os Gentios, livro III, capítulos 1 e 2, pergunta 114, argumento 4. E no Segundo dos Segundos, perguntas 92 e 94. Também podemos consultar os comentaristas e exegetas que escreveram sobre os sábios e os magos do Faraó, Êxodo VII. Outro texto para consulta seria a opinião de Santo Agostinho em A cidade de Deus, Livro 18, cap. 17.
Veja também seu segundo livro, A Doutrina Cristã. Muitos outros doutores da Igreja compartilham a mesma opinião, e seria o pico da loucura que qualquer pessoa tentasse os contradizer, e não poderiam afirmar que estivessem livres da culpa da heresia. Porque qualquer um que erre gravemente na exposição das Sagradas Escrituras é considerado com toda a razão um herege. E quem pense de forma diferente no tocante a estes assuntos que concerne à fé que sustenta a Santa Igreja Romana, é um herege. Essa é a Fé. E negar a existência dos bruxos é contrariar o sentido evidente do Cânon, como demonstra a lei eclesiástica. Pois temos as opiniões dos comentaristas do Cânon, que começam dizendo: “Se qualquer um, por meio de artes mágicas ou bruxaria…” E também os autores que falam de homens impotentes e possuídos, e que por causa deste impedimento causado pela bruxaria se vêem impossibilitados de copular, sem o qual o contrato matrimonial fica nulo e nesses casos o matrimônio é impossível. Como dizem, e São Tomás mostra-se de acordo com eles, que se a bruxaria produz seu efeito no caso de um casal, antes que tenha existido o contato carnal, e é duradouro anula e destrói o contrato matrimonial; e é muito evidente que não pode se dizer que tal situação seja ilusória ou efeito da imaginação. A respeito destes pontos, veja o que tão exaustivamente escreveu o Beato Enrique de Segusio em sua Summa Super Titulis Decretalium (Estrasburgo, 1512), também chamada Summa Arrea ou Summa Archiepiscopi; assim mesmo, as obras de Godofredo de Fontaines e San Raimundo de Peñafort, que trataram deste assunto com muita clareza e detalhes, sem questionar se tal estado físico podia considerar-se imaginário ou irreal, sendo que afirmaram se tratar de casos verdadeiros e comprovados; e depois estabeleceram que devesse tratar como doença duradoura ou temporária quando se prolonga durante mais de três anos, e não duvidam que possa ser comprovada pelo poder da bruxaria, ainda que esse estado pudesse ser intermitente.
Mas este é um fato que está além de toda discussão e a tal impotência pode ser causada mediante o poder de um demônio, por meio de um pacto celebrado com ele, e inclusive mesmo pelo próprio diabo, sem contar com a assistência de bruxo algum, ainda que esta última hipótese seja rara no seio da igreja, já que o matrimônio é um excelente sacramento. Mas entre os pagãos acontece de verdade, e isso é devido a atuação dos maus espíritos como se tivessem domínio legítimo sobre eles, como relata Pedro de Paludes em seu quarto livro, a respeito de um jovem que havia se prometido em matrimônio a certo ídolo, porém acabou casando com uma donzela, com a qual foi incapaz de manter contato algum porque sempre interveio o diabo, apoderando-se dele em forma física. Para a igreja, sem dúvida, o demônio prefere atuar por intermédio de bruxos e provocar esses efeitos para seu proveito próprio, isto é, para a perdição das almas. E entre outras questões que teólogos e Cânonistas propõem com referência a estes pontos, há uma muito importante, que trata de como se pode curar essa impotência, e se é permitido cura-lá por meio de um contra feitiço, e o quê deve ser feito se o bruxo que realizou o encantamento estiver morto. Fato que trata Godofredo de Fontaine em sua Summa. Esta, é a razão pela qual estes Cânonistas elaboraram com tanto cuidado um catálogo que contém as diferentes penas, com diferenciação entre a pratica privada e a prática aberta da bruxaria, ou melhor, da adivinhação. Já que esta imunda superstição tem vários graus e espécies, de modo que todo aquele que se entrega de forma manifesta a ela, deve-se negar-lhe a Comunhão. Se a prática for de maneira oculta, o culpado tem de fazer penitência durante quarenta dias.
Em se tratando de um clérigo, este será suspenso e trancado num monastério. Se for um laico, deve ser excomungado; já que todas estas infames pessoas devem ser castigadas, junto com aquelas a quem recorrem, sem que se possa admitir desculpa alguma. A mesma pena impõe a lei civil. Em sua Summa, Livro 9 do Códice, diz no capítulo que trata dos feiticeiros, depois de destacar a Lei Cornélia, que fala de assassinos e criminosos, Portius Azo estabelece: “Há de se saber que todos aqueles a quem comumente se chamam feiticeiros, e também os “mestres” na arte da adivinhação, incorrem em delito de pena de morte”. Mais adiante volta a mencionar esta penalidade, na qual este é o teto exato: “É ilegal que qualquer homem pratique a adivinhação; se assim fizer, sua recompensa, será a morte pela espada do verdugo”. Também existem aqueles que com encantamentos mágicos tentam tirar a vida das pessoas inocentes, que convertem as paixões das mulheres em toda classe de luxurias; estes criminosos devem ser jogados aos animais selvagens. E a lei permite que qualquer testemunha seja admitida como prova contra eles. Isto especifica com clareza a parte do Cânon que trata sobre a defesa da Fé. E permite o mesmo procedimento numa acusação de heresia. Quando se apresenta tal acusação, qualquer testemunha pode prestar depoimento, como se tratasse de um caso de lesa majestade. Porque a bruxaria é uma grande traição contra a Majestade de Deus. E devem ser submetidos a tortura para faze-los confessar.
Qualquer pessoa, seja qual for sua classe ou profissão, pode ser torturada ante uma acusação dessa natureza, e quem for considerado culpado, ainda que confesse seu delito, será posto no potro*, e sofrerá todos os outros tormentos dispostos pela lei, a fim de que seja castigado na forma proporcional de suas ofensas. (*) Potro: Era um aparelho de tortura composto por uma prancha, sobre a qual era deitada a vítima. Esta prancha apresentava orifícios pelo quais se passavam cordas que arrochavam os antebraços, os braços, as coxas, as panturrilhas, em suma, as partes mais carnudas dos membros da vítima. No decorrer da tortura, essas cordas eram progressivamente apertadas, por meio de manivelas nas laterais do aparelho. O efeito era o de um torniquete. (NT-Pt) Nota do autor: Em idades douradas estes criminosos sofriam duplo castigo, e com freqüência eram jogados às feras para que estas os devorassem. Hoje são queimados na fogueira, e talvez isso se deva porque a maioria são mulheres. A lei civil também proíbe a conivência e participação em tais práticas, já que nem sequer permite que um adivinhador entre na casa de outra pessoa, e com freqüência ordena que todas suas posses sejam queimadas, assim como ninguém o proteja ou consulte; muitas vezes deportava-lhes a alguma ilha distante e deserta, e todos seus bens se vendiam em leilão público. Mais ainda, quem consultava os bruxos ou recorriam a eles eram castigados com o exílio e a confiscação de todas suas propriedades. Estas penas puseram-se em prática com o consenso de todas as nações e dirigentes, e contribuíram em grande parte à supressão da cultura de tais artes proibidas.
Deve-se observar que as leis muito louvam a quem trata de anular os encantamentos dos bruxos. E os que praticam grandes esforços para que a obra dos homens não acabe perdida pela força das tormentas e do granizo, são dignos de grande recompensa ao invés de castigo. Mais adiante será analisado como prevenir legalmente esse dano. Portanto. Como é possível que a negação ou a frívola contradição de qualquer destas proposições esteja isenta de apontar alguma heresia notável? Que cada homem julgue por si, a menos que sua ignorância o exclua disso. Mas em seguida explicaremos qual classe de ignorância poderá excluí-lo. Do que já foi dito podemos retirar a seguinte conclusão: é opinião muito verdadeira e muito católica que existam encantadores e bruxos que, com a ajuda do diabo e em virtude de um pacto com ele estabelecido, são capazes já que Deus permite, produzirem males e danos reais e verdadeiros, o qual não exclui que também possam causar ilusões fantásticas e visões por meio de alguma arte extraordinária e peculiar. Não obstante, o alcance desta investigação acerca da bruxaria, na qual difere muito de outras artes e, portanto considerá-las nada agrega ao nosso propósito, já que aqueles que a praticam podem, com grande certeza, serem denominados adivinhos e charlatães, ao invés de Feiticeiros.
Convêm destacar particularmente, que estes dois últimos erros se baseiam numa total incompreensão das palavras do Cânon (para não falar do primeiro erro, que como é evidente leva sua condenação em si mesmo, já que é por completo contrário aos ensinamentos das Sagradas Escrituras). Passemos, pois, a uma correta compreensão do Cânon. E antes de tudo falaremos do primeiro erro, que diz que o meio é pura ilusão, ainda que os dois extremos sejam reais. Aqui será preciso dizer que existem catorze espécies diferentes que põem fim a superstição, mas para não estender muito, não será necessário as detalhar, já que São Isidoro as expôs com clareza em sua Etimologia, Livro 8, e São Tomás em seu Segundo dos Segundos pergunta 92. Mais ainda, se fará menção explícita do tema mais adiante, quando falemos da gravidade desta heresia.
A categoria que se devem classificar as mulheres desta classe se denomina das Pitonisas, pessoas em ou por meio de quem o diabo fala ou realiza alguma obra assombrosa, e com freqüência esta é a primeira categoria. Mas aquela sob a qual se agrupam os bruxos é a dos Feiticeiros. Considerando que estas pessoas diferem muito entre si, seria incorreto não incluí-las nas espécies que envolvem tantas outras; portanto, como o Cânon menciona expressamente certas mulheres, porém não fala das bruxas com a mesma intensidade; se enganam aqueles que pensam que o Cânon fala só de viagens imaginárias e de translações corpóreas, e quem tentar reduzir todas as superstições a esta ilusão; é porque, assim como aquelas mulheres se transportam em sua imaginação, como as bruxas se transportam real e fisicamente. E quem desejar argumentar a partir do Cânon que os efeitos da bruxaria destinados a infligir qualquer enfermidade ou prejuízo são puramente imaginários, confunde por completo o significado deste Cânon, e erra grosseiramente. Além do mais, é preciso mostrar para aqueles que admitem os dois extremos; isto é, a obra do diabo e seu efeito como uma doença previsível, sendo reais e verdadeiros, e ao mesmo tempo negam que isto se realize por meio de um instrumento; isto é, negam que bruxa alguma possa ter participado em tal causa e efeito; a eles afirmo que erram gravemente, porque em filosofia o meio deve participar da natureza dos dois extremos. Mais ainda, é inútil argumentar que qualquer resultado de bruxaria possa ser fantasioso e irreal, porque a fantasia não se consegue sem a busca pelos poderes do demônio, e é preciso que se tenha estabelecido um contrato com ele, por meio do qual a bruxa, real e verdadeiramente, se obrigue a ser a serva do diabo e se consagre a ele por inteiro, e isso não se faz em sonhos, nem sob a influência de ilusão alguma, somente colaborando real e fisicamente com o demônio e consagrando-se a ele. Pois em verdade, este é o fim de toda bruxaria: Efetuar encantamentos por meio de olhares sedutores ou jogos de palavras, ou qualquer outro feitiço, tudo isso pertencendo ao diabo, como se verá na pergunta seguinte.
A verdade é que quem tiver o trabalho de ler as palavras do Cânon, encontrará quatro pontos, em especial, que lhe chamarão a atenção. E o primeiro ponto é este: É da absoluta incumbência de todas as criaturas e dos Sacerdotes, e de todos os responsáveis pelo cuidado das almas, ensinarem a seus rebanhos que existe um só e único verdadeiro Deus, e que ninguém mais deve ser venerado no céu ou na terra. O segundo ponto é que, ainda que estas mulheres imaginem cavalgar (como assim pensam e dizem) com Diana ou Herodias, na verdade cavalgam com o diabo, que chamam com alguns desses nomes pagãos e projetam um reflexo sedutor em seus olhares. E o terceiro ponto é este: o ato de cavalgar pode ser meramente ilusório, já que o diabo possui um extraordinário poder sobre as mentes de quem a ele se entrega, de maneira que as coisas que fazem em sua imaginação acham que as fazem real e verdadeiramente no corpo. E o quarto ponto é este: as bruxas assinaram um pacto que consiste em obedecer ao demônio em todas as coisas, onde afirmar que as palavras do Cânon devesse se estender até incluir e abarcar todos os atos de bruxarias é um absurdo, já que as bruxas fazem muito mais que estas mulheres, e em verdade são de uma espécie diferente.
E há um terceiro erro, equivocando as palavras do Cânon quando diz que todas as artes mágicas são ilusões, que pode se corrigido com as palavras do próprio Cânon. Porque na medida em que diz, que quem acha que uma criatura qualquer pode ser feita ou transformada para melhor a para pior, ou metamorfoseada em alguma outra espécie ou semelhança, como não tenha sido feita pelo Criador de todas as coisas, etc. É pior que um infiel. Se estas três proposições forem entendidas desta maneira, como poderiam parecer naturais, sendo elas totalmente contrárias do sentido das Sagradas Escrituras e dos comentários dos doutores da igreja. Pois o seguinte Cânon diz com clareza que as bruxas podem fazer criaturas, ainda que forçosamente elas serão imperfeitas, e é provável que resultem deformadas de alguma maneira. E claramente resulta que o sentido do Cânon coincide com o que diz Santo Agostinho a respeito dos magos na Corte do Faraó, que converteram suas varas em serpentes, como escreve o santo doutor no cap. 7 do Êxodo 11, “…e o Faraó chamou os sábios e encantadores…” Também podemos referir-nos aos comentários de Strabo, que dizem que os diabos correm de um lado a outro da terra, quando as bruxas empregam seus encantamentos em diferentes obras, e estes diabos podem reunir diversos germes ou sementes, e deles fazer que cresçam várias espécies. Também podemos referir-nos ao Beato Alberto Magno, De animalibus. E assim mesmo a São Tomás, Primeira Parte, pergunta 114, artigo 4. Para sermos concisos, não o citaremos aqui em detalhe, mas fica demonstrado que é possível criar certas criaturas dessa maneira.
Com referência ao segundo ponto, onde uma criatura pode ser modificada para melhor ou para pior, sempre deve se entender que isso só pode ser feito com a permissão, e em verdade pelo poder de Deus, e que só se faz para corrigir ou castigar. Mas é muito freqüente que Deus permita aos diabos atuarem como Seus ministros e Seus servidores, ainda que sempre seja Deus unicamente quem pode enfermar e só Ele pode curar, pois “eu faço morrer e eu faço viver” (Deuteronômio, XXXII, 39.) E em conseqüência os anjos maus podem cumprir e cumprem com a vontade de Deus. Disso também oferece depoimento Santo Agostinho quando diz: “Em verdade existem encantamentos mágicos e feitiços malignos, que não só afetam os homens com doenças, quando não os matam”. Também devemos esforçar-nos para entender tão claramente o que ocorre na realidade hoje em dia. E pelo poder do diabo, dos magos e das bruxas se converteram em lobos e outros animais selvagens. Mas o Cânon fala de uma mudança corporal e duradoura, e não fala das coisas extraordinárias que podem ser feitas pelo encantamento, é o que diz Santo Agostinho no livro 18, cap. 17, na obra A Cidade de Deus, quando se refere às muitas histórias estranhas, como da famosa bruxa Circe, e dos companheiros de Diomedes, e do Padre de Prestâncio. Mas isso será analisado na Segunda Parte desta obra.
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