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“Há também outros (fantasmas), máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto ao mar e dos rios, e são chamados de Baetatá (Boitatá), que quer dizer “coisa de fogo”, que é o mesmo como se se dissesse “o que é todo fogo”. Não se vê outra coisa senão um facho cintilante correndo para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupiras: o que seja isso, ainda não se sabe com certeza.” – Joseph de Anchieta – Carta de São Vicente (X)
E assim, em 31 de maio de 1560 o Mboi-tatá é registrado em carta pelo jesuíta. Mbai, cousa, e tatá, fogo. Um fogo vivo que se desloca, deixando apenas um “facho cintilante”, que, seguindo a narrativa, atacava as pessoas. A imagem de um faixo serpenteando, da marcha ondulada pode ter sido responsável em associar a criatura a uma serpente.
No tupi existe uma palavra com a pronúncia levemente diferente de mba, que tem um significado diferente de “cousa”, que é mbói, que significa cobra. E assim, a Coisa-deFogo (mbai-tata) se torna a cobra de fogo mboi-tatá. Foi essa a imagem que se popularizou, o rastro ondulante feito de fogo que como uma serpente vai de um lado a outro. E é difícil encontrar registros sobre a criatura que, mesmo aludindo a ambas as origens (mbai e mboi) deixem de lado sua natureza e aparência ofídia.
Da linguagem nativa para o português o mboi virou boi (bos, bovis do latim), e como não existe diferença sensível na pronúncia das duas palavras surgiram descrições do Mboitatá como um touro, no livro terra catarinense temos a descrição de um animal “grande como um touro, com patas e um olho enorme no meio da testa, como um Cíclope”, e ainda ganhou de Lindolfo Xavier chifres, patas cuneformes e o olho flamejante. A figura do boi ainda se mescla com muitas outras crenças, o próprio lobisomem, em alguns estados, é descrito da seguinte forma: “Sai de casa à procura de algum recanto de estrada onde se deite. Espoja-se, requebra-se, faz trejeitos, até virar um bezerro negro de longas orelhas.” “……é bezerro negro . . . .. ostenta couro cabeludo de fazer cachos, além de cascos pequeninos, olhar fuzilante e; depois, dotado de força e agilidade extraordinárias.”, ainda existem relatos de criaturas que de dia são homens e de noite se tornam algo muito semelhante à descrição do centauro, metade boi ou cavalo e metade homem desfigurado.
Séculos depois de Anchieta o Mbai-tatá foi associado por outros folcloristas a outras criaturas de fogo em outros países e também não demorou para a associarem com o fogo-fátuo, que é tema universal no folclore, todos os países possuem em seu folclore explicação para a chama noturna que aparece e depois desaparece sem deixar vestígios
Boitatá e Fogo-Fátuo
O fogo-fátuo (ignis fatuus em latim), também chamado de fogo tolo ou, no interior do Brasil, fogo corredor ou joão-galafoice, é uma luz azulada que pode ser avistada em cemitérios, pântanos, brejos, etc. É a inflamação espontânea do gás dos pântanos (metano), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente.). O metano, em condições especiais de pressão e temperatura, em local não ventilado, começa a sair do solo e se misturar com o oxigênio do ar. Em uma porcentagem de aproximadamente 28%, o metano se inflama espontaneamente, sem necessidade de uma faísca. Forma uma chama azulada, de curta duração, gerando um pequeno ruído.
Muitos que avistam o fenômeno tendem a evacuar o local rapidamente, o que, devido ao deslocamento do ar, faz com que o fogo fátuo mova-se na mesma direção da pessoa. Os fogos fátuos dão origem a muitas superstições populares. Se acredita que são espíritos malignos que molestam ou fazem se extraviar os viajantes ou afastar alguém que tenta se aproximar. Há quem os consideram como presságios de morte ou desgraças.
Assim se torna como o feu-follet francês, Inlicht alemã, os pequenos anões sul-americanos Yakãundys (que quiere decir cabeza encendida), o fogo dos druidas, o fogo de Helena, de Santa Helena (antepassados do Sant’Elmo). É o Jack with a Lantern dos ingleses. Nesses casos associada às luzes loucas, que iludem viajantes atraindo-os para lamaçais e charcos ou os persegue na noite.
Em Portugal e em países americanos que passaram pela colonização portuguesa/espanhola como Argentina e Uruguai a conotação do fogo é outra, as chamam de as “alminhas”, ou “almas dos meninos pagãos” e ainda a “alma que deixou dinheiro enterrado”. Aqui fica claro que a figura luminosa é uma alma que por algum motivo não conseguirá descansar, seja a alma atormentada por não receber o batismo, ou a alma ainda tomada pela ganância que não consegue abandonar o tesouro enterrado, ainda existem relatos que a chamam de luz mala e vibora-de-fuego, e a associam com a alma de comadres e compadres que se apaixonaram, novamente o tormento que impede a alma de descansar. Em alguns registros assim que o ouro é desenterrado ou encontrado a criatura desaparece, a alma pode finalmente descansar.
Essa interpretação chegou a influenciar muitos relatos modernos do Boi-tatá, que afirmam que ele surge em locais onde existem tesouros ou ouro escondido, protegendo as riquezas de pessoas que tentem roubá-las.
Variações do Boitatá
No Brasil os nomes do Mboi tatá variam muito, no norte e nordeste é Batatão no sul Boitatá, Bitatá, Batatá e Baitatá. Biatatá na Bahia e em sergipe chega a ter o nome de Jean Delafosse ou ainda Jean de la foice.
Em um traço que se torna comum quando lidando com crenças e animais fantásticos (os monstros) é a mudança de personalidade ou função com o tempo. Uma característica da evolução do indivíduo é a de, quando confrontado por uma situação adversa, ou um inimigo, através da batalha o vence e se torna então superior a ele. Esse é um processo que aparece claro na metáfora do canibalismo, onde o vencedor devorava não apenas a carne, mas o sangue/alma/qualidades de seus inimigos que ele mesmo não teria, como forma de compensação de uma deficiência, ou para reforçar e incrementar uma qualidade que já tenha e seja fundamental para sua vida, se tornar mais forte, corajoso, etc. Essa característica é muitas vezes substituída por uma talvez menos brava ou mais prática onde ao invés de confrontar o monstro o tornamos algo menos aterrador, não através do desapego daquilo que nos causava temor, mas sim atribuindo a ele características que o tornem querido e mesmo necessário, ao invés de irmos ao ambiente dele e o vencermos o trazemos para o nosso habitat e lhe damos um cargo, um emprego. Monstros de gravata são menos assustadores e mesmo até bonitinhos. E assim com a ajuda de Couto de Magalhães, o M’boi Tata, a criatura que ataca e mata, cremando ou ferindo seriamente se torna o protetor das florestas:
“Mboitatá é o gênio que protege os campos contra aqueles que os incendeiam; como a palavra diz, Mboitatá é: “cobra de fogo”; as tradições figuram-na como uma pequena serpente de fogo que de ordinário reside nágua. Às vezes tranforma-se em um grosso madeiro em brasa denominado méuan, que faz morrer por combustão aquele que incendeia inutilmente os campos.”
– o selvagem, 1876 p.138
O consenso atual sobre o Boitatá
Um exemplo claro do que se tornou a imagem atual do Boitatá é o seguinte texto da Terra Brasileira:
“Antigo mito brasileiro cujo nome significa “coisa de fogo”, em tupi. Já referido por José de Anchieta em 1560, o boitatá é um gênio protetor dos campos: mata quem os destrói, pelo fogo ou pelo medo. como contam os tupis: “Quando manso isso brilha e não queima. Quando bravo isso queima e não brilha.” Aparece sob a forma de enorme serpente de fogo, na realidade o fogo-fátuo, ou santelmo, do qual emana fosfato de hidrogênio pela decomposição de substâncias animais.
“O Boitatá é o gênio que protege as campinas e sempre castiga os que põem fogo no mato. Quase sempre ele aparece sob a forma de uma cobra muito grande, com dois olhos enormes, que parecem faróis. Às vezes, surge também com a aparência de um boi gigantesco, brilhante.”
Nada mais longe do que os relatos indígenas originais como resgistrados por Anchieta. Ainda existem contos e lendas no sul que falam sobre uma enorme cobra que vivia junto ao rio, e que em épocas de chuva ou enchente saia para matar a comer animais, com o tempo os relatos mudaram, dando a ela a predileção apenas pelos olhos daqueles que encontrava. Olavo Bilac escreve em seu Últimas Conferências e Discursos, 1924:
“Uma das mais belas fábulas do Rio Grande do Sul é a da Boitatá. Boitatá, cobra de fogo, foi a princípio Boi-guassu, cobra grande, jibóia ou boa. […] quando houve o dilúvio, e sempre que há inundações, a Boiguaçu acordava pela enchente, entra a comer todos os outros animais. No sul a tradição complicou-se; a Boi-guassu mata todos os animais, não os come inteiramente: come somente os olhos da carniça; tantos olhos devora, que fica cheia de luz de todos oesses olhos: o seu corpo tranforma-se em ajuntadas pupilas rutilantes, bola de chamas, clarão vivo, boitatá, cobra de fogo.”
Mas esse Boitatá se tornou uma criatura completamente diferente daquela descrita pelos índios. O Mboi tatá tupi-guarani está atualmente despersonalizado. O Batatão, Batatal ou Batatá é um mito inteiramente europeu. Em São Paulo se chama Bitatá: “espírito dos não batizados”, crença que existe na ilha de Creta, na França e na Holanda. Como alma penada surge em todos os países europeus. Como diz Câmara Cascudo: “Não pensavam os indígenas brasileiros nessa direção.”
Ao considerarmos o fogo fátuo, não podemos deixar de lado os relatos indígenas sobre mortes, ou posteriormente a corpos carbonizados resultando do embate com a criatura. A única coisa que podemos afirmar com certeza sobre o Mboi tatá é o que Anchieta afirmou há mais de quatro séculos atrás:
“o que seja isso, ainda não se sabe com certeza.”
Dossiê de Criptozoologia de Herman Flegenheimer Jr.
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