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O mal é reconhecido por todos nós como aquilo que prejudica, aquilo que fere; o que se opõe ao bem, à virtude, à probidade e que nos afasta de Deus; aquilo que, concebido como externo a nós e fora de nosso controle, nos leva ao medo irracional e a superstições perigosas que, na maioria das vezes, põem em risco não só a nossa sanidade mental como a integridade física daqueles que nos cercam. Prova maior dos malefícios gerados pela insânia da superstição é a vergonhosa caça às bruxas efetuada na idade média e que levou à fogueira milhares de inocentes que morreram para aliviar o pânico de uma população acuada pela criminosa individualização externa de um dos aspectos mais profundos da alma humana: O Diabo.
Satã, o grande Príncipe das Trevas, aquele “através do qual o mal se faz presente no mundo” é, nos nossos tempos, a grande justificativa, projetada no meio, que alivia toda a culpa de um processo interno não condizente com os ditames da moral vigente. Pensamentos de avareza, desejos de vingança, lascívia e uma série de outros ditos “malefícios”são rejeitados pela nossa autocrítica e mecanicamente atribuídos a um ser externo que introduz estes aspectos na nossa alma “pura e santa”, aliviando a pressão gerada pelo atrito entre a imagem que criamos de nós mesmos e aquilo que realmente somos.
Todo este atrito surge do pensamento dualista que gerencia as nossas vidas desde há séculos. Dividimos o mundo, simplisticamente, entre as forças do mal e as forças do bem, adotamos uma auto-imagem de “bonzinhos” como nosso ideal e, rejeitando nossa contraparte, aquela obscura e incompreensível, fingimos que ela não existia. Produzimos a desarmonia e acreditamos, ingenuamente, que não sofreríamos as conseqüências deste ato ilícito.
Hoje somos os filhos do caos, confusos e perplexos diante de nosso próprio Eu dividido e dilacerado pelo nosso consciente racional, mas ainda assim inalcançável à nossa mente linear e mecanicista, tentando justificar nossos atos “maus” através de uma figura lendária cuja única “culpa” é ser portador de cornos, ter seu corpo coberto por pêlos e ter cascos em vez de pés. Esta imagem o afasta daquilo que concebemos como harmônico e belo, tornando-o portanto a figura ideal para a projeção de toda a nossa desordem interior.
O significado de Satã tem, no entanto, uma abrangência quiçá equivalente aquela contida entre o céu e a terra, ou seja, muito maior do que “possa supor a nossa vã filosofia” e é na tentativa de resgatar este significado que este artigo inicia agora uma viagem através do túnel do tempo, buscando junto aos antigos a verdadeira imagem deste ser lendário, misto de terror e fascínio que povoa os recônditos mais obscuros de nossa própria alma.
Não seria demais aqui fazer um alerta em favor da suscetibilidade humana que ainda persiste no vulgo: ainda hoje há aqueles que podem vir a enxergar as palavras que seguem como arautas de uma heresia qualquer. Já aprendemos a não tentar convencer o vulgo. Porém convenhamos, diante de tantos absurdos e não sendo eu intelectualmente deficiente, apenas um caminho me resta, o do herege esclarecido.
A Origem de Satã
A humanidade, desde os seus primórdios, procurou saciar as suas angústias em relação a uma existência incerta através da criação de deuses que, detentores de todo o poder, pudessem protegê-la no presente e ao mesmo tempo dar-lhe esperanças em relação ao futuro. A elaboração destes seres divinos e poderosos, no entanto, trazia consigo uma outra problemática relacionada à presença do mal no mundo. Como justificar que os deuses protetores houvessem permitido que o mal penetrasse no reino sob seus domínios e ameaçasse seus devotos?
No mundo antigo esta justificativa se dava através de um conceito amplo do divino que englobava aspectos de luz e de sombras. Os deuses dos gregos, assim como os do Egito e os da Mesopotâmia, eram manifestações ambivalentes do Deus único. O mal e o bem procediam de um mesmo deus que, tal qual a imagem do andrógino, continha a união harmônica dos opostos. Os deuses, procedentes deste “Grande Pai”, possuíam características boas e más, podendo tanto gerar e proteger quanto destruir. Estes filhos divinos do Deus único mostravam sinais do mundo celestial e do mundo subterrâneo, sendo este último associado ao mal.
Na antiga Grécia o rei dos deuses era Zeus Pater, o Júpiter de Roma. Como “pai celeste”, Zeus podia tanto provocar as tempestades destruidoras quanto as chuvas fertilizadoras. A esposa deste deus, Hera, rainha dos deuses, possuía também esta mesma dualidade. Deusa ctônica, era identificada com a divindade Gaia, deusa da fertilidade e da natalidade. Somada à ambivalência ética este casal divino possuía também a ambivalência sexual, sendo Hera considerada o lado feminino de Zeus e vice-versa. Os filhos deste casal divino possuíam esta mesma dualidade ética e sexual, exemplos claros deste fato são Atena, Poseidon, Hermes e seu filho Pã que nos forneceu os dados arquitetônicos para a construção da imagem de Satã, alimentada pelo mundo católico cristão.
No mundo antigo a abrangência ética dos deuses não trazia a necessidade da personificação do mal, no entanto, com o “progresso”do pensamento religioso e a chegada do cristianismo esta necessidade tornou-se um mal necessário para a sobrevivência das novas religiões.
O pensamento cristão trouxe o conceito do Deus infinitamente bondoso que estava apartado de todo o mal, sendo assim, o único meio para justificar a existência do maléfico, entre os seus devotos, era através da criação de um outro ser que, tendo sido criado por este Deus único, usou mal o seu livre arbítrio, afastando-se dos desígnios divinos. Surge a explicação mitológica cristã mais conhecida de como o princípio do mal teria entrado em nosso mundo.
O livro de Enoch é um texto apócrifo escrito por volta do ano 200 a.C. que relata a história da queda dos anjos, narrando a entrada do Príncipe das Trevas no mundo dos homens. A história da queda dos anjos não fez parte do cânon cristão, no entanto, tornou-se a pedra fundamental de onde surgiram os ensinamentos posteriores sobre Satã.
Enoch relata que através de uma visão foi-lhe mostrado como um grupo de anjos, encorajados por seu líder Satanael, teria descido das regiões celestiais para a Terra. Em nosso mundo, eles teriam se apaixonado e copulado com as filhas dos homens, bem como, ensinado muitas artes e ciências, trazendo também o vício. Seus descendentes, frutos de seus interlúdios amorosos, ensinaram a iniqüidade sobre a Terra até o dia em que Deus decidiu provocar o dilúvio para punir os pecadores, condenando os anjos a viver nas sombras até o dia do Juízo Final. Aos poucos, os nomes da legião de anjos rebeldes foram sendo combinados para representar um único ser espiritual maligno, essência de todo o mal, Satã, cujo significado em hebraico é o adversário.
Aos poucos, o mito de Satã ganha expressão na imaginação do povo e por volta do século IX o diabo ocupa posição central na crença dos cristãos ocidentais. Os cristãos orientais davam pouco valor ao maligno, mantendo a fé de que todas as coisas, independente de parecerem boas ou más, vinham das mãos de Deus. Esta postura de fé acabou por custar-lhes a vida.
Na Europa medieval o poder de Satã era considerado imenso. Ele era Lúcifer, o grande anjo caído que ainda pretendia derrotar os planos de Deus e que sobre a terra produzia atos de maldade contra a humanidade. Aquilo que outrora havia sido apenas uma lenda agora toma ares de realidade aos olhos da população que se acreditava totalmente à mercê das forças do mal.
Alguns padres da Igreja consideravam o povo cristão como um exército de luz em eterno combate com o exército das trevas, pertencendo a este último todos aqueles que não professavam a fé cristã. Esta idéia foi a mola propulsora que provocou e justificou a violência contra os hereges, fossem eles judeus ou pessoas acusadas de bruxaria. O mundo passou a ser um campo de batalha entre Deus e Satã, antagonismos míticos que enlouqueciam a mente dos fiéis.
Na França esta onda de loucura teve como objeto de feroz perseguição os cátaros, povo considerado herege por acreditar em dois poderes eternos o Deus da bondade e o Criador do mal, criador do mundo material. Os cátaros acreditavam que o resultado da guerra no paraíso havia sido o aprisionamento dos espíritos celestiais em corpos terrenos, para serem transformados em seres humanos. O único objetivo do ser humano seria, portanto, o retorno ao lar celestial. Infelizmente, pagaram caro pela sua “heresia” e foram exterminados pelo “exército do Senhor”. Tudo em nome de Deus!
O ato pecaminoso de trazer à realidade um mito tem conseqüências desastrosas e, até mesmo nos nossos dias, podemos perceber os reflexos sociais deste pecado primordial. Reflexo este, projetado no ressurgimento de seitas “cristãs” que tomam para si o direito de salvar as almas das garras de Satã, afirmando textualmente a sua existência, tal qual na idade média, se considerando coadjuvantes da eterna luta entre o Mal e o Bem. Esta posição dogmática preocupa a qualquer ser consciente de seus direitos, pois parece querer rever o terror religioso ditatorial de eras passadas e deve ser combatido, a fim de que aquela loucura de fé não ressurja jamais!
A Face de Satã
Os textos do Velho e do Novo Testamento nunca deram a Satã uma forma física. A idéia geral era a de que o diabo podia assumir a forma que desejasse, desde um lindo anjo, passando por uma mulher voluptuosa e uma serpente tentadora ou até mesmo um dragão horrendo das profundezas. No entanto, nenhuma iconografia ou retrato do Diabo, seja em pintura ou gravura, foi encontrada com data anterior ao século VI, e não se descobriu muita coisa a respeito antes do século IX, quando as representações dele crescem rapidamente. Um ponto focal do mal era bem melhor compreendido se ele fosse personificado. Para que esta personificação fosse possível era necessário trazer o mito à realidade, dar-lhe forma, uma aparência através da qual pudesse ser identificado. Nada mais conveniente a uma religião nova do que utilizar as formas de divindades religiosas antigas, a fim de representar o mal e apagar a influência destas mesmas divindades no meio social humano.
O cristianismo emergia num mundo pagão sexualmente vigoroso e, portanto, completamente ofensivo aos ditames cristãos nos quais o sexo, esta maravilha criada por Deus, era considerado pecado capital. Assim, onde procurar os elementos para a formação da imagem do mal, senão nas divindades pagãs de fertilidade que representavam a verdadeira essência da tentação? E foi assim que o alegre Pã se tornou vítima dos algozes cristãos, passando de divindade celestial, filho de Hermes, descendente direto de Zeus, a habitante dos reinos subterrâneos que buscava sempre arrebatar as pobres almas indefesas as quais, provavelmente, jamais haviam tocado flauta ou provado as delícias do maravilhoso entorpecimento provocado pelo vinho. A razão pela qual fazia esta diabrura estava, segundo a cristandade, no ódio incontido contra Deus. Convenhamos que este ódio devia ser uma coisa descomunal, pois cristãos amedrontados e reprimidos deviam ser companhias muito entediantes para este deus que festeja eternamente a alegria dos prazeres da vida!
Na mitologia grega, Pã, o filho de Hermes, tinha nascido com o corpo coberto de pêlos e possuía chifres, rabo e cascos de bode, além de uma pequena barbicha. Esta figura de Pã é exatamente o que até hoje se imagina como Satã, o Príncipe das Trevas. Este ser era um deus rústico que habitava os bosques e os campos sagrados, tendo como companhia pequenos diabinhos, seus filhos e filhas que pregavam peças nos seres humanos. Como um deus da natureza, era dotado de poderes de inspiração e profecia. Representava o desejo sexual com todo a sua força criadora e destrutiva, sendo vinculado, pelos olhos cristãos, com tudo o que havia de mau. Para piorar a sua situação na religião emergente, era considerado um dos companheiros de Dionísio, deus da fertilidade representado pela vinha, personificação do ciclo natural de morte e vida renovada, mortificação e êxtase. O bode também era sagrado nos ritos de Dionísio, sendo seus chifres sinal de fertilidade e poder. O formato de bode dado à figura de Pã era, portanto, duplamente diabólico.
Para o mundo cristão o deus rústico representava os excessos e a depravação, os vícios do mundo material, constituindo a imagem completa do paganismo, a figura ideal para ser associada ao mal. O paganismo, religião do demônio, tinha que ser destruída pelo exército de seguidores de Jesus. No momento da crucificação do Cristo, o deus Pã foi considerado como morto, embora o Diabo ainda se disfarçasse em sua figura e tivesse que ser erradicado da face da Terra.
Era sabido que Satã havia sido um anjo e como tal era portador de asas, mas estas haviam perdido as características de beleza e agora eram negras e desprovidas de plumagem, assemelhando-se às asas negras do morcego, criatura noctívaga e sinistra que povoava os pesadelos dos fiéis.
A delineação cristã tradicional apresenta o Diabo alternando nas cores vermelho ou preto. A cor vermelha caracterizava os adeptos de Seth, porém não seria errado supor que a cor vermelha fosse oriunda do fogo destruidor dos mundos infernais. A cor preta também representava Seth na forma de um suíno negro, assim como Dionísio era também, ocasionalmente negro, mas o preto de Satã pode vir da sua associação com as trevas, que simbolizam a morte e os terrores da noite.
O mundo subterrâneo associado a Satã representava nos povos antigos tanto a morte, quanto a fertilidade, tal qual a semente parece morrer ao ser tragada pela terra para, no tempo certo, renascer em forma de folhas e frutos.
O fogo do inferno é a representação clara do desejo sexual que potencializa a alma muito além das perspectivas impostas pela vã racionalidade humana. No entanto, como esta hipótese era entendida pelo cristão como uma submissão da alma aos instintos animais, ou ainda uma suposta depreciação dos anseios espirituais perante aqueles materiais, a possibilidade da alma transcender os limites da razão através do desejo sexual era vista como sendo um irretorquível sinal da perdição da própria alma, ou o inequívoco sintoma da danação derradeira do espírito.
Essa inversão de valores foi bem típica de todo o processo de catequese do ocidente, onde o sagrado tomou ares de sacrílego, quando os processos naturais da criação e da emancipação humana foram confundidos com a própria silhueta do “mal”. Para ilustrar a forma com que os agentes desta, esta sim, perversão atuavam basta nos referirmos ao símbolo da virgem sexualmente imaculada que, numa absurda e singular forma de partenogênese humana, pariu uma criança redentora.
Não foi, portanto, meramente obra do acaso que a imagem de Maria Imaculada tornou-se o principal baluarte contra toda e qualquer tentação infernal relacionada à sexualidade humana, trazida à tona por Satã.
Satã ao redor do mundo
Nas diversas culturas que povoam o nosso planeta encontramos formulações a respeito do “Príncipe das Trevas.” Esta sincronicidade mitológica entre culturas que jamais vieram a ter contato entre si talvez se deva, como gostaria de afirmar Jung, ao inconsciente coletivo; mas, por outro lado, talvez tenha como causa algum tipo de difusão cultural que ainda não se apresente ao nosso conhecimento.
O fato é que todas as culturas primevas que aceitaram o princípio divino reconheceram também a sua ambivalência, considerando o bem e o mal como fazendo parte de sua constituição. Esta ambivalência talvez tenha surgido, a princípio, da observação da própria natureza que tanto favorecia o homem, permitindo-lhe a sua subsistência, quanto o prejudicava, trazendo-lhe a destruição e a morte através das catástrofes naturais para ser, mais tarde, acrescida à necessidade de se explicar o advento do mal num mundo criado por um ser onipotente: Deus; talvez tenha ainda surgido da observação da própria alma do homem que parece sempre imersa no eterno dilema entre os opostos. As hipóteses aventadas como causa do surgimento da ambivalência divina são várias, mas o ponto básico para os antigos é único: Deus possui duas faces.
Deus, no mundo antigo, era a intercessão dos opostos; um ser tão poderoso que, contendo em si as forças antagônicas do universo, ainda assim era símbolo de beleza e harmonia superiores. Deus era aquele que continha em si tanto o princípio da criação, quanto o da destruição, sendo portanto imortal e dono de poder infinito.
No monoteísmo o Ser Supremo era visto como a reunião de duas tendências opostas em um só. No politeísmo estas mesmas tendências eram expressas em termo de muitos deuses que, sendo muitos, representavam apenas um grande deus: a mãe natureza.
O postulado expresso pela divindade ambígua é o de que todas as coisas, boas ou más, vêm de Deus. Na medida em que as pessoas passam a necessitar de um Deus bom e protetor passam a não atribuir-lhe o mal e criam a oposição de forças dentro da própria divindade, separando-a em dois eternos inimigos. Perde-se a unidade e esta perda é expressa nos eternos contos mitológicos da guerra no céu.
Com freqüência, um grupo de deuses, depostos por uma nova geração de divindades, é considerada como detentora do mal. No início da evolução religiosa indo-iraniana haviam dois grupos de deuses, os asuras (Índia) ou ahuras (Irã) e os devas. No Irã, os ahuras derrotaram os devas, tornando-se, o seu chefe, o Deus Superior. Na Índia, os devas derrotaram os asuras. Embora o resultado tenha sido diferente em ambos os povos, num sentido mais profundo o processo foi o mesmo. Um grupo de divindades foi vencido pelo outro e relegado à condição de espíritos maus.
Na tradição judaica, o livro de Enoch, onde se relata a queda dos anjos que rejeitam o paraíso e as ordens de Deus, é também o relato de uma guerra no céu. A rebelião é levada a cabo por vários líderes, dentre eles o príncipe Satanael que acaba por se transformar na personificação da essência de todo o mal.
A palavra Diabo vem de diabolos, termo grego que significa o acusador ou agressor e que traduzida para o vocábulo hebraico nos revela Satã, que significa: o adversário.
Assim como todos os demônios, Satã, nas diversas culturas sobre a face da Terra, era reconhecido como deus. Os primeiros egípcios chamavam Satã de “A Grande Serpente Satã”, Filho da Terra, considerado imortal porque era regenerado todos os dias no útero da Deusa. Satã parece ter sido um aspecto oculto do sol, Horus-Ra, correspondendo à serpente Phyton, o aspecto oculto de Apolo. Ele foi o consorte fálico da deusa Sati, ou Setet, que corresponde ao aspecto virginal de Kali, e que dominou o Alto Egito que era conhecido como a Terra de Sati. O deus era também conhecido como Seth, o adversário de Osíris e que mais tarde é vencido por Horus. A serpente era também conhecida como a fonte da vida e vivia em uma yoni no templo de Isis, podendo ter uma função oracular, do mesmo modo que Python.
Satã era considerado freqüentemente como o alter-ego do deus Sol, o Sol Negro, espírito da noite e da morte. Ele era o deus que reinava sobre a noite. O molde é o mesmo em Osiris-Set, Apollo-Python, Anu-Aciel, Baal-Yamm, etc. O deus da noite era o adversário do deus do dia não porque ele fosse mau, mas sim porque ele era a fase adormecida deste mesmo deus.
Satã reaparece no folclore russo como a grande serpente do submundo Koshchei, a imortal. Ela era aquela a quem o Sol tinha que matar, do mesmo modo que o homem deseja matar o fantasma da morte com o qual empreende luta eterna.
Para os Hebreus Satã era um adversário no senso estrito da palavra, aquele que testava a fé dos homens. Originalmente Satã era um dos bene ha-elohim , filhos de Deus, mas posteriormente os tradutores bíblicos singularizaram o plural para ocultar o fato de que os primeiros Judeus adoravam múltiplos deuses.
Este filho de Deus foi identificado com Lúcifer pelas palavras de Jesus que afirma ter visto Satã descer à terra como um relâmpago.
Esta mesma associação é vivida pelos Persas no seu mito sobre Ahriman, a serpente-relâmpago que é expulsa dos céus pelo deus da luz. Os Persas acreditavam que esta serpente era o irmão gêmeo de Deus e esta idéia invadiu a tradição gnóstica e os livros de magia medieval que consideravam a palavra Satã como sendo um dos nomes místicos de Deus, assim como Messias, Adonai, Emmanuel, etc.
Os islâmicos chamam a Satã de Shaytan, aquele que governa a raça de djinn, os “gênios”, que eram espíritos muito mais antigos do que o próprio Allah. Shaytan se rebelou contra Deus, segundo a lenda islâmica, quando Deus criou o homem e exigiu de seus anjos que estes adorassem ao homem, sendo expulso de seu reino.
Poderia aqui continuar minha narrativa enumerando, quase que interminavelmente, várias outras culturas que tiveram Satã como uma das suas mais importantes divindades, mas julgo que isto seria por demais cansativo para o leitor, embora fosse fonte de grandes descobertas a respeito deste ser que povoa nossas noites de sono. Importante, no entanto, é ressaltar que Satã, longe da imagem infantil que dele possuímos, tem uma grandiosidade peculiar que fez com que ele, ao contrário de outras divindades, sobrevive-se a todos estes séculos culturais, sendo reconhecido, venerado ou odiado, até mesmo em nosso século XX, a Era da Tecnologia e da Informação.
Satã, um “estímulo” ao cumprimento do dogma moral cristão
O cristianismo é uma religião voltada para o além túmulo, seus dogmas falam a respeito de condutas morais que devem ser seguidas para se alcançar o reino de Deus, cujo filho, Jesus, já afirmava que seus domínios não eram deste mundo.
Nos primeiros anos do surgimento da doutrina cristã acreditava-se que Deus havia criado dois reinos distintos, um pertencente ao Cristo e outro ao Diabo. O mundo material, tal qual o conhecemos, pertencia a Satã. Santo Inácio chamava o Diabo de “soberano deste mundo” e qualquer apego à matéria era considerado pecaminoso, um verdadeiro empecilho para a salvação eterna. O domínio de Satã não abrangia apenas os bens terrenos , mas se estendia principalmente aos seres humanos, cujas almas habitavam os corpos feitos do barro, substância da natureza do mal que expunha os devotos à tentação do material.
A crença literal nos dois reinos distintos criados por Deus levou à convicção de que haviam dois povos antagonistas em eterna luta no universo, os escravos do Demônio e os guerreiros da luz. Estes dois povos coexistiam no contingente terrestre, sendo impossível distinguir a qual povo pertencia cada pessoa, pois o mal podia se apresentar sob o disfarce do bem. Este dom diabólico que o adversário de Deus tinha para se mascarar era, exaustivamente, exemplificado através da lenda de Adão e Eva.
Neste relato mitológico a serpente prega o logro à mulher fazendo-a pensar que a mente daquele que fôra criado podia alcançar toda a onisciência do Criador.
Santo Agostinho foi um dos maiores apologistas desta hipótese dualista. Em a Cidade de Deus descreve o Cosmos dividido em duas cidades, a terreal e a divina. Na primeira habitavam os demônios e os seres humanos seduzidos por seus vícios; enquanto que na segunda moram os anjos bons e os ímpios. Relata ainda que o mundo em que vivemos é como que uma intercessão entre essas duas cidades, não sendo da ordem do humano distinguir quem pertence a cada uma delas. Afirma que não podemos sequer ter certeza sobre nós mesmos, visto que, estamos sujeitos a constantes mudanças.
O cristianismo era uma religião de ação, ou seja, uma religião de ditames comportamentais em que se dizia claramente o que se devia fazer ou não. Para garantir a obediência do rebanho era necessário criar algo ameaçador que aterrorizasse as ovelhas do Senhor em caso de não cumprimento da Lei.
Este algo ameaçador era Satã, a grande arma adotada pela Igreja para manter o rebanho na direção “correta” ou, pelo menos, naquilo que se considerava ser correto. A impossibilidade, exposta aos fiéis através de ensinamentos como os de Santo Agostinho, de obter a consciência sobre a sua própria natureza, levava o ser humano à constante dúvida sobre sua própria essência, mantendo-o sob o constante terror de poder sucumbir repentinamente aos ditames de Satanás. Sucumbir a Satã equivalia a ser condenado, por toda a eternidade, a viver as torturas do fogo do inferno, tão bem exemplificadas nas pinturas medievais. Nunca, em toda a história da humanidade, tão poucos escravizaram tantos!
Satã, foi o grande “estímulo” fornecido à humanidade pelos líderes cristãos em defesa da moral e dos bons costumes. E, infelizmente, até mesmo hoje, um símbolo nascido do anseio humano pela liberdade, continua sendo usado como elemento repressor da nossa natureza divina, presente de Deus.
Os escravos servirão!
A Tradição católica sobre Satã
Nas escrituras não se encontra definido se o Diabo deveria ser encarado como um espírito independente de Deus ou se como uma expressão simbólica dos baixos instintos que levam o pecado. No entanto, a interpretação realizada pelos padres da Igreja, no decorrer do desenvolvimento dogmático cristão, levou à concretização definitiva de Satã como um ser ontológico.
A Igreja desenvolveu uma doutrina sobre Satanás e os demônios que findou sendo ampliada pelo povo e endossada pela teologia, sendo propagada pela pregação e catequese.
Segundo este conjunto de princípios, Satã e seus súditos foram criados por Deus como espíritos livres, dotados de inteligência, pois eram desprovidos de corpo material. Os anjos caídos, assim como os homens, foram colocados diante da “opção” de se aceitarem como criaturas de Deus, tendo como bem supremo de sua existência a devoção do amor a Ele ou, recusarem-se a essa condição, negando o amor divino.
Alguns anjos disseram não à primeira hipótese e como castigo foram banidos para o inferno e apartados definitivamente de Deus. Esta é uma amostragem clara de que a palavra opção no cristianismo tem significado limitado, sendo induzida por ameaças sutis a respeito de torturas infernais. O inferno, neste tempo de início doutrinário, não era um lugar propriamente dito, e sim, uma condição de tormento do espírito que experienciaria para toda a eternidade o ódio e o desespero.
Satã e seus aliados, habitantes das profundezas infernais, eram acusados de tentarem a torto e a direito o indefeso ser humano, o qual, quando embebido em natureza maligna, acabava por se envolver nas malhas do Demônio, afastando-se de Deus. Eram também acusados de serem detentores do conhecimento oculto, podendo praticar atos ditos milagrosos que iludiam o pobre vulgo. As curas milagrosas eram consideradas conseqüência direta do exorcismo da alma adoentada, que fazia com que o demônio abandonasse aquele corpo. Na casa do Senhor não existe Satanás…
Desde o Vaticano II não existe mais um consenso comum na doutrina que trata de Satã e seus comparsas. Alguns teólogos insistem em adotar a interpretação medieval, outros recusam-se a acreditar na figura satânica, enquanto outros procuram dar-lhe uma “nova” interpretação, acentuando o seu aspecto interno.
Procuraremos falar dos primeiros, conhecidos como tradicionalistas, por considerá-los verdadeiros devotos de Satã, visto que, demonstram uma crença fervorosa na sua existência, recusando a despir-se de uma mentalidade pertencente à chamada Era das Trevas. Desejam ardentemente manter o ensinamento da Igreja intacto para todo o sempre, considerando-o um dogma de fé e, sendo assim, perpetuam eternamente a existência concreta daquele a quem tanto odeiam, ou quiçá amam, pois amor e ódio são duas faces de uma mesma moeda.
Estes seres, adoecidos pelo medo, advertem que num mundo em que não se acredita mais de forma convicta na figura ontológica daquele ser demoníaco é necessário ressaltar ainda mais a sua existência, com o objetivo de proteger o reino de Deus dos assaltos imprevistos de Satanás.
Estes pensadores extremados da Igreja, estes sim verdadeiramente demoníacos, defendem a idéia de que os mesmos atos de bruxaria que existiam no início da era moderna continuam acontecendo nos nossos dias. Reconhecem que houveram muitos erros judiciais na inquisição, mas que estes erros eram culpa do demônio que induziam os inquisidores ao erro. Mais uma vez, vemos aqui perfeitamente encarnada aquela figura de barba e chifres, já que nesse caso o Demônio faz as vias do bode expiatório.
Em um periódico católico austríaco, o pontífice máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, papa João Paulo II, expõe seus ensinamentos a respeito de Satã datados de 1986: “Em toda a parte do mundo, os adeptos do demônio pervertem hoje o pensamento humano. Não há perversidade que não lhes venha à memória. O que leva as pessoas à magia, à cartomancia, bruxaria e culto a Satanás ? O Diabo é uma realidade.” Segundo o “Divino Representante de Deus na Terra”, qualquer pessoa que se aventure no reino conhecido como ocultista está sob a égide do Príncipe da Penumbra.
Guiados por esta mentalidade insana, milhares de pessoas hostilizam hoje a qualquer indivíduo que seja adepto das ciências sagradas, considerando-os como pertencentes à tropa de elite do Anjo Trevoso.
O preconceito não é prática de eras remotas, suas chamas ardem intensamente sob o manto da hipocrisia humana e, tal qual a fogueira das antigas inquisições, está presente na língua ferina do “povo de Deus” reunido nos movimentos cristãos e neo-cristãos. Estes movimentos, dentre eles as diversas seitas evangélicas e o movimento carismático católico, são como o revival de terrores passados. Estimulam o fanatismo e, ensandecidamente, resgatam a individualização exterior de uma característica obscura de nossa própria alma, Satã. Estaríamos nós diante de uma volta ao passado?
As Amantes de Satã
“No princípio era a Mãe, o Verbo veio depois” (Beyond Power – Marilyn French).
A primeira etapa na evolução sócio-cultural da humanidade nos fala de uma sociedade matriarcal. A fé representativa deste modelo social repousa na crença de que o mundo havia sido criado por uma divindade feminina, a Grande Deusa, conhecida por vários nomes, desde Géia, a Mãe Terra, na Grécia, até Nanã Buruquê que dá a luz todos os orixás, na África.
O culto à Grande Mãe exerceu grande fascínio através dos tempos e até mesmo na nossa era ele se mostra objeto de desejo. Este grande fascínio se deve ao fato de que a Deusa mãe é altamente permissiva, amorosa e não coercitiva. O homem, vivendo de caça e coletas, se mantinha em harmonia com a natureza, assimilando todos os prazeres de um Jardim das Delícias.
A mulher, representação da deusa na Terra, era considerada sagrada, ocupando lugar de destaque nesta cultura. A sua função biológica de dar à luz criaturas humanas era relacionado com a criação do mundo, levada a cabo pela Deusa, símbolo do feminino. O sexo era um ato sagrado, no qual, a mulher era veículo entre o masculino e o feminino, propiciando ao homem a sua união com a Criadora dos Céus e da Terra.
Esta cultura foi se modificando conforme os obstáculos à sobrevivência foram surgindo. Com o advento da sociedade agrícola, a necessidade de braços fortes para, não só cultivar a terra, mas principalmente para brigar por ela, modificaram os valores do sagrado e a Deusa foi se transformando, paulatinamente, em um ser andrógino, atingindo finalmente a forma de um Deus macho.
O declínio de poder da deusa foi acompanhado pelo declínio do feminino, passando, a mulher, de divindade terrena a escrava reprodutora, objeto de ganho material pelo crescimento populacional.
O cristianismo representa a concretização final do processo patriarcal, subjugando a mulher no seu último vestígio sagrado de outrora, a sexualidade.
O deus único e onipotente controla a vida dos seres humanos, cria o mundo em sete dias e, ao final, cria o homem. Só depois cria a mulher, a partir de uma costela torta de Adão. Ambos são colocados no paraíso e a queda deste mundo de paz e harmonia se dá pela sedução da mulher, que astutamente convence Adão a se render à tentação da serpente, Satã. A relação homem-mulher-natureza abandona o sentido de integração e adota o de dominação.
A partir deste contexto a mulher é vista em constante conluio com o demônio, tentando o homem e prejudicando a sua transcendência. Ela é ligada à natureza, à carne, seu corpo insinua o prazer sexual, o grande pecado. Como castigo, passa a parir com dor, sendo considerado este ato, outrora sagrado, como uma grande maldição, conseqüência da sua fornicação.
Maria, a mãe de Deus, é a grande arma da Igreja contra o feminino pecaminoso. Ela é um modelo criado para exemplificar a mulher perfeita. Esta mulher assexuada objetiva a concretização de duas ambições episcopais, abocanhar, através do arquétipo da Grande Mãe, aquelas ovelhas que ainda se mantinham fiéis a antiga religião, e anular o poder da sexualidade feminina, considerado ameaçador à estrutura eunuca e machista do catolicismo. Em Maria inviolada a sexualidade está abolida e, devido a isto, ela alcançou a graça de poder trazer à vida uma criança sem passar pelo transe de dor.
Além dos já expostos motivos religiosos, existia ainda um outro motivo para se anular a mulher, o domínio político.
Desde a mais remota antigüidade a mulher detinha o poder da cura, seu conhecimento a respeito de ervas medicinais lhe dava posição de destaque num mundo infestado por doenças e com pouco conhecimento médico, tal qual o conhecemos hoje em dia. As curadoras eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde a população e eram também as melhores anatomistas de seu tempo.
Na Idade Média passaram a constituir uma ameaça ao poder médico masculino que vinha tomando forma, através das universidades, no sistema feudal. Para complicar mais a sua situação este saber medicinal era transmitido oralmente através de confrarias femininas, onde se ensinava não só os segredos da cura do corpo, mas também da alma. Estas confrarias foram também fomentadoras de revoltas camponesas contra o feudos em formação, sistema político incentivado pela Igreja católica e protestante. Para alcançar este poder centralizador era necessário inibir a influência sexual e política feminina. Ressaltar a associação do feminino com o mal era não só uma necessidade religiosa, mas também política. O reinado cristão se sente ameaçado, surge a Inquisição.
Este vergonhoso episódio da história humana visava “ensinar” às massas o sistema de regras da conduta social vigente, submetendo-a aos excessos dos senhores feudais. E principalmente, submeter a mulher, haja visto que 85% dos bruxos exterminados eram do sexo feminino.
Era essencial ao sistema capitalista um rigoroso controle do corpo e dos excessos sexuais que tornavam o trabalhador indócil ao comando de seu senhor. Anula-se com isso a vontade do servidor, tornando-o facilmente manipulável. Mas para que o puritanismo fosse instalado foi necessária muita violência.
Até meados da Idade Média as regras morais cristãs ainda eram frouxamente seguidas pela população, havendo ainda muitos núcleos do paganismo. Segundo muitos estudiosos da época a “caça às bruxas” não constituiu uma histeria coletiva, como é propagado, mas sim, uma manobra política muito bem planejada pela classe dominante, a fim de se sedimentar no poder.
O Malleus Maleficarum, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, torna-se o documento que orienta a horrenda perseguição, uma verdadeira bíblia para os inquisidores. Seu conteúdo trata das relações dos bruxos com Satã, ressaltando o papel da mulher como amante dedicada em permanente concubinato com Satanás. Suas teses são as seguintes:
1) O Demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número possível de almas.
2) E este mal é feito prioritariamente através do corpo, único “lugar”onde o Demônio pode entrar, pois “o espírito [do homem]” é governado por Deus, a vontade por uma anjo e o corpo pelas estrelas. E porque as estrelas são inferiores ao espírito e o Demônio é um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar.
3) E este domínio lhe vem através do controle e da manipulação dos atos sexuais. Pela sexualidade o Demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável de todos os homens.
4) E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as agentes por excelência do Demônio (as feiticeiras). E as mulheres têm mais conivência com o Demônio “porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher pode ser reta”
5) A primeira e maior característica, aquela que dá todo o poder às feiticeiras, é copular com o Demônio. Satã é, portanto, o senhor do prazer.
6) Uma vez obtida a intimidade com o Demônio, as feiticeiras são capazes de desencadear todos os males, especialmente a impotência masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas, abortos, oferenda de crianças a Satanás, estrago das colheitas, doenças nos animais, etc.
7) E esses pecados eram mais hediondos do que os próprios pecados de Lúcifer quando da rebelião dos anjos e dos primeiros pais por ocasião da queda, porque agora as bruxas pecam contra Deus e o Redentor (Cristo), e portanto este crime é imperdoável e por isso só pode ser resgatado com a tortura e a morte.
As estatísticas do genocídio são aterradoras. O pânico espalha-se pela Europa. Estima-se o número de execuções em seiscentas por ano para certas cidades, uma média de duas vítimas da fogueira por dia, “exceto aos domingos”. O Martelo das Feiticeiras nos informa que novecentas bruxas foram executadas num único ano na área de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse, quatrocentas mulheres foram assassinadas num único dia; no arcebispado de Trier, em 1585, duas aldeias forma deixadas apenas com duas mulheres moradoras cada uma.
Qualquer indício de que o Diabo estava por perto, como o aborto de alguma mulher, leite coalhado, morte do gado, estrago da colheita, eram motivos para se acusar de bruxaria a alguma pobre vítima, de preferência aquelas que ainda se mostravam um pouco afoitas na cama e mantinham uma certa liberdade do pensar. Não bastasse a morte cruel a que eram submetidas, sendo queimadas vivas na fogueira, eram levadas a torturas atrozes preliminares com o objetivo de que confessassem fornicações com o demônio.
Eram despidas de suas roupas e seu corpo nú raspado, sendo submetidas a procedimentos tarados e sexualmente perversos, gerados na repressão sexual da Igreja de Deus. Suas partes íntimas que, segundo o Malleus, não devem ser mencionadas, eram violadas com a desculpa de se procurar objetos enfeitiçados escondidos.
Após a confissão, arrancada sob tortura, a fogueira chegava a ser uma benção para estas mulheres, cujo único contato com o Demônio havia acontecido a algumas horas antes da sua morte, na pessoa dos seus inquisidores, “o exército santo do Senhor”.
A mulher, após todo este período de repressão, passou a se tornar dócil e submissa, negando a si mesma o prazer da liberdade, não só sexual como social. Passa a transmitir a toda a sua prole as regras de sobrevivência, aprendidas a duras penas, obediência incondicional a Deus e submissão à Igreja. O poder eclesiástico atinge seu ponto máximo de domínio político e social.
Muito tempo foi necessário para que a humanidade retomasse o seu direito à liberdade e começasse a vivenciar o prazer sem culpa. E talvez seja apenas coincidência que, justamente em nossa época, quando a relação homem-mulher busca uma reintegração do poder sexual, surjam seitas cristãs enfatizando os perigos do sexo, bem como a existência real de Satã, o senhor dos prazeres corporais…
Conclusão
A idéia de um mal que espreita a vida humana, e que incita a deslizes esteve desde o princípio dos tempos ligada ao pensamento humano.
A teodicéia cristã criou a justificativa para a existência do mal, personificando-o na figura de Satã, enquanto o povo, agradecido, aliviava o fardo da culpa. E o sentido de transgressão era tão grande, alimentado que estava por dogmas puritanistas, que nos entregamos sofregamente à idéia de um foco externo que se opunha às nossas virtudes.
Passamos a assumir o papel de meras vítimas na calamidade espiritual que assola a humanidade. E da ação passamos para a inércia eterna, perturbada apenas pelo estímulo do malfeitor da humanidade, o Príncipe da Noite.
O abandono do papel de agente para assumir o papel do objeto sobre o qual se age, afastou de nós a responsabilidade pelos fatos do porvir. Assim, se algo bom acontece, é Deus que traz, se algo de mal ocorre, é o Diabo que o provoca. Esta inércia embota nossa mente e, qual cães bem alimentados, rejeitamos nosso livre arbítrio, desejando apenas obedecer. E obedecemos.
Obedecemos tanto que com o tempo esquecemos de nossa natureza, ou mesmo, daquilo que um dia ela fôra. Esquecemos que somos filhos de Deus e, como tal, uma raça de real nobreza, criados com o livre pensar para estarmos aptos ao livre agir, a fim de lutar pelas nossas raízes. Um homem sem raízes é um homem sem alma.
E foi isto que nos tornamos, autômatos, desprovidos de vontade, totalmente submetidos aos ditames de uma moral vigente e embotados por uma natureza animal poderosa, instigada pela repressão dos instintos promovida pelos diversos sistemas religiosos através dos séculos.
Hoje somos caóticos, abandonados à inércia de nossas vidas, bailando ao sabor das ondas e lutando desordenadamente pela sobrevivência.
Satã representa um espírito rebelde, um espírito do contrário, um espírito de luta. Satã é tudo aquilo que o preguiçoso e acomodado não desejam ver ou sentir. Neste âmbito, e tão somente neste âmbito, ele é o mal.
Satã é aquele que recusa o aconchego paterno e desafia a ordem estabelecida, afirmando intrepidamente poder superá-la em beleza e perfeição. É aquele que recusa o amor e enfrenta os tormentos da solidão, afirmando a sua própria vontade. É o dedo em riste que aponta para as nossas chagas, suscitando nosso orgulho. É o grito de rebeldia que se recusa a morrer e que, por vezes, surge na alma subjugada. Satã é aquele que se diz o agente ativo de um processo, recusando entregar-se mansamente à passividade. Satã ou Lúcifer, se assim o preferirem, é o portador da luz, aquele que oferece a sabedoria à entidade humana.
Sabedoria implica em busca que implica em esforço. Esforço representa luta e a luta, em seus meandros, traz a angústia. A angústia surgida da inconformidade pela nossa condição atual que se encontra muito aquém de nossas possibilidades. Esta inconformidade é o tormento real de nossa existência, o mal que tememos e que nos submete a uma condição inferior.
Satã simboliza a liberdade do pensar e do agir, condições necessárias para a busca do enlevo espiritual que estimula a existência da alma superior. Liberdade leva a responsabilidade e responsabilidade é tudo aquilo que o vulgo não deseja. E mais uma vez, neste âmbito, e apenas neste, Satã representa o mal.
O Príncipe das Trevas, como o próprio nome já nos revela, habita a escuridão. Aquele lado obscuro de nossa alma, simbolizado pela noite, e relegado por nós aos infernos abissais de nosso próprio ente. Resgatar este lado obscuro da constituição pessoal e trazê-lo de volta à luz é iniciar o processo de volta à reintegração do ser. Representa o abandono das dicotomias e o retorno à unidade, integração perfeita entre o homem e sua própria natureza, encetando a busca da harmonia estereotipada em Deus.
Qualquer tentativa de externar este aspecto de nosso espírito é eminentemente desastrosa e só pode trazer, agora sim, o mal. Este mal, vivenciado ao longo de nossa história através do fanatismo e da coação religiosa que acabou por gerar, na sua insânia, perseguições grotescas com o conseqüente extermínio de boa parte daqueles que, tal como nós, são filhos de Deus, nossos irmãos.
Por Soror Legião
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