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Relato de Eliphas Levi sobre São Cipriano

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As estranhas narrações contidas na lenda dourada, por mais fabulosas que sejam, não refluem à mais alta antiguidade cristã. São mais parábolas do que histórias; seu estilo é simples e oriental como o dos Evangelhos e sua existência tradicional prova que uma espécie de mitologia fora inventada para ocultar os mistérios cabalísticos da iniciação Joanita. A lenda áurea é um talmude cristão escrito todo em alegorias e em apólogos. Estudada sob este ponto de vista de todo novo à força de ser antigo, a lenda áurea torna-se um livro da maior importância e do mais alto interesse.

Uma das narrações desta lenda cheia de mistérios, caracteriza o conflito da Magia e do Cristianismo nascente de modo inteiramente dramático e sugestivo. É como um esboço antecipado dos Mártires de Chateaubriand e do Fausto de Goethe, fundidos juntos.

Justina era uma jovem e bela virgem pagã, filha de um sacerdote dos ídolos, o tipo de Cimodocéia. Sua janela dava para um pátio vizinho da igreja dos cristãos; todos os dias ela ouvia a voz pura e recolhida de um diácono ler bem alto os santos Evangelhos. Esta palavra desconhecida tocou e revolveu-lhe o coração, tão bem, que uma tarde, sua mãe vendo-a pensativa e instando-lhe que lhe confiasse as preocupações de sua alma, Justina lançou-se a seus pés, dizendo-lhe: “Mãe, abençoai-me ou perdoai-me, eu sou cristã”.

A mãe chorou abraçando sua filha e foi procurar seu esposo a quem confiou o que acabava de saber.

Eles adormeceram em seguida e tiveram ambos o mesmo sonho. Uma luz divina descia sobre eles, e uma voz doce os chamava dizendo-lhes: “Vinde a mim, vós que viveis aflitos e eu vos consolarei; vinde, os amados de meu pai e eu vos darei o reino que vos está preparado desde o começo do mundo.”

Ao despontar da manhã, o pai e a mãe abençoaram sua filha. Todos os três fizeram-se inscrever no número dos catecúmenos, e, depois das provas do costume. Foram admitidos ao santo batismo.

Justina voltava branca e radiosa da igreja, entre sua mãe e seu velho pai, quando dois homens sombrios, embrulhados em seus mantos, passaram como Fausto e Mefistófeles perto de Margarida: era o mágico Cipriano e seu discípulo Acládio. Os homens pararam deslumbrados por esta aparição; Justina passou sem vê-los e entrou em casa com sua família.

Muda-se a cena, estamos no laboratório de Cipriano, onde se traçam círculos; uma vítima degolada palpita perto de um estrado fumegante; em pé em frente do mágico aparece o gênio das trevas.

— Eis-me aqui; porque me chamaste? Fala! Que queres?
— Amo uma virgem.
— Seduze-a.
— Ela é cristã.
— Denuncia-a.
— Eu quero possui-la e não perdê-la; podes fazer alguma coisa em meu favor?
— Eu seduzi Eva, que era inocente e que conversava todos os dias familiarmente com Deus. Se tua virgem é cristã, fica sabendo que fui eu que fiz crucificar Jesus Cristo.
— Logo, tu ma entregarás?
— Toma este ungüento mágico, besuntarás com ele o limiar de sua residência e do resto me encarregarei.

Eis agora Justina que dorme em seu quartinho casto e severo. Cipriano posta-se à porta murmurando palavras sacrílegas e procedendo a ritos horríveis; Satã coloca-se à cabeceira da rapariga e sopra-lhe sonhos voluptuosos cheios de imagem de Cipriano que ela crê encontrar ainda ao sair da igreja; mas desta vez ela o contempla, o escuta e diz-lhe coisas que lhe perturbam o coração; de repente ela agita-se, desperta e faz o sinal da cruz; o demônio desaparece e o sedutor que faz sentinela à porta, aguarda-a inutilmente toda a noite.

No dia seguinte ele recomeça suas evocações e faz amargas censuras ao seu cúmplice infernal; este confessa sua impotência.
Cipriano o expulsa vergonhosamente e faz aparecer um demônio de ordem inferior. O recém-vindo transforma-se alternativamente em moça e em formoso mancebo para tentar Justina por conselhos e carícias. A virgem vai sucumbir, mas o seu anjo da guarda a assiste; ela faz o sinal da cruz e expulsa o mau espírito. Cipriano invoca então o rei dos infernos e vem Satã em pessoa. Ele acomete a Justina com todas as dores de Jó e espalha uma peste terrível em Antióquia, mandando os oraculos dizerem que a peste cessará quando Justina acalmar Vênus e o amor ultrajados. Justina ora publicamente pelo povo, e a peste cessa. Satã é vencido por sua vez, e Cipriano o obriga a confessar a onipotência do sinal da cruz, e o afronta, marcando-se com este sinal. Ele abjura a Magia, é cristão, toma-se bispo e reencontra Justina num mosteiro de virgens; eles então amam-se com o puro e durável amor da celeste caridade, a perseguição porém os atinge; são presos juntos e mortos no mesmo dia e vão consumar no seio de Deus seu casa- mento místico e eterno.

A lenda faz S. Cipriano bispo de Antióquia, enquanto a história eclesiástica o faz bispo de Cártago. Pouco importa aliás que seja ou não o mesmo. Um é um personagem poético, o outro um padre da igreja e um mártir.
Encontra-se, nos antigos engrimanços, uma oração atribuída a S. Cipriano da lenda e que é talvez do santo bispo de Cártago. As expressões obscuras e figuradas de que está cheia, farão talvez supor que antes de ser bispo e cristão, Cipriano entregara-se às práticas funestas da Magia negra.

Eis a tradução:

“Eu, Cipriano, servo de nosso Senhor Jesus Cristo, ouvi a Deus, o pai onipotente, e disse-lhe: Tu és o Deus forte, meu Deus onipotente que habitas na grande luz! Tu és santo e digno de louvor, e desde o tempo antigo tu viste a maldade do teu servo e as iniqüidades nas quais eu me metera pela maldade do demônio. Eu não sabia então teu verdadeiro nome, eu passava por meio das ovelhas e elas não tinham pastor. As nuvens não podiam dar seu orvalho à terra, as árvores não davam frutos e as mulheres em trabalhos de parto não podiam dar à luz; eu ligava e não desligava, eu amarrava os peixes do mar e eles não eram livres, amarrava as estradas do mar e retinha muitos males conjuntamente. Mas agora, Senhor Jesus Cristo, meu Deus,. eu conheci teu santo nome e eu o amei e me converti de todo meu coração, de toda minha alma, de todas as minhas entranhas, desviando-me da multidão de mii1has faltas para marchar em teu amor, seguindo teus mandamentos que são minha fé e minha prece. Tu és o verbo da verdade, a palavra única do pai e eu te conjuro a quebrar todas as cadeias e todos os entraves pela virtude de teu santo nome.”

Esta prece é evidentemente muito antiga e encerra reminiscências notáveis das figuras primitivas do esoterismo cristão nos primeiros séculos.

LEVI, Eliphas. História da Magia. Trd. Rosabis Camaysar. São Paulo, Pensamento, 1995. Cap V: Das Lendas

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