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por Yair Alon[1]
Cabalá (com acento no último “a”) é um termo hebraico usado para se referir a uma escola de pensamento e uma filosofia de vida com pelo menos 2.000 anos de história.
Se falarmos em termos literais, o termo Cabalá significa “recebimento” ou “recepção”, pois na origem os ensinamentos da Cabalá eram passados apenas oralmente, de mestre para aluno, e, assim, eram “recebidos” apenas por alguns poucos. Nesse sentido, você vai ver muita gente definindo a Cabalá como uma “tradição oral”.
Os ensinamentos da Cabalá são ligados a tentar entender como funciona e está estruturado o Universo em que vivemos e qual é o papel do ser humano na vida.
Por esse motivo, muitas vezes a Cabalá foi associada com a religião, com o esoterismo ou o misticismo, embora nenhum desses termos seja tecnicamente correto para descrever a Cabalá.
Como a Cabalá entende o Universo e a vida?
Tentando resumir a questão de modo simples: a Cabalá ensina que o Universo em sua totalidade, e em todos os seus detalhes – incluindo a nós – foi criado por um Criador.
Como parte inerente da estrutura desse Universo, esse Criador existe em um “estado” bastante distante e remoto de nós seres humanos.
No entanto, a Cabalá também ensina que essa distância entre criatura e Criador pode – e deve – ser superada.
Assim, por meio de nossos atos e condução da vida, conseguimos viver uma existência mais elevada. É por isso que anteriormente falei que a Cabalá pode ser entendida como uma “filosofia de vida”.
Mas se a Cabalá fala dessas coisas, ela não é uma religião?
Não! Porque uma religião sempre terá um conjunto de obrigações que o fiel precisa praticar e seguir em sua vida, além de crenças que ele deve ter sem duvidar ou questionar (os chamados “dogmas”). A Cabalá não tem nem uma nem outra coisa.
A Cabalá não diz que somos obrigados a nada, e nem espera que acreditemos de maneira cega em nada – tudo o que a Cabalá quer é, através do conhecimento, entender melhor a essência do Criador e a relação Dele com esse mundo e conosco, seres humanos.
De onde a Cabalá tirou os seus ensinamentos?
A surpreendente resposta é: dos textos sagrados da tradição judaica.
“Poxa, Yair, mas então tá vendo? Cabalá é religião. É judaísmo!”
E a resposta, de novo, é: NÃO!
Por quê?
Porque os cabalistas desenvolveram o seu próprio método de leitura e transmissão desses textos, e essa leitura é radicalmente diferente da leitura judaica.
É como se a Cabalá e o Judaísmo fossem duas pessoas assistindo a um mesmo filme. O filme é igual, mas cada uma entenderá o filme de um modo, e o que uma das pessoas considerar importante no filme não necessariamente será considerado relevante para a outra pessoa.
Então, tanto a Cabalá como o Judaísmo consideram os cinco livros do Pentateuco (chamados, em hebraico, Torá) como importantes, mas a leitura que se faz desses livros é diferente em cada um dos casos.
Vamos ver um exemplo dessas diferentes leituras?
Na Torá está escrito o seguinte: “não cozinharás o cabrito com o leite de sua mãe” (Êxodo 23:19; 34:26 e Deuteronômio 14:21).
Os teóricos e filósofos do judaísmo, dirão algo mais ou menos desse tipo:
“A Torá foi escrita por Deus e nela Deus deu vários mandamentos para que o homem cumpra. Em um desses mandamentos, Deus ordenou que não preparássemos nossa comida misturando carne com leite, pois no passado havia um costume pagão de comer esses dois tipos de alimento misturados. Para que não tenhamos práticas parecidas com a dos idólatras, o mandamento foi estabelecido. Hoje em dia o objetivo pelo qual o mandamento foi dado pode não mais existir, mas como se trata de um mandamento divino, devemos continuar a cumpri-lo; e cada vez que cumprimos o mandamento estamos sendo fiéis a Deus e praticando o ensinamento moral e ético que existe por trás das circunstâncias originais”.
Não é de se espantar que esse tipo de argumentação tem se mostrado, historicamente, como um excelente modo de fazer as pessoas cada vez menos interessadas na prática da religião e no seguimento das leis bíblicas, pois a maioria das pessoas não vê o sentido de cumprir mandamentos que se tornaram relíquias históricas simplesmente porque “está escrito”.
Como os cabalistas leem o mesmo texto?
“A Torá foi escrita pelo Criador do Universo e nela estão todos os ensinamentos a respeito do Universo e do ser humano. Esses ensinamentos, no entanto, estão codificados nos mandamentos divinos. Assim, para entendermos corretamente a Torá e os mandamentos é preciso entender a real essência do que está sendo ordenado. Nenhum dos mandamentos da Torá se refere ao mundo físico, mas trata de “energias sutis” que existem no Universo. Assim, quando um dos mandamentos dados pede que não se coma carne com leite, se está ensinando que não devemos misturar energias opostas como a da vida (representada pelo leite, que nutre e amamenta) e a da morte (representada pela carne, que contém sangue e que veio de um animal que foi morto). Por esse motivo, a Torá é eterna, pois os seus ensinamentos valem para qualquer época e para qualquer ser humano; e cada vez que entendemos o significado profundo dos mandamentos, e o praticamos em nossa vida, estamos transformando o mundo e fazendo com que o Universo seja um lugar mais harmônico e equilibrado”.
Deu para perceber como a abordagem é radicalmente distinta?
A Cabalá ensina que os textos bíblicos não devem ser lidos literalmente (aliás, quantas guerras e conflitos não foram causados por isso ao longo da história humana?), mas que devem ser compreendidos de maneira mais profunda.
Para a Cabalá, toda a Torá têm por único objetivo nos ensinar como funciona o nosso mundo e como podemos viver em maior harmonia e equilíbrio, o que nos torna pessoas “mais elevadas”.
Seguir os mandamentos, para a Cabalá, significa decodificar cada ensinamento da Torá e usá-lo para promover uma mudança do pensamento e das emoções humanas. Cada mandamento bíblico tem por objetivo promover uma transformação interna que, depois, se manifesta externamente na realidade, o que, em última instância, transforma positivamente o mundo.
É por isso que nós cabalistas dizemos que cada ser humano tem que se tornar uma força ativa na construção do Universo, ajudando a fazer deste mundo um local melhor, em todos os sentidos.
Assim, a Cabalá defende que uma das coisas mais importantes que temos que aprender é como funciona o Universo, quem é o seu Criador, e qual é o nosso papel nesse mundo.
Ao estudar sobre esses temas, o resultado inevitável é que nos tornamos seres humanos mais confiantes, seguros, felizes e libertos – pois ganhamos um senso de propósito, começamos a entender como funciona a vida e como melhor aproveitá-la.
Os Livros Base da Cabalá
Vimos o que é a Cabalá e o que elas nos ensina. Mas toda sabedoria do mundo deriva seus ensinamentos de algum lugar: então de onde vem a sabedoria cabalística? Onde eu posso encontrar os principais ensinamentos da Cabalá?
A Torá
Então, a primeira grande fonte de ensinamento cabalístico – e a maior delas, disparado – é, obviamente, a Torá. Nesse sentido, um dos melhores modos de começar a se aprofundar na Cabalá é estudar a Torá com comentários de algum cabalista. Dois dos mais famosos para isso são Ibn Ezra, e o Ramban (Nachmânides). O estudo da Torá, além de ser o mais fundamental, tem uma excelente vantagem: existe um sistema de leitura semanal – as parashiot – que fazem com que se leia um pouquinho da Torá a cada semana e que o texto todo seja concluído em um ano! É como ter um cronograma de aulas ao iniciar um curso, o que torna o estudo da Torá muito didático.
O Zohar
Se falarmos de usar comentários cabalísticos sobre a Torá, chegamos à segunda grande fonte de ensinamentos da Cabalá: o Zôhar.
O Zôhar foi escrito no século II por um dos maiores cabalistas que já existiu, o Rabi Shimon bar Iochai, e se trata justamente de comentários cabalísticos sobre a Torá. Não é à toa que o Zôhar está dividido exatamente conforme as parashiot que mencionamos, ou seja, seguindo as mesmas porções semanais que já se usa para ler a Torá.
Cabe, no entanto, um aviso: o Zôhar não é um livro fácil de se ler, e está longe de ser “didático”. Quando comparamos os comentários do Zôhar com o de outros cabalistas (como os citados Ibn Ezra e Nachmânides), fica logo muito fácil ver que é quase impossível ler o texto sozinho, e que o ideal é ter um professor que auxilie o entendimento.
Hoje em dia eu estou realizando a primeira tradução integral do Zôhar ao português (diretamente do original aramaico) e, assim, o texto talvez esteja mais acessível para muitos do que jamais esteve ao longo de anos. Mas, ainda assim, fica o aviso. Mesmo com o texto traduzido em português, a compreensão do seu conteúdo é complexa e dificilmente pode ser levada a cabo sem auxílio.
Sêfer Ietsirá
Seguindo com a lista de obras base para aprender Cabalá, chegamos a duas outras fontes de ensinamentos cabalísticos: o Sêfer Ietsirá e o Bahir
Atribuído ao Patriarca Abraão (e, portanto, um livro anterior à própria Torá), o Sêfer Ietsirá ensina como o mundo foi criado com as letras do alfabeto hebraico e como o entendimento das letras e suas energias permitem entender e até manipular o mundo ao nosso redor.
Bahir
O Bahir é atribuído a um cabalista chamado Nechunia ben Hacaná (século I). Trata-se basicamente de comentários ao livro de Gênesis, e foi escrito na forma de um diálogo entre mestre e discípulo.
É um livro que explica o significado mais profundo de alguns versículos bíblicos e que também se debruça sobre as letras do alfabeto hebraico e assuntos ligados a elas (vogais, marcas de cantilação e sua forma física).
A Torá com os três livros mencionados são considerados os mais clássicos e fundamentais da Cabalá. Repare, no entanto, que o que foi dito para o Zôhar se aplica aos outros dois livros. Todas essas obras devem ser estudadas com comentários ou com a ajuda de um professor. Apesar de serem livros clássicos e fundamentais, isso não significa que sejam livros didáticos ou fáceis de ler, muito pelo contrário. Muitas vezes os textos cabalísticos eram escritos propositalmente obscuros e difíceis, para que a informação não fosse facilmente acessada por qualquer pessoa.
Nesse sentido, cabe fazer um alerta: não se iluda achando que é possível aprender Cabalá apenas lendo livros. Sempre que possível, busque um mestre ou escola, pois assim você realmente poderá avançar em seus estudos seguindo um plano estruturado de ensino e tendo alguém que possa te auxiliar no processo.
Yair Alon é rabino e cabalista (escritor, professor, consultor e palestrante). Conheça seu site oficial e acesse o canal no Youtube
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