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Texto de G. B. Marian. Traduzido por Caio Ferreira Peres.
Os yezidis são acusados de “adorar o diabo”, mas eles também são romantizados pelos ocultistas ocidentais—e nada disso é aceitável.
Fiquei sabendo dos yezidis pela primeira vez ao ler Supernatural Tales From Around the World de Terri Hardin no final dos anos 1990. Naquele ponto, a maioria das pessoas—incluindo acadêmicos ocidentais—ainda os chamavam de “adoradores do diabo”, e informações precisas sobre essa cultura ainda eram muito difíceis de se obter. Foi só aproximamente nos últimos 15 anos que o mundo estrangeiro finalmente deu aos yezidis a atenção que eles mereciam, mas a causa para isso é infeliz. Após muitos séculos de perseguição, os yezidis continuam a ser sistematicamente assassinados pelos jihadistas islâmicos. Eles são especialmente desprezados pelo grupo terrorista Estado Islâmico, que já exterminaram multidões inteiras de homens yezidis e sequestraram incontáveis mulheres e crianças yezidis, forçando-as à escravidão.
O yezidismo é uma religião sincrética que combina o politeísmo kurdo pré-zoroastriano com certos elementos dos credos bíblicos. Ela gira em torno de nove personagens teológicos, incluindo: um deus Criador deístico que pouco se interessa pelas questões dos mortais; sete arcanjos que servem como guardiões para a criação; e um santo profeta chamado Sheikh Adi ibn Musafir, a qual acredita-se que tenha sido um dos arcanjos em forma humana. Os yezidis acreditam que adorar o deus Criador é inútil pois essa entidade realmente não se importa com o que acontece com os seres mortais. Nossas orações são mais produtivas quando direcionadas aos arcanjos, já que eles agora governam o universo no lugar do Criador. Desses sete anjos, o mais importante deles é chamado Melek Taus ou Ta’usi-Melek, o “Anjo Pavão.”
Melek Taus parece ter sido uma divindade politeísta que mais tarde foi confundida com a versão islâmica de Satã, e é daqui que vem a acusação de “adoração ao diabo” contra os yezidis. De acordo com o Corão, Iblis (“Dúvida”, o nome islâmico para Satã) era originalmente um gênio que se recusou a prostrar-se diante de Adão pelo comando de Alá. É dito que Iblis achava-se superior aos seres humanos, e Alá o expulsou dos céus por sua insolência e orgulho. Após isso, Iblis se tornou Shaitan e se dedicou a enganar o maior número possível de pessoas a desobedecer Alá (para que elas fossem ao inferno). Fora essa história de origem, o diabo islâmico funciona da mesma forma que o diabo cristão; ele está lá para basicamente assediar, assustar e/ou enganar os monoteístas a cometerem vários “pecados”.
Os yezidis adoravam ao seu deus pavão muito antes deles ouvirem essa história; mas em algum momento, foram feitas tentativas de os converter ao Islão. Foi dito a eles que o seu Anjo Pavão era de fato Shaitan (assim como todas as divindades politeístas são de fato “Satã” aos olhos monoteístas). Estranhamente, os yezidis parecem ter concordado que Melek Taus é a mesma pessoa que Iblis; e ele também concordaram que ele desobedeceu uma ordem direta do Criador ao recusar-se a adorar os seres humanos. Mas é aqui em que a semelhança entre essas duas narrativas termina. Os yezidis acreditam que ao invés de se tornar o diabo, Melek Taus realmente se tornou o primeiro monoteísta. Ele desobedeceu o Criador não por orgulho mas por lealdade, pois ele se recusava a adorar qualquer um que não fosse o Criador. Os yezidis afirmam que Melek Taus depois foi recompensado por esse ato de desobediência, e que o Criador o escolheu para governar o nosso cos-mos. Dessa forma, eles justificaram a adoração contínua de seu Anjo Pavão não como o “inimigo” de Alá, mas como o seu regente.
Sheikh Adi ibn Musafir foi um sufista muçulmano medieval que viajou ao Kurdistão em busca de paz e tranquilidade. Apesar de suas tentativas de levar uma vida monástica, ele chamou a atenção de seus novos vizinhos yezidis, que devem ter pensado que ele era um mago. Sheikh Adi provavelmente tentou converter os yezidis ao Islão (e ele provavelmente foi um dos poucos que tentou fazer isso pacificamente). Até onde pude descobrir, a ideia de Iblis ser “o primeiro monoteísta” se originou no movimento sufista, que segue uma leitura mais mística do Islão. Aposto que Sheikh Adi introduziu essa ideia para os yezidis, que então equipararam ao seu próprio deus Melek Taus. De qualquer forma, Sheikh Adi causou tamanha impressão nesse povo que eles começaram a acreditar que ele era de fato a encarnação humana do Anjo Pavão. Até hoje, fazer peregrinações à tumba de Sheikh Adi continua como um componente importante da fé yezidi.
Muita da atenção que o yezidismo recebeu aqui no ocidente vem dos satanistas, que de vez em quando citam a religião como uma “prova” para a historicidade de um satanismo pré-laveyano. (Não importa o fato de que LaVey foi precedido por dois satanistas do início do século XX, Maria de Naglowska e Herbert Sloane.) LaVey até mesmo incluiu partes de um suposto texto yezidi—o Al-Jilwah—em seu livro The Satanic Rituals (Avon, 1972). Esse texto é agora aceito por alguns satanistas teístas como uma revelação direta do próprio Lúcifer; mas a sua verdadeira história é menos certa. Por um lado, o Al-Jilwah é apenas uma pequena parte de um longo texto chamado de Mishaf Resh (o “Livro Negro”). E embora ele reflita algumas das crenças dos yezidis, ele não foi escrito pelos yezidis. Em 2007 tive a oportunidade de conversar sobre isso com o Dr. Philip G. Kreyenbroek (um dos principais estudiosos da cultura yezidi atualmente), e foi isso que o Dr. Kreyenbroek compartilhou comigo:
“Os assim chamados ‘Livros Sagrados” são fraudes e pouco têm haver com a crença yezidi. [. . .] Ainda me lembro do rosto de um erudito amigo meu yezidi quando lhe mostrei os ‘Livros Sagrados’ pela primeira vez, primeiro ele ficou escandalizado e depois riu até explodir.”
-P.G. Kreyenbroek (Comunicação pessoal, 20 de outubro de 2007)
Já encontrei satanistas teístas que acreditam em tudo que está escrito no Al-Jilwah palavra por palavra, como se ele fosse a Bíblia e eles fossem cristãos fundamentalistas. Mas a verdade é que:
- Melek Taus e Satã são duas figuras completamente diferentes.
- Os yezidis não acreditam em “Satã” como ele é definido no cristianismo ou no islã.
- Os yezidis consideram o Al-Jilwah como uma tipo de piada de algum ocidental.
Isso praticamente destrói toda a noção de usar o Al-Jilwah como um tipo de escritura sagrada “infalível”. Mas as crenças yezidis também foram apropriadas por outros grupos ocultistas ocidentais, incluindo teosofistas e thelemitas. Enquanto romantizar os yezidis como os “mestres ascensionados ocultos” é muito melhor que vilipendia-los como os “adoradores do diabo”, isso é igualmente fora da realidade. O que essas pessoas escreveram sobre o yezidismo diz mais sobre os ocultistas ocidentais do que sobre os yezidis. É o mesmo que dizer “Não consigo encontrar mais do que um único parágrafo sobre os yezidis em nenhuma das minhas enciclopédias, e nunca conheci um Yezidi ou vivenciei diretamente sua fé de alguma forma; mas como sou um Snooticus Maximus XXI° da Ordo Assholius Genericus, automaticamente sei mais sobre o yezidismo do que qualquer outra pessoa— inclusive aqueles yezidis idiotas!”
Um exemplo muito melhor de como os ocultistas ocidentais podem lidar com as crenças e cultura yezidi seria a Feri Tradition of Traditional Witchcraft. Para mais informações sobre esse assunto em particular, veja The Blue God of Faery, uma entrevista com Storm Faerywolf em Patheos.com.
Alexander Hislop uma vez confundiu Melek Taus com Set, mas minha pesquisa me convenceu de que essa afirmação é falsa. Entretanto, continuo a ter uma grande empatia pelos yezidis. Aprecio sua teologia única, e me identifico no quão frustrante é quando as pessoas pensam que o seu deus é “maligno”. Meu coração também se parte toda vez que lembro das violações dos direitos humanos que os yezidis sofreram em massa. Esta foi a minha tentativa de esclarecer suas crenças, que foram grosseiramente deturpadas não só pelos cristãos e muçulmanos, mas também pelos satanistas e outros ocultistas ocidentais. Não há nada de errado em se inspirar na fé yezidi, se as pessoas sentirem o chamado para fazê-lo; afinal, os próprios yezidis afirmam que Melek Taus “pertence a todos”. Mas se uma pessoa se inspirar nos yezidis, ela deve se esforçar ao máximo para compreender os yezidismo em seus próprios termos, bem como para esclarecer que ela não é de fato um yezidi. Desde que os yezidis são um grupo étnico e uma religião, pessoas brancas não tem o direito de se incluir em sua cultura.
Mais Informações
YezidiTruth.Org
Who, What, Why: Who Are the Yezidis? (BBC News)
Apêndice ao Mais Informações:
Adicionado aqui pelo tradutor, recomenda-se também a leitura de Peacock Angel: The Esoteric Tradition of the Yezidis (Trad.: O Anjo Pavão: A Tradição Esotérica dos Yezidis, inédito no Brasil) de Peter Lamborn Wilson, publicado pela editora Inner Traditions no ano 2022, dois anos depois da publicação original do artigo.
Referências
Acikyildiz, B. (2010). The Yezidis: The history of a community, culture and religion. New York, NY: I.B. Tauris & Co.
Allison, C. (2001). The Yezidi oral tradition in Iraqi Kurdistan. Richmond, Surrey: Curzon Press.
Arakelova, V. (2004). Notes on the Yezidi religious syncretism. Iran & the Caucasus, 8(1), 19–28. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/4030889
Asatrian, G. (1999). The holy brotherhood: The Yezidi religious institution of the”brother” and the “sister” of the next world. Iran & the Caucasus, 3/4. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/4030767
Asatrian, G., & Arakelova, V. (2004). The Yezidi pantheon. Iran & the Caucasus, 8(2), 231–279. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/4030995
Guest, J.S. (1987). Survival among the Kurds: A history of the Yezidis. Abingdon, Oxon: Routledge.
Kreyenbroek, P.G. (2009). Yezidism in Europe: Different generations speak about their religion. Göttingen, Germany: Hubert & Co.
Link para o original: https://desertofset.com/2020/07/17/yezidis/
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