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A lua possui um lado oculto que nunca pode ser visto aqui da terra, isso é devido ao fato de que os movimentos de rotação e translação da lua levarem o mesmo período de tempo (lembra do Pink Floyd e seu álbum, The Dark Side of the Moon?). A mente humana também possui um lado oculto, uma parte que normalmente não é acessível ao eu consciente. Conforme a psicologia moderna, nossa mente é como um imenso iceberg, onde só uma pequena parte pode ser percebida, mas a maior parte permanece escondida.
Sabemos que o termo personalidade, vem do latim “persona” que quer dizer máscara, o ego é só uma mascara criada para que possamos interagir socialmente, um mero ator criado pela necessidade. Abaixo desta máscara repousa longe do alcance da consciência nossos instintos mais básicos, aqueles que garantiram a sobrevivência da nossa raça até agora, mas que foram banidos para fora do campo de consciência por não serem socialmente aceitáveis. Lá também repousa uma fonte tremenda de energia atávica represada, e sabedoria de milênios de evolução. É dessa fonte que emana toda a nossa intuição, nossa criatividade e até os chamados poderes parapsicológicos (nome moderninho para poderes mágicos). Kenneth Grant relatou que o mago Austin Osman Spare, precisava mover um pesado monte de lenha e não tinha ninguém para ajudá-lo, mas fechando os olhos e invocando a “força atávica na forma de um tigre” , conseguiu mover o monte de lenha facilmente.
Dificilmente temos contato com esse lado oculto nosso, mas quando isso ocorre, tendemos a interpretar esse acontecimento como um contato com algo fora de nós. Alguma coisa como um deus, um demônio, um espírito, um anjo, etc. O filósofo Sócrates possuía um um companheiro invisível que lhe aconselhava. Ele era uma espécie de “Anjo da Guarda”. O filosofo não podia vê-lo, mas ouvia claramente a sua voz “como se estivesse conversando com outro ser humano”, como o próprio Sócrates declarou. Os gregos chamavam esse tipo de amigo invisível de daemon, e acreditavam que ele fosse algum tipo de divindade menor encarregada de transmitir as instruções dos deuses aos homens. Outra personagem famosa que ouvia vozes era Joana D’arc. Ela acreditava falar com anjos que eram tão reais para ela, que Joana podia vê-los e até tocá-los, embora mais frequentemente ela apenas ouvia suas vozes lhe aconselhando e até lhe revelando acontecimentos futuros. Por isso ela foi queimada como bruxa! Talvez hoje ela fosse tida como “louca” , e tivesse que tomar antipsicóticos, ou talvez virasse médium espírita como Chico Xavier!
O mais importante ocultista do século passado, Aleister Crowley, criou todo um todo um sistema mágico baseado em em um livro escrito na Idade Média, chamado: A Magia Sagrada de Abramelin, o Mago, atribuída a Abraão, o Judeu (Esta obra contém um complicado ritual que serve para a invocação do “Sagrado Anjo Guardião”). O sistema de Crowley consiste em fazer contato com seu SAG (Sagrado Anjo Guardião) para descobrir sua Verdadeira Vontade. Ele mesmo recebeu todo o seu Livro da Lei, sua obra mais importante, ditado diretamente por Aiwass, uma entidade que Crowley, mais tarde identificou como sendo o seu SAG (é importante ressaltar que Crowley sabia que o SAG não era uma entidade separada, mas ao contrário, era uma parte da psiquê do próprio mago, embora usasse a terminologia medieval – Sagrado Anjo Guardião – pelo fato de ela ser usada no livro de Abramelin).
Cabalisticamente, o SAG corresponde a sephirah de Tifareth. Esta sephirah é o centro da árvore da vida (otz chiim), e é relacionada astrologicamente com o Sol. Mas todo objeto projeta uma sombra, e toda força positiva possui uma força negativa que a corresponde. Como Yin e Yang, Jaquim e Boaz e toda aquela coisa… Sendo assim, a árvore da vida tem e seu lado negativo, chamado de árvore da morte, ou árvore do conhecimento (otz daath) ou simplesmente o outro lado (sitra ahra). Nesse outro lado da árvore, a qliphah correspondente à Tiphareth se chama Tagirion. Astrologicamente, Tagirion é o Sol Negro, ou Estrela da Morte. Enquanto o mago da luz tenta o contato com seu SAG, trabalhando com Tiphareth, o mago negro, trabalha com Tagirion, e entra em contato com a Besta 666, o lado escuro do daemon.
Na maioria dos mitos de criação, as trevas vem antes da luz, o caos vem antes da ordem. Tiamat a deusa dragão da mitologia sumeriana e babilônica, que representa o caos primordial, vem antes de Marduk que representa a ordem. Marduk só assume o posto de deus supremo após matar Tiamat. Na Grécia Antiga os titãs vem antes dos deuses, e Zeus da mesma forma que Marduk, precisa derrotar os representantes do caos primordial para poder impor a ordem ao universo. Mesmo o mito bíblico da criação relatado no livro de Gênesis, nos diz que “no princípio a terra estava vazia e sem forma”, ou seja, o universo estava mergulhado no caos, antes que o deus hebreu, YHVH, criasse o mundo, impondo a ordem ao universo.
Segundo o psicólogo suiço Carl Gustav Jung os mitos revelam verdades profundas chamadas de arquétipos. Esses arquétipos seriam o resultado da sabedoria acumulada durante milênios de evolução da raça humana, e formariam o que ele chamou de inconsciente coletivo. Pois essa sabedoria acumulada em forma de mitos nos ensina que sitra ahra não é apenas o outro lado da realidade, mas que na verdade é o lado que vem em primeiro lugar, é o lado original. O caos primordial é o substrato daquilo que chamamos de realidade. Por baixo de toda ordem aparente, subjaz o lado escuro, oculto. Esse lado escuro estava aqui antes da criação do universo, permanece aqui agora e permanecerá após a dissolução do universo conhecido.
Voltando ao daemon, enquanto o SAG corresponde aos avatares salvadores da humanidade (como Cristo, Buda, Krishina, etc.), a Besta representa os anticristos, ou seja aqueles personagens que negam a necessidade de um salvador, e que pregam que cada um é seu próprio “salvador” (como Nietzsche, Crowley, etc.). Isto ocorre porque o homem supersticioso reverencia o daemon como um enviado dos deuses, senão o próprio deus. Não sabe ele, que se trata de uma parte de si mesmo, uma parte mais profunda, mas ainda assim pertencente a ele mesmo. Já o mago de mão esquerda não se ilude, sabe que o daemon não é distinto dele mesmo. Não procura nenhum deus fora dele mesmo para adorar. Sabe que o contato com o daemon é parte da sua evolução, ou melhor da sua busca pela totalidade de si mesmo, de seu self, como diria Jung. Sabe que a salvação não vem de fora como pregam as religiões da luz, mas que o homem pode e deve salvar-se a si mesmo.
Também é preciso ressaltar que não podemos cair na asneira de querer renegar nosso ego, como pregam as religiões de mão direita, nosso ego é essencial para podermos existir nesse mundo. Devemos pelo contrário fortalecê-lo para a batalha diária pela sobrevivência. Enfraquecer nosso ego só vai nos tornar presas fáceis perante aqueles que não são tão ingênuos a esse ponto. O contato com o daemon não pode ser motivo de escapismo, ou de algum tipo de beatitude estúpida que nos afaste do mundo, mas pelo contrário deve ser motivo do engajamento do eu total no mundo do aqui agora.
Na tradição xamânica, quando uma pessoa perde um pedaço da sua alma, se torna doentia e apática, nesse caso o xamã deve recuperar a alma da pessoa para que ela recupere a saúde física e ou, espiritual. É nesse sentido que o contato com o daemon funciona para o mago de mão esquerda, como uma forma de engajamento total no mundo, de um aumento de ânimo, de um aumento de poder, de um crescimento da sua vontade de potência, como diria Nietzsche.
Referências:
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Qabalah, Qliphoth e Magia Goética – Thomas Karlsson – Ed. Coph Nia.
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Santo Anjo Guardião, A magia Sagrada de Abramelin, O Mago, Atribuída a Abrãao, O Judeo – A.C. Godoy – Ed. Madras.
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Aleister Crowley, A Biografia de um Mago – Johann Heyess – Ed. Madras
Rubens Guimarães
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