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Dentro do campo da demonologia, há bastante material interessante em português. Eu poderia falar do Colégio Invisível do Morte Súbita, do projeto recém iniciado de demonologia do Robson Belli e até do curso gravado do Projeto Xaoz e ainda estaria sendo injusto com alguns materiais excelentes da Via Sestra, por exemplo. E aqui ainda estaria limitado aos cursos e livros pautados exclusivamente no ocultismo e suas variadas vertentes que (por maior que seja minha discordância com algumas) sempre acrescentam bastante.
Mas é possível de falar de demonologia sem falarmos das religiões? É possível trazer este assunto ao palco sem reconhecermos o trabalho multissecular do catolicismo na busca por um diabo para chamar de seu? Não deveríamos conceder algum espaço aos Djinns islâmicos ou aos Anjos de decretos negativos dos hebreus? Podemos esquecer dos Rakshasas e Asuras hindus, dos Titãs gregos, dos Onis nipônicos? E quanto aos Yoguai, Mogwai, Maeum? Jurupari e Anhangá? Tzitzimime e Nickars? É uma longa lista sem fim de seres nomeados ou não nas mais diversas línguas e culturas e isso, por si só, já é um claro impeditivo para tratarmos a demonologia como uma área exclusiva de qualquer vertente.
Entende-se por demonologia o estudo dos demônios, palavra advinda do termo daimón e que pode ser traduzida por “força” ou “impulso”. Se para os antigos gregos o daemon poderia ser bom (eudaemon) ou mau (cacodaemon), para os católicos todo daemon passou a ser tratado como mal e os “mensageiros” (ángelos) passou a ser a denominação dos espíritos bondosos. E perceba bem: denominação; pois não é correto afirmar que o catolicismo criou os מַלְאָך (Malech) herdados de sua tradição mãe.
A este caldeirão, uniu-se no ocidente mais duas palavras curiosas do grego: súmbolon, “cada uma das partes de um objeto”; e diábolos¸” aquilo que desune, que separa”. Há uma coisa curiosa na etimologia destas palavras quando percebemos que o verbo ballein significa “jogar/lançar” e está presente em palavras como ‘hipérbole’ (“lançar longe”), ‘parábola’ (“jogar ao lado”) e ‘emblema’ (“jogado dentro). Este jogar é comumente trazido ao σύμβολον (symbolon) como um “jogar junto/ao mesmo tempo” com a conotação de que “ao apresentar um símbolo, apresentamos algo junto a ele”, enquanto em διά+βολος (diá+bolos) estas partes seriam arremessadas separadamente, causando desunião.
Encontrar nos demônios as figuras de desunião, separação e quebra é, por fim, uma questão semântica; e não é à toa que os deuses derrotados de outras religiões sejam trazidos a este grupo. O vencedor reúne sobre si os derrotados e amplia sua zona de influência nas terras dominadas e resta aos antigos deuses derrotados o papel de tentar separar novamente seus domínios originários. Ao contrário da simplificação curiosa dos períodos moderno e contemporâneo, palavras não são boas ou ruins naturalmente e união e separação podem mudar de posição conforme o caso.
É o Diabo que quebra o matrimônio, destituindo o símbolo de sua união do seu σύμ. Mas que mal isso faz quando a relação não é saudável e sustentável? A própria capacidade divina de unir e separar é, por si mesma, beata e diabólica simultaneamente, na medida em que as questões de polaridade são meramente humanas. Se Exu é ou não o diabo, semanticamente poderíamos dizer que isso depende do trabalho que ele faz – e com isso pode variar a cada momento, tal qual nós o fazemos.
Mas se o objetivo é afastar o diabo, como um símbolo de união me separaria daquele que desune?
Por mais contraditório que o seja, o afastamento “daquele que desune” é unir-se a ele – e isso não te fará tão diferente dos Templários e das Cruzadas anexando novos territórios. Não há como retirar o mal de si, mas é possível apaziguar seus próprios lados em uma mediação bem apontada. Eis os tão aclamados Caminhos do Meio, em que se reúne os aspectos bons e ruins dos seus lados… bons e ruins? É… Como eu já disse: polaridade é um problema humano, não divino – e não sei se fomos equipados com essa capacidade de compreensão.
Símbolos religiosos, dotados da verdadeira fé, são capazes de afastar o mal por reunião ou por uma incapacidade do espírito de lidar com o que está reunido. É como se o egum que lhe incomoda visse, através do seu [inserir aqui seu símbolo religioso favorito], que tem doze caras armados atrás de você. (E se eles estão vestidos de apóstolos ou como o zoológico do zodíaco, isso é por tua conta).
É inquebrantável a verdadeira fé e a este sinal as reações são bastante desestimuladas. E, sim, isso significa que é mais difícil atacar sua avozinha rezadeira do que ao “magão de oitavo Dan que não reza nem pro anjo da guarda” – afinal, quantas velhinhas rezadeiras andaram se envolvendo em guerras mágicas por aí e perderam? Hein? Hein?
Além disso, há de se propor o estudo de uma “demiótica” ou dos “símbolos que naturalmente afastam demônios”. Um estimado professor fez bem ao me lembrar da cena em que Constantine busca em seu chaveiro pelo símbolo correto para um demônio específico: o homem sem fé encontra a palavra-passe para entrar no Paraíso. Isso é como ter passaportes de múltiplas nacionalidades ou (melhor ainda!) ter vários tipos de ameaças implícitas para todas as situações. É a chantagem espiritual em forma completa, em que acessamos os traumas de determinado espírito com o intuito de afastá-lo. E, não, você não está sendo bonzinho ao afastar um demônio desta forma –, mas isso é um problema teu com seus próprios pesadelos. No fim, é como um bom policial fazendo seu serviço: proteger uma vida tirando outra lhe impedirá de dormir por semanas.
Constantine não é um bom policial e ele irá dormir, mas ao trair sua própria fé com um símbolo alheio você atesta para si mesmo que não tem o suficiente desta matéria tão necessária ao ocultista. Seus demônios farão a festa lhe afastando de quem você é (ou de quem você acha que é) e talvez isso seja positivo, caso você viva no automático ou seja herdeiro de uma fé que não é tua.
Afinal, o trabalho do διά+βολος é o de separar e às vezes precisamos de uma ajudinha externa para sair de amizades problemáticas, casamentos ruins e empregos tóxicos…
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