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São Jorge e o Dragão: uma releitura de Belerofonte e a Quimera como um Mito de Coerção

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por Claudio Siqueira

Acabamos de passar pelo Dia de São Jorge, o “Santo Guerreiro” que, galopando seu alazão, subjuga a figura desprezível do dragão e não faltaram postagens e homenagens ao dito cujo. Estar “vestido com as roupas e as armas de Jorge” – um centurião romano, garoto-propaganda do credo bélico de Roma – é motivo de orgulho. Mas vamos analisar mais atentamente esse hieróglifo da Igreja Romana.

Segundo a hagiografia¹ da Igreja Católica Romana, São Jorge teria nascido em Lida – atualmente situada em Israel – e era soldado do exército do Imperador Diocleciano. Teria morrido na Nicomédia (hoje, Izmit, na Turquia) e seus restos mortais transferidos para sua terra natal pelo Imperador Constantino, que mandou construir uma igreja-mausoléu em sua homenagem.

Considerado padroeiro de diversas cidades ao redor do mundo e padroeiro não-oficial do Rio de Janeiro – título originalmente atribuído a São Sebastião – a figura mítica de São Jorge, no entanto, remete a períodos históricos anteriores ao cristianismo.

A Diáspora do Ícone

Krishna e Kaliya

Uma das primeiras manifestações iconográficas semelhantes de que se tem notícia data do Livro Egípcio dos Mortos, onde uma figura desprovida de nomenclatura fere uma serpente com sua lança. Na Índia, Krishna subjuga a serpente antropomórfica Kaliya.

Atentem para o fato de que Krishna (assim como São Jorge), subjuga seu próprio dragão pisoteando-o. Quase todos os mitos que subjugam sua própria besta por intermédio da truculência possuem um armamento, um anteparo; por vezes um símbolo fálico. Do ponto de vista do gênero, o arquétipo masculino, positivo, “do bem” deve subjugar o feminino, negativo, “do mal”. Do ponto de vista do gênio humano, este deve submeter o Instinto à Razão, que deve ser superior à Emoção.

Esses arquétipos são sempre representados por um guerreiro, trajado em vestes bélicas, muitas vezes em uma montaria que lhe serve de veículo. O adversário é sempre representado como uma serpente ou figura reptílica, mas não em seu aspecto de autorrenovação, por mudar de pele, ou de abrangência (já que seu corpo longilíneo pode envolver qualquer objeto em circunferência, inclusive o mundo), mas por seu aspecto rasteiro, baixo, ao revés, à mercê.

Osíris e Seth

No antigo Egito, o deus Osíris é traído e atraído para um banquete por seu irmão Seth, a serpente (embora seja antropomorfizado com a cabeça de um cão) ou “o vento cortante do deserto”, que o castra e esquarteja, lançando seus pedaços ao longo do Rio Nilo. Osíris representa o Sol, o aspecto masculino e viril. Seus pedaços são lançados ao longo do leito de um rio, sinuoso como qualquer serpente.

Ísis, deusa da fertilidade, chora a morte de seu marido-irmão e suas lágrimas se transformam em abelhas, não só porque polinizam flores, mas porque, em seu voo, formam a gestalt (forma) de lemniscatas, o signo do infinito. Chamo de signo em vez de símbolo devido à Lógica dos Signos e Símbolos, de C.S. Peirce.

Com a ajuda de Sobek, o deus com cabeça de crocodilo, Ísis consegue juntar os pedaços de seu falecido irmão-marido. Mais uma vez, há a associação do aspecto feminino com o reptílico e dele com o aspecto aquoso, como veremos mais adiante. Ísis não consegue reaver o falo de Osíris (o que representa a perda de seu poder) e preenche a lacuna com seu polegar. Hórus, seu filho póstumo, vai tirar satisfação com seu tio Seth, o que configura mais uma vez a batalha contra um réptil.

Belerofonte e a Quimera 

Na mitologia grega, o herói Belerofonte², filho de Poseidon, cavalga um pégaso e subjuga a Quimera. O pégaso mesmo teria emergido do mar após a morte de Górgona por Perseu, tal qual Afrodite após Cronos atirar o falo de Urano em Oceano.

À esquerda, belerofonte e a Quimera

Logo, Pégaso representa também um arquétipo feminino. Com sua ajuda, Belerofonte pôde não só derrotar a Quimera, mas vencer as Amazonas. Segundo o professor Junito de Souza*, Zeus o nomeou “o portador do trovão e do raio”, o que faz Belerofonte próximo de Thor e Xangô.

O professor também menciona que: “O simples cavalo figura tradicionalmente como a impetuosidade dos desejos. Quando o ser humano faz corpo com o cavalo, torna-se um monstro, o Centauro, identificando-se com os instintos animalescos. O cavalo alado, muito pelo contrário, simboliza a inspiração criadora sublimada e sua elevação real.”

Thor e Jörmungandr

Thor, por sua vez, encara a serpente Jörmungandr, a Serpente de Midgard, também chamada Verme de Midgard  (Miðgarðsormr). Filha do meio do 71* Loki e de Angrboða, foi expulsa do “Paraíso”, Asgard (Æsir) junto com seus irmãos, Fenris (o “lobo mau” nórdico) e Hela. Angrboða era uma jötunn, uma raça antropomórfica e seu nome é o título de da primeira música do álbum Whoracle da banda sueca In Flames. Não por acaso, “Em Chamas!” é um termo alquímico que Tocha Humana, outro personagem da Marvel, brada ao se tornar flamejante.

Whoracle é um trocadilho com as palavras Whore (prostituta) e Oracle (oráculo). As Pitonisas gregas eram prostitutas sagradas e o termo sibilar (o ruído que as serpentes emitem) remete à cobra, presente na capa do álbum.

A palavra Jörmungandr é a junção das palavras jǫrmun (enorme) e gandr, que tem uma porrada de significados como serpente, rio, cajado, ramificação… Sendo assim, Jörmungandr significa algo como Serpente Gigante, ou Rio Grande, mas também Grande Laço ou Grande Ramificação, o que faz dela algo próximo da Yggdrasil, da mesma forma que a serpente bíblica está enroscada na Árvore da Vida, a Cabalá, que muitas vezes é representada com uma serpente enroscada.

A batalha de Thor com Jörmungandr foi retratada em Superalmanaque #4. Quando sua cauda se desprendia, era um dos indícios de que o Ragnarök (o apocalipse nórdico) se desencadearia. Thor, assim como Belerofonte e seu pégaso, é o portador do trovão e do raio, simbolizados por seu martelo, Mjolnir.

Jormungand era tão grande que envolvia o mundo, sinal de que os nórdicos já tinham noção de que a terra não é plana. Ela alcançava sua própria cauda tal qual seu correlato grego Ouroboros e foi expulsa ao mar por Odin, da mesma forma que Alá o fez com Adalzira, o dragão Islãmico.

A versão islâmica de São Jorge e o Dragão

Marduk e Ti´âmat

A diferença é que Shiva, o Destruidor (ou Transformador), subjuga a famigerada Serpente através da Vontade, não pela coerção ou pela força bruta. Ele possui a Serpente calmamente enroscada em torno de seu pescoço, como Marduk jaz tranquilo tendo a seus pés a dóci Ti´âmat.** Ti´âmat é a Deusa Dragão do Caos e das Trevas; o Abismo, as águas salgadas, mas que dá à luz o Mundo. Mistura-se à Apsu, as águas doces, e resgata sua completude, já que havia sido dividida pela lança de Marduk³.

Uma Releitura de Belerofonte e a Quimera como um Mito de Coerção

O cavalo de São Jorge não possui asas, não só para que a única figura inverossímil da imagem seja apenas o Dragão (conferindo-lhe um ar de pouca credibilidade, e, portanto, demoníaco), mas também porque “São Jorge” é uma versão de Belerofonte castrado de sua subjetividade. “Belerophonte” significa Fonte de Poder. Mais tarde, acrescentou-se à lenda que São Jorge matou o Dragão em uma batalha na lua, plagiando a “cena” em que o herói grego sobe ao Olimpo.

O cristianismo, como religião patriarcal e consequentemente falocrática, imprimiu na psiquê ocidental uma noção hierárquica vertical. O detentor do poder deve ostentar um cetro que representa seu poder coercivo, consequentemente castrador. Osíris, ao morrer no deserto, tem, em algumas versões, seu falo arrancado por seu invejoso irmão Seth, enquanto, na mitologia grega, Urano é castrado pelo titã Cronos por ter dado origem, com sua criatividade, ao universo.

O mítico “São Jorge” é, na verdade, um plágio de Belerofonte, montado num cavalo e subjugando sua própria Quimera. O arquétipo do homem dominando a besta deu lugar a um mito de coerção. Não esqueçamos que a palavra “quimera” derivou para um adjetivo que designa sonhador, fantasista, sem fundamento, ilusório, utópico. Matar o sonho é castrar a subjetividade.

Parafraseando Djavan: “São Jorge, por favor, liberte o Dragão!”


NOTAS:

* Junito de Souza Brandão (1924-1995) foi professor e escritor; bacharel em Letras Clássicas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Estado da Guanabara (UEG). Lecionando na PUC-Rio, criou a Cadeira de Mitologia Grega e Latina para o Currículo de Letras desta Universidade.

** Tal nomenclatura é dada no livro Androginia, Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade, da psicóloga junguiana Jung Singer.

1- Hagiografia – Ramo da História responsável por catalogar a vida de santos e beatos, além de suas virtudes supostamente “heroicas”. É uma prática mais comum na Igreja Católica Romana, que a considera uma ramificação da História da Igreja.

O termo deriva do grego hagios, “santo” e graphía, “escrever”. Originou-se por volta do século XVII, alegando ter como objetivo catalogar os diversos escritos a respeito dos santos. Autenticando textos não necessariamente históricos, acabou por repaginar deuses pagãos convertendo-os em ícones de devoção.

2- Belerofonte, tal qual Caim, matou seu irmão. Daí o seu nome “aquele que matou Belero”, segundo algumas fontes. Após ter matado a Quimera sem dificuldade, tentou voar ao Olimpo, “fato” que deu origem à lenda de São Jorge combatendo o Dragão na lua. No entanto, foi amaldiçoado por Zeus, que enviou uma vespa para que picasse o Pégaso. Atena tornou o chão macio mas Belerofonte, aleijado, passou o resto de seus dias coxo, peregrinando atrás de seu alazão alado.

Fonte: Mitologia Grega, Volume I; Junito de Souza Brandão – Editora Vozes

2.1- Ogum, de forma semelhante, foi castigado por Oxalá por ter maltratado todas as suas companheiras. Devido à sua misoginia, foi condenado a vagar para sempre nas estradas, ajudando aqueles que se perdem, pois jamais encontraria seu caminho.

Fonte: Orixás na Umbanda; Janaina Azevedo; Editora Universo dos Livros

3- Marduk, outro chauvinista convicto, dividiu ao meio Ti´âmat, a “Deusa Dragão do Caos e das Trevas”. De suas lágrimas surgiram os rios Eufrates e Tigre, e de seu corpo formou-se a humanidade. Esse “feito” marca a passagem do matriarcado para o patriarcado. De forma semelhante, Apolo matara Píton, ato do qual derivou o Oráculo de Delfos, que abrigaria as Pitonisas, tão bem representadas no filme 300.

Fonte: Androginia, Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade; June Singer – Editora Cultrix

4- Yin-Yang – Na verdade, as diversas versões do mito são formas maniqueístas de se enxergar a dualidade, tão bem proposta na figura do Tao. Em árabe, Al Hayyah, “a Serpente”, está relacionado a Hawwah, que é também o nome hebreu de Eva, a mãe universal.

Fonte: O Dragão; Francis Huxley; Edições Del Prado

Qualquer deus ou mortal só pode nascer quando se abre “as mandíbulas de sua prisão”, ou seja, a vagina; o que nos leva a:

5- Nanã Buruku, que ao ver o insucesso de Oxalá em tentar criar o ser humano, criou-o, ela mesma, através da Lama Primordial, à qual todos deverão regressar no momento de sua morte.

Fonte: Orixás na Umbanda; Janaina Azevedo; Editora Universo dos Livros

Este artigo foi publicado nos blogues Cinegnose e Otageek, porém com abordagens diferentes. Que “Salve, Jorge” que nada! Salvem o Dragão!


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