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O Arcano do Diabo no Tarô

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SALLIE NICHOLS

Chegou a hora de encarar o Diabo. Enquanto importante figura arquetípica, ele pertence apropriadamente ao céu, à fila de cima do nosso mapa do Tarô. Mas ele caiu… lembra-se? Na sua versão da história, ele largou o emprego e demitiu-se do céu. Disse que merecia uma oportunidade melhor; achava que devia ter recebido um aumento e mais autoridade.

Mas não é assim que os outros contam a história. De acordo com a maioria dos relatos, Satã foi despedido. Seu pecado, dizem, foi arrogância e orgulho. Tinha uma natureza insolente, ambição demais e um senso exagerado de seu próprio valor. Contudo, tinha muito encanto e considerável influência. Seus métodos eram sutis: pelas costas do Chefe organizava a rebelião dos anjos, mas, ao mesmo tempo, lisonjeava o Mestre.

Tinha inveja de todo mundo — especialmente da raça humana. Ele gostava de ver a si mesmo como o filho favorito. Odiava Adão e se ressentia de seu domínio sobre aquele arrumadinho Jardim do Éden. Para ele, segurança complacente era (e ainda é) anátema. Perfeição o faz agarrar seu atiçador de discórdias. Inocência o faz retorcer-se. Como ele gozou ao tentar Eva e explodir o Paraíso! Tentação era — e continuou a ser — a sua especialidade. Alguns chegam a dizer que foi ele quem tentou o Senhor a perseguir o pobre Jó. Já que Deus é bem, dizem, o Senhor nunca poderia ter lançado mão de tantos truques diabólicos a menos que Ele tivesse sido levado a isso por Satã. Outros argumentam que, já que o Senhor é onisciente e todo-poderoso, deve arcar com toda a responsabilidade por submeter o pobre Jó a um interrogatório tão rigoroso.

A discussão sobre quem foi responsável pelo sofrimento de Jó prolonga-se há séculos. Ainda não foi resolvida e talvez nunca venha a ser. A razão é simples: o Diabo confunde porque ele próprio é confuso. Olhe para a figura dele no Tarô e você entenderá. Ele se apresenta como um absurdo conglomerado de partes. Usa os chifres de um cervo, mas tem as garras de uma ave de rapina e as asas de um morcego. Refere-se a si mesmo como homem, mas tem seios de mulher — talvez fosse mais correto dizer que ele veste seios de mulher, pois seus seios parecem ter sido colados ou pintados sobre o seu peito. Essa estranha couraça peitoral oferece pouca proteção. Talvez seja usada como uma insígnia para camuflar a crueldade do seu portador; mas, em nível simbólico, talvez indique que Satã usa a ingenuidade e a inocência femininas como um disfarce para nos seduzir no nosso jardim. E, como a história do Éden deixa bem claro, é através dessa nossa ingenuidade inocente (personificada por Eva) que ele age.

A rigidez e artificialismo dessa couraça peitoral talvez indiquem que o lado feminino do Diabo é mecânico e descoordenado e, assim, nem sempre está sob o seu controle. É significativo que seu elmo dourado pertença a Wotan, um Deus que também era sujeito a faniquitos mulheris e que buscava vingança quando via sua autoridade ameaçada.

O Diabo carrega uma espada, mas ele a segura descuidadamente pela lâmina, e com a mão esquerda. É óbvio que seu relacionamento com a arma é tão inconsciente que ele seria incapaz de usá-la de uma maneira propositada; isso significa, simbolicamente, que seu relacionamento com o Logos masculino também é ineficaz. Nessa versão do Tarô, a espada de Satã parece ferir apenas a ele mesmo. Mas a lâmina é ainda mais perigosa por não estar sob o seu controle. O crime organizado opera pela lógica. Pode ser descoberto e combatido de uma maneira sistemática. Mesmo os crimes passionais têm uma certa lógica emocional que os tornam humanamente compreensíveis e às vezes até evitáveis. Mas á destruição indiscriminada, os assassinatos arbitrários na rua, o louco que dispara a esmo do alto de um prédio — contra esses não temos nenhuma defesa. Sentimos que essas forças operam numa escuridão que está além da compreensão humana.

O Diabo é uma figura arquetípica cuja linhagem, direta e indireta, remonta à antigüidade. Lá ele geralmente aparecia como um demônio bestial, mais poderoso e menos humano que a figura mostrada no Taro, Como Set, Deus egípcio do mal, ele costumava tomar a forma de uma cobra ou de um crocodilo. Na antiga Mesopotâmia, Pazuzu (um demônio do vento sudoeste, portador da malária, rei dos maus espíritos do ar) incorporava algumas das qualidades hoje atribuídas a Satã. Nosso Diabo talvez também tenha herdado certos atributos de Tiamat, deusa babilônica do caos, que tomava a forma de uma ave com chifres e garras. Foi só depois de surgir a nossa cultura judeu-cristã que Satã começou a assumir características mais humanas e a conduzir suas execráveis atividades de uma maneira que o homem pode compreender mais de imediato.

Essa humanização da imagem do Diabo ao longo dos séculos significa, em nível simbólico, que agora estamos mais preparados para vê-lo como um aspecto da nossa própria sombra do que como um Deus sobrenatural ou um demônio infernal. Talvez isso signifique que estamos prontos, afinal, para lutar contra o nosso próprio lado satânico. Mesmo humano — e até mesmo belo —, ele não perdeu suas enormes asas de morcego. Se há diferença, é que elas se tornaram ainda mais escuras e maiores do que as asas do Diabo no Tarô de Marselha, Isso indica que o relacionamento de Satã com o morcego é particularmente importante e exige a nossa atenção especial.

O morcego é um voador noturno. Evitando a luz do dia, ele se retira a cada manhã para uma caverna escura onde fica pendurado de cabeça para baixo, acumulando energia para suas escapadas noturnas. Ele é um chupador de sangue cuja mordida espalha a peste e cujos excrementos profanam o ambiente. Ele se precipita rapidamente no escuro e, de acordo com a crença popular, tem um pendor especial para enredar-se nos cabelos das pessoas, causando um rebuliço histérico.

Também o Diabo voa à noite — hora que as luzes da civilização se extinguem e a mente racional adormece. É nessa hora que os seres humanos estão deitados, inconscientes, desprotegidos e abertos às sugestões. Na luz do dia, quando a consciência humana está desperta e a capacidade de diferenciação do homem está aguçada, o Diabo se retira para os escuros recessos da psique onde, ele também, fica pendurado de cabeça para baixo, escondendo sua qualidade de contrário, recarregando suas energias e ganhando tempo. Metaforicamente, o Diabo suga o nosso sangue e corrói a nossa substância. Os efeitos de sua mordida são contagiosos, contaminando comunidades inteiras e até países. Assim como o morcego pode causar um pânico irrefletido num auditório lotado ao se precipitar, veloz, sobre os espectadores, também o Diabo pode voar às cegas sobre uma multidão, enredando-se nos cabelos, embaralhando os pensamentos lógicos e provocando histeria de massa.

Nosso ódio ao morcego ultrapassa toda lógica. Assim também nosso medo do Diabo — e por motivos semelhantes. O morcego parece-nos uma monstruosa aberração da natureza — um rato com asas, a chiar. Assim como o Diabo, suas partes disparatadas desafiam as leis naturais. Tendemos a ver todas essas deformações — o antão, o corcunda, o bezerro de duas cabeças — como obras de alguma força sinistra e irracional; e essas criaturas como instrumentos dessa força. Um misterioso talento compartilhado pelo morcego e pelo Diabo é a capacidade de vôo cego no escuro, Intuitivamente, temos medo dessa magia negra.

Os cientistas descobriram uma maneira de se proteger contra os hábitos perigosos e asquerosos do morcego para poderem entrar na caverna desses animais e examinar seus habitantes de um modo mais racional. Como resultado, a forma peculiar e o comportamento repulsivo do morcego parecem agora menos assustadores. Descobriu-se que até mesmo o seu misterioso sistema de radar funciona de acordo com leis que podemos compreender. A tecnologia moderna decodificou a magia negra do morcego para criar um aparelho semelhante que permite, também ao homem, o vôo cego.

Talvez, com um tipo semelhante de exame objetivo do Diabo, pudéssemos aprender a nos proteger contra ele; e, descobrindo dentro de nós mesmos uma propensão à magia negra satânica, pudéssemos aprender a dominar esses medos irracionais que paralisam a vontade e tornam impossível enfrentar o Diabo. Talvez na luz terrível de Hiroshima, com seu resultado de humanidade retorcida e dilacerada, pudéssemos, depois de tanto tempo, ver a forma monstruosa da nossa própria sombra demoníaca.

A cada guerra que se sucede toma-se mais evidente que nós e o Diabo temos muitas características em comum. Alguns dizem que a função da guerra é exatamente revelar ao homem sua enorme capacidade para o mal, de um modo tão inesquecível que cada um de nós acabará por reconhecer sua própria sombra escura e lutar contra as forças inconscientes de sua natureza interior, Alan McGlashan vê a guerra especificamente como “a punição à descrença do homem nessas forças dentro dele mesmo”.

Paradoxalmente, à medida que a vida consciente do homem se torna mais “civilizada”, sua natureza paga e animal, como se revela na guerra, torna-se cada vez mais implacável. Comentando isso, Jung diz:

As forças instintivas represadas no homem civilizado são imensamente mais destrutivas e, portanto, mais perigosas, que os instintos do homem primitivo, o qual, num grau mais moderno, está constantemente vivendo instintos negativos. Conseqüentemente, nenhuma guerra do passado histórico pode rivalizar com uma guerra entre nações civilizadas, em sua colossal escala de horror.

Jung continua, dizendo que a imagem clássica do Diabo como meio-homem, meio-besta, “descreve com exatidão o lado grotesco e sinistro do inconsciente, pois nunca realmente chegamos a lutar contra ele e, em conseqüência, ele permaneceu no seu estado selvagem original”.

Se examinamos esse “homem bestial”, assim como ele é mostrado no Tarô, podemos ver que nenhum componente individual é, em si, dominante. O que o torna tão repulsivo é o conglomerado sem sentido de suas várias partes. Essa montagem irracional ameaça a própria ordem das coisas, solapando o esquema cósmico sobre o qual se apóiam todas as formas de vida. Enfrentar essa sombra significaria enfrentar o medo de que não apenas nós, seres humanos, mas também a própria Natureza tenha enlouquecido.

Mas essa estranha besta que vive dentro de nós, que projetamos sobre a figura do Diabo, afinal de contas, é Lúcifer, o Anjo da Luz. Ele é um anjo — embora um anjo caído — e, como tal, um mensageiro de Deus. E preciso que travemos conhecimento com ele.


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