Este texto foi lambido por 109 almas esse mês
por Albertus Grosheniark
Na tradição cabalística, a Árvore das Sefirot é um espelho da alma humana e da história sagrada de Israel. Cada Sefirá expressa uma dimensão do Divino manifestada na criação e essas forças não se revelam apenas em abstrações, mas encarnam-se em figuras vivas, nos grandes personagens da Torá. Assim, os patriarcas, profetas e líderes bíblicos são também arquétipos espirituais que corporificam as dez emanações divinas. Estudar cada um à luz da Sefirá que representa é descobrir como a estrutura do mundo interior se projeta nas ações humanas e como o drama da revelação divina se desenrola na vida real. Meditar sobre suas vidas é meditar sobre a Árvore da Vida. Esta jornada, que vai de Abraão a David, é portanto um estudo de história sagrada e um verdadeiro caminho de autoconhecimento e de acesso às potências espirituais que moldam o ser e o tempo.
David e Malkhut
Entre os personagens bíblicos, nenhum representa de modo mais pleno a Sefirá de Malkhut do que o rei David. A tradição cabalística, especialmente em sua vertente profética e mística, reconhece em David não apenas o fundador de uma dinastia, mas a encarnação vivente do princípio da receptividade divina e da soberania terrestre. Malkhut, como sabemos, é a décima e última Sefirá da Árvore da Vida, e nela se manifesta o reflexo de todas as outras. É o vaso, a matriz, o trono e o campo onde se realiza o propósito de todas as emanações superiores.
David, o filho de Jessé, surge nas Escrituras como o mais improvável dos reis: um jovem pastor, esquecido até mesmo por seu pai quando o profeta Samuel vem ungir o novo rei de Israel (I Samuel 16). Ainda assim, é este jovem de coração ardente, guerreiro destemido e poeta inspirado quem será escolhido por D’us. David é, ao mesmo tempo, o guerreiro que vence Golias, o rei que unifica as tribos, o amante de Batseva e o autor dos Tehilim, os Salmos. Sua complexidade não é sinal de contradição, mas sim reflexo da própria natureza de Malkhut, que nada possui de si mesma e, por isso mesmo, pode conter tudo.
Malkhut é chamada também de Shekhinah, a presença divina imanente, que sofre com o exílio do povo de Israel e compartilha de suas dores. David, em sua vida, vive intensamente esta dimensão. Ele experimenta tanto a ascensão ao trono como a queda moral, tanto a glória da conquista como o sofrimento da perseguição por Saul e a revolta de seu próprio filho, Absalão. Sua vida é um espelho da Shekhinah em exílio luminosa em sua origem, mas marcada por cicatrizes e por uma contínua busca de retorno.
As qualidades de David são também as de Malkhut em sua perfeição: humildade profunda (pois Malkhut nada possui de si), receptividade à luz divina, e capacidade de governar com sabedoria e justiça. Ele é o servo fiel, que canta “Sou verme e não homem” (Salmo 22:6) e ao mesmo tempo declara “D’us me cingiu de força” (Salmo 18:33). Esta oscilação não é fraqueza: é a dança sagrada de Malkhut, que sobe e desce conforme as outras Sefirot a influenciam.
Contudo, como Malkhut depende das Sefirot superiores, David também mostra os perigos de um trono desconectado da luz superior: quando ele se entrega ao desejo com Batseva, ou quando ordena o censo do povo sem permissão divina, vemos a distorção da realeza Malkhut em sua queda. A lição cabalística aqui é clara: a realeza que não recebe sua nutrição das fontes superiores (como Tiferet e Yesod) torna-se tirania ou vazio.
Por fim, David é também raiz do Mashiach, pois Malkhut, embora última, é o ponto de partida para a Redenção. Como ensina o Zohar, “David é o rei, e o rei é Malkhut” ele não apenas governa; ele é o campo onde a Vontade Divina se realiza. Nele, a terra se torna trono para o céu.
Assim, para o estudante de Cabalá, meditar sobre David é penetrar no mistério da realeza divina em sua forma mais humana onde o trono de D’us repousa não nos céus, mas no coração de um homem que soube, com todas as suas falhas, ser o canal da luz no mundo da ação.
José e Yesod
Na estrutura das Sefirot, Yesod ocupa um lugar de ligação vital: é o canal pelo qual a abundância das esferas superiores desce para se manifestar plenamente em Malkhut. Yesod é o pilar do equilíbrio, o princípio do vínculo, da transmissão, da integridade e da sexualidade sagrada. Ele é a ponte que transforma potencial em realidade, a base sobre a qual o edifício da realidade repousa. Não por acaso, a tradição cabalística identifica Yosef HaTzadik (José, o Justo) como o arquétipo de Yesod.
A história de José, filho de Jacó e Raquel, é uma narrativa de extremos e reconciliações. Vendido por seus irmãos, escravizado no Egito, tentado pela esposa de Potifar, lançado ao cárcere injustamente e, no entanto, elevado ao segundo posto mais alto do império egípcio José permanece íntegro. Essa inteireza, ou emet, é o sinal distintivo de Yesod. Ele é o tzadik, o justo, pois conserva sua pureza interior mesmo nos contextos mais profanos.
Yesod, como sefirá, é associada ao órgão reprodutor, não apenas no sentido físico, mas sobretudo espiritual: é o lugar da aliança (brit), onde a transmissão da luz divina encontra seu canal legítimo. José, ao recusar as investidas da esposa de Potifar, protege esse canal. A tradição midráshica afirma que, naquele momento, a imagem de seu pai Jacó apareceu diante de seus olhos um lembrete da linhagem espiritual que ele representava e da responsabilidade de não romper o elo. O tzadik de Yesod é aquele que conserva o fluxo, mesmo quando o mundo tenta interrompê-lo.
A maior virtude de José é a fidelidade ao propósito interior. Mesmo entre os idólatras do Egito, ele mantém seu vínculo com D’us. Quando interpreta os sonhos de Faraó, ele afirma: “Não está em mim; D’us dará a resposta” (Gênesis 41:16). Isso é Yesod em sua pureza: o canal que não retém para si a luz que recebe, mas a transmite com clareza e humildade.
No entanto, os desafios de Yesod são igualmente profundos. O tzadik que falha em sua função pode tornar-se um canal para a destruição. A sexualidade, que em Yesod é santa e transmissora de vida, pode ser pervertida em luxúria ou manipulação. José triunfa onde outros falhariam, mas o risco está sempre presente: quando José se torna senhor de toda a economia egípcia, podemos perguntar há ali um risco de domínio, de controle excessivo? Yesod, por sua natureza de “base”, pode tornar-se o fundamento de impérios tanto espirituais quanto materiais. O desafio é sempre permanecer como canal, não como dono da fonte.
Na Cabalá, o tzadik é chamado “fundamento do mundo” (Provérbios 10:25), e isso reflete-se na tradição mística de que o universo persiste por causa de trinta e seis tzadikim ocultos. José, nesse sentido, é mais do que um herói bíblico ele é um modelo do homem que transmite a luz sem obscurecê-la, que resiste ao exílio e permanece inteiro, conectando Céu e Terra.
Yesod, quando equilibrado, une as esferas superiores a Malkhut. Assim também José une seus irmãos e, por extensão, as tribos dispersas. Ele é ponte, reconciliador, fundamento do templo futuro. Para o cabalista, José não é apenas uma figura histórica: ele é o protótipo do tzadik, aquele cuja retidão sustenta o mundo e prepara o caminho para a união divina.
Moisés e Netzach
A Sefirá de Netzach, cujo nome significa “vitória”, mas também “eternidade”, está profundamente associada ao poder de condução, de persistência e de triunfo espiritual sobre o mundo material. Netzach representa o impulso do líder que avança apesar da oposição, o guerreiro da verdade, o canal da ação prolongada que transforma o tempo em veículo da vontade divina. Entre os personagens da Torá, nenhum encarna essa qualidade de maneira mais completa do que Moshe Rabbeinu, Moisés, o libertador, o legislador, o profeta supremo de Israel.
A vida de Moisés é uma marcha constante contra todas as forças da resistência. Desde o início, sua trajetória é marcada por confronto e superação: salvo das águas, cresce no palácio do faraó mas recusa o conforto da corte; foge para Midiã, mas é chamado por D’us na sarça ardente para retornar ao Egito e libertar seu povo. A essência de Netzach é exatamente essa: a missão que transcende os obstáculos, o impulso divino que avança sem se deter, movido por uma convicção que ultrapassa o plano humano.
Moisés manifesta Netzach ao confrontar o faraó não uma, mas dez vezes, cada praga sendo um golpe contra as forças de Mitzrayim (Egito), símbolo do aprisionamento espiritual. Mesmo diante da dúvida dos israelitas, da dureza do coração do faraó, da resistência de seu próprio povo no deserto Moisés continua. Netzach é essa força que não busca resultados imediatos, mas que se ancora na promessa divina e marcha para o cumprimento de um propósito eterno.
Mas Netzach também é a persistência da liderança: Moisés conduz o povo durante quarenta anos, sem descanso. Ele carrega os fardos de uma nação ingrata, intercede diante de D’us após o pecado do bezerro de ouro, suplica pelo povo mesmo quando está exausto, mesmo quando clama “mata-me, peço-Te” (Números 11:15). A liderança de Netzach é uma liderança sacrificada não busca glória pessoal, mas realiza a missão que lhe é confiada. E Moisés, apesar de sua grandeza, é o mais humilde dos homens (Números 12:3), mostrando que a vitória verdadeira de Netzach é espiritual, não egóica.
No entanto, Netzach, quando não equilibrado com Hod (a sefirá paralela que representa rendição e reconhecimento), pode degenerar em dureza e inflexibilidade. Vemos isso no episódio das águas de Merivá, quando Moisés, ao invés de falar à rocha como D’us ordenara, a fere com o cajado. Por esse erro, ele é impedido de entrar na Terra Prometida. Esse momento é chave na compreensão cabalística de Netzach: o líder que já venceu tantas batalhas deve, em determinado momento, render-se à nova ordem ao Hod à fala, à suavidade. Moisés, símbolo da força profética e da ação, não consegue transicionar plenamente à etapa final da revelação.
Moisés é também o portador da Torá a transmissão da vontade eterna de D’us. E aqui encontramos outro aspecto profundo de Netzach: a eternização da verdade. Netzach não se contenta em vencer o inimigo externo; ele quer implantar a verdade no tempo, gravar a revelação nas tábuas da lei, escrever a Torá como testemunho eterno. O que é a Torá senão a vitória da Palavra divina sobre o caos?
A Cabalá ensina que Netzach é o braço direito da ação, o poder de conquista da Chesed canalizado no mundo. Moisés age em nome da bondade divina, mas age com força, com clareza, com determinação inabalável. Ele é o modelo do líder que não se pertence, cuja vida é inteiramente devotada ao serviço do alto.
Assim, estudar Moisés é aprender a arte sagrada da persistência: a vitória que não se mede em troféus, mas em fidelidade. Netzach é a eternidade que se revela no tempo, e Moisés é seu instrumento mais fiel.
Aarão e Hod
A Sefirá de Hod, cujo nome significa “esplendor”, também carrega os sentidos de humildade, rendição, e reconhecimento. Se Netzach é o braço direito da ação e da vitória, Hod é o braço esquerdo da entrega e da escuta. Representa a capacidade de se anular diante da verdade maior, de reconhecer limites, de ser canal da beleza não por força, mas por presença pacificada. Entre os grandes personagens bíblicos, Aharon HaKohen (Aarão, o Sumo Sacerdote) é aquele que mais perfeitamente incorpora o princípio de Hod.
Aarão, irmão mais velho de Moisés, é uma figura fascinante de equilíbrio e silêncio. Ele é aquele que, ao contrário de Moisés que clama aos céus, trabalha nos bastidores, harmonizando o povo, construindo pontes, mantendo a coesão. Hod não brilha por si mesmo é o brilho que reflete o que está acima. Assim é Aarão: reflexo do sacerdócio superior, servo da paz (rodef shalom), reconciliador incansável.
A tradição rabínica enfatiza seu papel como pacificador. Pirkei Avot (1:12) diz: “Sê como os discípulos de Aarão: ama a paz, persegue a paz, ama as criaturas e aproxima-as da Torá.” Esta é a essência de Hod não uma luz que conquista, mas uma luz que atrai. Hod é o esplendor da modéstia, e Aarão é seu arquétipo.
Na estrutura do Mishkan (Tabernáculo), Aarão representa o sacerdote que serve, não aquele que domina. O trabalho sacerdotal é minucioso, repetitivo, voltado ao detalhe e à pureza ritual tudo reflexo de Hod, que desce até os menores níveis da realidade para elevá-los. O Kohen Gadol, ao entrar no Santo dos Santos em Yom Kipur, o faz com reverência e temor, não com grandiloquência. Este é o segredo de Hod: a grandeza que se revela na autoanulação.
Contudo, como todas as Sefirot, Hod também possui desafios e riscos. A rendição pode tornar-se passividade. Vemos isso tragicamente no episódio do bezerro de ouro. Quando o povo, em desespero pela demora de Moisés, exige um deus visível, Aarão cede: “Arrancai os pendentes de ouro…”, e o ídolo é formado (Êxodo 32). A Cabalá lê esse momento como o colapso de Hod sem o equilíbrio de Netzach a rendição sem resistência, a escuta sem discernimento. Aarão, ao tentar preservar a paz, compromete a verdade.
E ainda assim, é ele quem será escolhido como sumo sacerdote, porque Hod é essencial para a reconciliação do mundo com o divino. A expiação só é possível quando há reconhecimento (hoda’ah), e esse é o campo de Hod: o lugar onde o ser humano reconhece sua pequenez e, paradoxalmente, por isso mesmo, torna-se canal do sagrado.
Além disso, Aarão carrega o julgamento sobre o coração o Choshen Mishpat, o peitoral com as doze pedras das tribos um símbolo poderoso de Hod como portador da multiplicidade em unidade. Ele não julga com ira, mas com compaixão. Ele carrega Israel em seu coração.
Na Cabalá, Hod é associado à profecia e à poesia não a profecia ardente de Moisés, mas a profecia silenciosa, como aquela que inspirava os Levitas no canto do Templo. Aarão, com seu serviço silencioso, é o precursor desse esplendor discreto que sustenta os mundos por sua harmonia.
Meditar sobre Aarão é contemplar o poder da escuta sagrada, a beleza da presença humilde, a força do homem que não busca ser o centro, mas o canal da unidade. Hod é a resposta ao orgulho espiritual: é o esplendor que nasce do reconhecimento.
Jacó e Tiferet
No coração da Árvore da Vida se encontra a Sefirá de Tiferet, cujo nome significa “beleza”, mas cuja essência é muito mais do que estética. Tiferet é o ponto de equilíbrio entre Chesed (bondade expansiva) e Gevurah (rigor restritivo), a harmonia entre opostos que revela a profundidade da verdade. É a sefirá da compaixão, da verdade equilibrada, e da beleza espiritual que surge quando forças conflitantes são unificadas. A alma patriarcal que encarna Tiferet por excelência é Yaakov Avinu, Jacó, o terceiro dos avot.
Jacó é o mais complexo dos patriarcas. Ao contrário de Abraão (amor incondicional) e de Isaac (temor absoluto), Jacó vive no entremeio, no dinamismo da vida real, onde é necessário navegar entre desafios éticos, dilemas emocionais e situações ambíguas. Ele começa sua trajetória como o “homem das tendas” estudioso, contemplativo mas é forçado a entrar no mundo da ação, do conflito, da estratégia, do exílio. A Cabalá vê nisso não fraqueza, mas precisamente o dom de Tiferet: a capacidade de integrar a espiritualidade com a realidade.
Desde o nascimento, Jacó já carrega o selo da dualidade. Ele segura o calcanhar de Esaú, seu irmão gêmeo, e mais tarde usará de astúcia para obter a primogenitura e a bênção paterna. Essa complexidade é muitas vezes mal interpretada. Na visão cabalística, Jacó não é trapaceiro ele é o Tiferet, aquele que equilibra forças superiores com os desafios da terra. Ele representa a emet, a verdade mas não uma verdade rígida e destrutiva, e sim uma verdade harmonizadora.
Tiferet é também o lugar da misericórdia, onde Chesed e Gevurah encontram um terceiro caminho. A vida de Jacó é repleta de sofrimentos: ele é enganado por Labão, perde sua amada Raquel ao dar à luz Benjamim, acredita que seu filho José foi morto. Ainda assim, ele mantém sua fé, sua fidelidade ao caminho de D’us, e sua integridade interna. Ele é chamado tam íntegro. Esta é a essência de Tiferet: a beleza que se revela não na ausência de sofrimento, mas na forma como se mantém o eixo mesmo em meio ao caos.
Jacó também é aquele que luta com o anjo, e ao amanhecer recebe o nome de Israel “aquele que luta com D’us e com os homens e prevalece” (Gênesis 32). Eis Tiferet em sua glória: o ser humano que não nega o conflito, mas que o integra, e transforma a luta em revelação. Jacó não sai ileso: sai mancando pois Tiferet carrega cicatrizes mas sai abençoado. Essa beleza que nasce da luta sublimada é a própria assinatura da sefirá.
Como pai das doze tribos, Jacó também representa o aspecto centralizador de Tiferet. Ele é o tronco que conecta os ramos. Diferente de Abraão (pai de Ismael e Isaque) e Isaac (pai de Jacó e Esaú), apenas Jacó tem todos os filhos dentro da aliança. Ele é o “leito completo” (mitato shelema), o que simboliza que a harmonia foi finalmente alcançada uma harmonia que não exclui a multiplicidade, mas a contém e organiza.
Entretanto, os desafios de Tiferet não são menores. O perigo está na idealização, em tentar harmonizar onde não há base para unidade, ou em negar conflitos legítimos em nome da “beleza”. Jacó experimenta isso ao mostrar preferência por José, gerando ciúmes entre os irmãos e preparando o terreno para a venda ao Egito. A lição é clara: até a beleza da verdade deve ser temperada com vigilância e sensibilidade às dinâmicas humanas.
Tiferet é também associado à Torá escrita, ao corpo espiritual da lei revelada não a espontaneidade do amor (Chesed), nem o rigor da justiça (Gevurah), mas a compaixão estruturada, que ilumina o mundo com equilíbrio. Jacó, com sua jornada completa da casa de seus pais até o Egito, do exílio à redenção parcial revela o caminho do tzadik que carrega o mundo nos ombros com beleza e verdade.
Contemplar Jacó é aprender a arte do centro, o segredo da compaixão que não cede ao caos nem à dureza, mas que organiza o cosmos à imagem da beleza divina. Ele é a árvore da vida que cresce no meio do campo, com raízes no céu e frutos no tempo.
Isaac e Gevurah
Se Jacó é o eixo do equilíbrio (Tiferet), seu pai, Yitzchak Avinu (Isaac), representa a Gevurah, a Sefirá da força, restrição, temor reverente (yirah) e autocontenção sagrada. Gevurah não é violência; é o poder da limitação, a disciplina que molda, o julgamento que purifica, a energia que refreia para revelar a verdade. Na estrutura da Árvore das Sefirot, Gevurah está à esquerda de Chesed e enquanto Chesed se derrama livremente, Gevurah delimita, define e protege. Isaac é a alma que carrega este poder em sua forma mais sutil e elevada.
A história de Isaac, no texto bíblico, é silenciosa, interior, densa. Ele é o único dos patriarcas que não sai da Terra de Israel, símbolo de sua imobilidade sagrada. Diferente de Abraão, que viaja, e de Jacó, que luta, Isaac permanece. Gevurah é a sefirá da introspecção, do recolhimento, da resistência silenciosa, e Isaac é seu espelho.
O episódio mais emblemático é, sem dúvida, o da Akedat Yitzchak o amarrar de Isaac (Gênesis 22). Tradicionalmente lido como uma prova da fé de Abraão, o Midrash e os cabalistas olham também para Isaac: ele não resiste. Um homem adulto forte, consciente entrega-se voluntariamente ao altar, num ato de restrição suprema de sua própria vontade. Esse é o ápice da Gevurah: a força que aceita ser limitada em nome de um propósito maior. Isaac se torna um sacrifício vivo, e por isso sua alma é considerada tão elevada que o Zohar diz que, naquele momento, ele “ascendeu ao Gan Eden”.
Gevurah, como poder divino, é também a fonte da justiça. Isaac, em sua vida, representa a justiça da continuidade. Ele cava poços como seu pai, mas os reabre com persistência, nomeando-os como antes. Ele mantém a tradição, não cria algo novo e nisso há profundidade: manter a herança com fidelidade é também um tipo de força espiritual, pois requer resistência ao tempo, à mudança superficial, ao esquecimento.
No entanto, os desafios da Gevurah se manifestam também em Isaac: sua parcialidade por Esaú, aquele que representa o vigor físico, a caça, a força crua. Isaac, imerso no mundo da interioridade, não enxerga a alma de Jacó com clareza até que Rebeca interfira. A Gevurah que não é equilibrada por Tiferet pode tornar-se dureza cega, julgamento que não percebe o espírito por trás da forma. É preciso a integração de Rebeca (chave de Biná, o entendimento) e de Jacó (Tiferet) para que a bênção encontre seu destino correto.
Isaac também é associado à oração da tarde (Minchá) a mais breve, discreta, silenciosa das três tefilot diárias. O Zohar ensina que ela é a mais poderosa exatamente por ser a mais restrita. Gevurah não precisa se derramar; sua força está em sua concentração. Isaac fala pouco na Torá, mas cada palavra carrega peso. Ele é o homem do campo espiritual, aquele que planta e colhe onde os outros não veem.
Na Cabalá, Gevurah está ligada ao fogo e o fogo pode purificar ou consumir. Isaac é aquele que passa pela provação do fogo (a Akedá) e sai mais puro, mais elevado. Ele carrega essa potência dentro de si, e por isso mesmo é pai de um futuro em que a justiça divina será refinada por compaixão. A severidade de Isaac prepara o caminho para o equilíbrio de Jacó.
Meditar sobre Isaac é entrar no templo do silêncio, onde o ruído do mundo não penetra, e onde a santidade não se revela em palavras, mas em limites sagrados. Gevurah é a coluna da esquerda, o lado da reverência, e Isaac é seu guardião o tzadik que mostra que a contenção é uma forma de criação, que a disciplina é uma via para o amor verdadeiro.
Abraão e Chesed
No topo da coluna direita da Árvore da Vida está a Sefirá de Chesed, a bondade expansiva, o amor incondicional, a generosidade sem limites, a abertura para o outro como expressão da luz divina. Essa é a primeira força ativa após o nascimento do mundo interior em Biná é a doação que sustenta a criação. E quem melhor representa esta força primordial do amor do que Avraham Avinu, o pai do povo de Israel, o “homem da tenda aberta em todas as direções”?
A vida de Abraão é uma encarnação contínua do princípio de Chesed. Desde o início de sua jornada, quando ouve a ordem divina “Lech Lecha” “vai para ti” (Gênesis 12:1), Abraão torna-se o canal da benevolência divina no mundo dos homens. Ele sai de Ur Casdim, rompe com a idolatria de sua geração e se torna o primeiro monoteísta não apenas em fé, mas também em ação sagrada.
Chesed é a energia que se espalha e Abraão vive isso com radicalidade. Ele planta árvores em Beer Sheva e proclama ali o Nome de D’us, recebendo todo viajante com pão, água e sombra. A tradição midráshica nos conta que sua tenda tinha quatro portas, uma para cada direção do mundo, para que ninguém ficasse sem acesso. Esta hospitalidade não era apenas ética, mas mística: Abraão via a presença de D’us no outro, mesmo no estrangeiro, mesmo no idólatra. Ele era o canal de uma bondade que reflete o amor infinito do Criador.
Chesed também representa o amor parental e aqui encontramos o paradoxo da vida de Abraão. Embora seja o arquétipo da generosidade, sua vida é marcada pela espera dolorosa de um filho. O homem que dá a todos, não pode dar a si mesmo descendência até que, em sua velhice, nasce Yitzchak. E é nesse ponto que a grandeza de Chesed se revela em sua capacidade de submissão à vontade superior: Abraão está disposto a sacrificar seu próprio filho, o filho da promessa, no episódio da Akedat Yitzchak.
Como entender essa aparente contradição? O homem do amor estaria disposto a um ato de aparente crueldade? A Cabalá ensina que Chesed puro precisa, em certos momentos, ser transcendido pelo compromisso com a totalidade da Vontade Divina. Abraão demonstra aqui que seu amor não é sentimentalismo é um canal limpo. Ele não ama Isaac por si, mas por ser dom de D’us. Por isso, pode devolvê-lo. E é exatamente por essa pureza que ele é interrompido: D’us não quer o sacrifício, mas a integração de Chesed com Gevurah.
Outro ponto essencial da Chesed de Abraão é sua relação com Sodoma. Quando D’us revela que destruirá as cidades pecadoras, Abraão intercede por elas, clamando: “Não fará justiça o Juiz de toda a Terra?” (Gênesis 18:25). Esta é a essência de Chesed: ele procura a faísca de mérito mesmo no mais indigno, busca a redenção mesmo no que parece irredimível. Chesed vê o possível, não o atual.
Contudo, como toda Sefirá, Chesed também tem seu perigo. A bondade ilimitada, quando não equilibrada por Gevurah, pode tornar-se permissividade, dissolução de fronteiras. O amor sem julgamento pode cegar. Por isso, a tradição vê em Isaac (Gevurah) o necessário contraponto de Abraão o fogo que dá forma à água. A tenda de Abraão precisa do altar de Isaac para que o amor seja também justo.
Na Cabalá, Chesed é também o princípio da expansão criadora e é por isso que Abraão é chamado Av Hamon Goyim, “pai de muitas nações”. Sua bondade não é exclusivista. Ele planta não apenas para Israel, mas para toda a humanidade. Ele representa a raiz da aliança universal e é por isso que, até hoje, tradições religiosas tão diversas o reivindicam como pai espiritual.
Meditar sobre Abraão é beber da fonte do amor divino que não exclui, que convida, que compartilha. Chesed é o braço estendido do Céu para a Terra, e Abraão é sua personificação: o homem que amava D’us ao ponto de amar todos os que D’us criou.
Alimente sua alma com mais:

Conheça as vantagens de assinar a Morte Súbita inc.