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Shirlei Massapust
Nenhuma parte da obra judaica Sefer Bereshit (ספר בראשית), conhecida como Livro da Gênese, foi encontrada entre os manuscritos das grutas de Ḫirbet Qumrân. Uma versão atribuída a Aaron ben Moses ben Asher já constava no famoso códice da sinagoga do Aleppo, o Keter Aram Tzova, escrito por volta de 920, quarenta anos antes do óbito do rabino. Mas isto queimou durante um incêndio. Restou a cópia revista e corrigida Firkovich B 19, produzida no ano 1008, que hoje encontra-se na Biblioteca Pública de São Petersburgo Leningrado, Rússia. Tal texto é a matriz de todas as cópias posteriores da bíblia hebraica, apesar das sucessivas correções.
Gênese 1:26-27 – Primeira narrativa do mito da criação dos humanos
O seguinte texto em hebraico provém do portal Q-Bible[1], onde qualquer pessoa insatisfeita com a tradução King James Version pode consultar significados alternativos num dicionário flutuante. Basta mover o cursor sobre a palavra duvidosa que uma pop-up abre e fecha sozinha exibindo o verbete explicativo e, clicando com o botão direito, abre-se a lista de todos os usos da mesma palavra em toda a Bíblia. Os verbetes selecionados são da primeira narrativa da criação do gênero humano.
Após meditar sobre as opções de tradução termo-a-termo e consultar todos os usos possíveis de cada vernáculo em diferentes contextos, cheguei à concussão que a narrativa supracitada anuncia a fala dos protagonistas. “Foi decidido: A espécie humana será esculpida à nossa imagem” (Gênese 1:26). Depois descreve a ação: “Elohim criou o Homo sapiens à própria imagem. O corpo humano é retrato tridimensional de Elohim. Foi produzido homem (זכר) e mulher (נקבה) simultaneamente” (Gênese 1:27).
Isto aconteceu logo após o término dum exaustivo trabalho dividido em sete etapas, objetivando a construção dum cenário ou maquete com iluminação, base sólida, vegetação, animais e tudo que o escriba contador de estórias julgou necessário.
No contexto, os trabalhadores e trabalhadoras duma oficina de olaria planejam o método a ser empregado para produzir os bonecos habitantes do planeta diorama. Eles são dois ou mais falantes dotados de corpo material com aparência humana que optam por produzir simultaneamente dois ou mais autorretratos em escultura 3D.
Esqueça as complicações doutrinárias do sistema monoteísta. A multiplicidade de personagens no conto narrativo compilado pela bíblia hebraica nos dois primeiros capítulos do Livro da Gênese é atestada pelo uso de mem ם no adjetivo elohim אלהים onde a letra, que funciona como o nosso “s”, acusa a insofismável forma gramatical plural. Até mesmo a hipótese de plural majéstico (onde o personagem principal falaria sozinho, em nome do reino vindouro, dando ordens a si mesmo) é incongruente com o contexto que descreve ações impossíveis de serem realizadas por um único indivíduo.
Para reconstituir a cena numa peça teatral nós precisaríamos de um ou mais atores de sexo masculino e uma ou mais atrizes se revezando na tarefa de cobrir uns aos outros com pasta de gesso de secagem rápida. Toda pessoa envolta em gesso não poderia se mover até o endurecimento da massa que seria então quebrada para a saída de quem estava dentro e remontada como quebra cabeça. Então os autorretratos tridimensionais seriam produzidos preenchendo o espaço oco com pasta de argila.
As etapas da criação consistem em: 1) O diálogo (ʿamar אָמַר) onde cada designer articula a ideia que está em sua mente sobre a metodologia e outros detalhes relativos ao artesanato. 2) coleta (ʿasah עָשָׂה) das matérias primas. 3) O voluntariado de dois ou mais modelos (demoth דְּמוּת), incluindo pelo menos um masculino (זכר) e outro feminino (נקבה), que fazem o papel de protótipos se deixando cobrir pela massa que solidifica gerando a fôrma. 4) O preenchimento da fôrma com pasta de argila (ʿadamah אדמה) e 5) o subsequente ato de desenformar (baraʾ בּרא) a imagem (tselem צֶלֶם) solidificada.
Os humanos deveriam ser monocromáticos, pois a pintura e colagem de cabelo são detalhes omitidos. Os habitantes do planeta diorama não eram brancos nem negros. Todos eram morenos porque o adjetivo masculino ʿadam (אדם) designa literalmente a cor marrom levemente avermelhada da cerâmica ática (אָדֹם), ocorrendo na prosopopeia no sentido de Homo sapiens (אָדָם). A forma feminina deste vernáculo é ʿadamah (אדמה), argila industrial cuja utilidade em artesanato a diferencia da terra comum (ʿerets ארץ).
Na vida real uma estátua pode necessitar de polimento para remoção de marcas de linhas de junção da fôrma, mas a técnica do mítico estúdio dos oleiros Elohim é tão boa que todos os seus brinquedos criam vida depois de prontos e tem capacidade auto replicante. Na primeira versão a divindade não deu roupinhas de bonecos para os primeiros humanos. Mandou-os trabalhar e ter filhos. Então viu que tudo era bom.
Gênese 2:7 – Segunda narrativa do mito da criação dos humanos
Vimos que a Bíblia hebraica compilou duas versões do mito da criação do homem. Em Gênese 1:26-27 o homem e a mulher são feitos de argila ao mesmo tempo, talvez na mesma fôrma (pois existem fôrmas onde várias coisinhas secam juntas). Só não explica como esse pessoal de barro simplesmente saiu andando. É como se nós fôssemos autômatos… Em Gênese 2:7 a divindade usa outra técnica de artesanato onde pode-se trabalhar sozinho e não é possível produzir mais de uma peça por vez.
Adão não foi feito numa fôrma como retrato tridimensional de Elohim. Ele foi modelado (ײצר) de argila em pó (מו־האדמה). Após modelar sua única estátua, YHWH Elohim assopra no nariz como se estivesse enchendo uma peça de vidro aquecido e não de terracota. O gás nešamah (נְשָׁמָה) é o princípio motor que transforma a obra de arte em ser vivo, nepheš (נֶפֶשׁ). Parece o ātman (आत्मन्) védico ou ectoplasma espírita.
G. Frazer observa que ʿadam (אָדָם) e ʾâdōm (אָדֹם) são homônimos homógrafos cognatos. Conforme exposto anteriormente, este último termo descreve tonalidades de vermelho, especialmente a suave cor da argila usada na cerâmica ática, ʿadamah (אדמה), e o vívido impactante do sangue derramado[2]. Partindo daí um cardeal, Paulo Emílio Léger, ressaltou a pertinência temática de textos babilônicos segundo os quais o homem fora composto com uma mistura de “barro” e “sangue dos deuses[3]”.
Paulo Emílio Léger explica que numa época artesanal em que a arte do oleiro era universalmente conhecida, era comum comparar o trabalho de criação divina àquele ofício. Sendo assim os autores utilizavam imagens antropomórficas para ensinar que deus “tem tanto domínio e superioridade sobre a sua obra quanto o oleiro que fabrica seus vasos com argila amassada[4]”. Na Epopéia de Gilgameš a deusa Aruru molda um homem de argila. Enkidu vive na companhia dos animais da floresta até que uma “prostituta do templo do amor[5]” o conduz à Uruk. Ela ensina o homem nu como ele deve se vestir na cidade, como se portar à mesa ingerindo alimentos processados, como falar o idioma local, etc. Em dado momento este Trazan julga que os prazeres do sexo não valem todo esse incômodo e tenta fugir da sua Jane, mas é rejeitado pelos animais quando retorna à floresta. Então ele percebe que está condenado à vida urbana.
Enkidu estava enfraquecido, pois a sabedoria estava nele e os pensamentos de um homem estavam em seu coração. Então ele retornou e sentou-se aos pés da mulher, e escutou atentamente ao que ela lhe disse: “És sábio, Enkidu, e agora te tornaste como um deus”.[6]
Na segunda narrativa do mito da criação compilada no Livro da Gênese a urbanização resulta de um longo processo iniciado com uma transgressão, um furto de figos e folhas de figueira. O que aborrece a deidade não é a mera constatação da perda do alimento e sim o sentimento de vergonha da nudez expressado pelos humanos. Atendendo à reivindicação por roupas, a divindade faz capotes de pele (כתנות עור) e veste-os (ילבשם) como se ainda fossem bonecos (3:21). Porém, antes de expulsá-los, YHWH Elohim explica que decência nada tem a ver com sexo, falando o óbvio:
Adão pensou que isso não foi mais que uma bênção. Inspirado pela declaração de que a sua companheira geraria vida (חו), ele a chama de Sobrevivente (Eva חוה).
Essa é a síntese do desespero de um povo acostumado a viver no deserto, sem assepsia, anticoncepcionais eficazes, exame pré-natal, cesariana, absorvente feminino, remédios para aliviar cólicas menstruais, etc. Época onde um pai de família assistia impotente quando suas esposas, filhas, irmãs e uma mãe ainda jovem pingavam sangue periodicamente, feridas pela própria natureza. Via igualmente as fêmeas dos rebanhos animais parirem de pé e continuarem andando sem dificuldade, enquanto as mulheres sofriam tremendamente ao dar à luz. Como não concluir que fêmeas humanas são o alvo preferencial da ira do grande arquiteto do universo?
Adão e Eva são um casal formado por um boneco (ʾîsh אִישׁ) cerâmico (ʿadam אָדָם) e uma boneca (ʿîsha אשה) esculpida num osso (עצם) denominado ṣelāʽ (צֵלָע), extraído cirurgicamente do corpo de Adão, estando o paciente adormecido. Os versículos 2:21-22 são pura ficção científica. Eva é um clone com cromossomos XY alterados para XX. O autor sabia o que queria significar, assim como todos os ficcionistas que escreveram contos fantasiosos sobre viagens de homens à Lua antes de Neil Alden Armstrong pisar lá. Contudo devemos nos ater à metáfora e à prosopopeia onde estátuas podem falar.
Embora as bonecas articuladas de terracota existissem em maior número, a arqueologia atesta a ocorrência de figuras humanas femininas entalhadas em ossos desde a antiguidade clássica. Os bonequeiros romanos forneciam modelos de luxo esculpidos em marfim de elefante para crianças ricas e bonecas de ossos para as meninas humildes. Tais peças foram encontradas até nas catacumbas. Segundo Martigny, a presença de bonecas em enterros cristãos é simbólica e se explica por um versículo bíblico: “A menos que sejamos convertidos e nos tornemos como crianças pequenas, nós não entraremos no reino do céu” (Mateus 18:3, cf. I Coríntios 8:11).[7] Os coptas produziam estilizações de bonecas de osso com somente os braços móveis.
As costelas são os ossos mais parecidos com colmilhos de elefante que existem em nós. Ṣelāʽ (צֵלָע) é um notório cognato do ugarítico ṣlʿ, do assírio ṣilu, do acádio ṣēlu e doutras palavras que significam costela. A versão grega verte pleurōn (πλευρῶν), ou seja, costela. Mais recentemente os entusiastas do mito de Dionísio — nascido da coxa de Zeus — tem argumentado que o hebraico ṣelāʽ equivale ao árabe ẓalaʽa (coxear). Ziony Zevit, professor de teologia na Universidade Judaico-Americana de Maryland, nos Estados Unidos, argumenta que esqueletos femininos e masculinos possuem o mesmo número de costelas. Para a licença poética descritiva de extração óssea fazer sentido deveria faltar um osso no macho da espécie humana e, tratando-se de narrativa específica sobre as funções dos órgãos genitais feminino e masculino, Zevit deduziu que lhe falta o báculo (osso do pênis de outros mamíferos, inclusive gorilas)[8].
São teorias tão estapafúrdias que só faltou sugerir, com base no verbo hebraico cagar סָגַר, fechar a carne, presente em Gênese 2:21, que os comediantes da idade média estavam certos ao dizer que a primeira mulher foi feita de argila engrossada com espessante a base de excrementos.Não seria Eva pequena demais para Adão, porque que toda a matéria de seu corpo veio dum mísero osso? Na hipótese de Wilfred G. Lambert, fundamentada por estudo de nomenclatura em mitos da criação das culturas assírio-babilônica, sumeriana e bíblica, quando os pequenos bonecos vivos representam figuras humanas adultas eles crescem como plantas: O idioma acádio oferece tanto banû (verbo construir) quanto bunnû (verbo criar, fazer crescer). Essa bifurcação duma raiz semítica é claramente derivada do conceito de criação como crescimento de plantas”.[9]
Conclusão
O europeu construiu sua identidade como homem de barro baseando-se em versões e traduções populares do segundo e terceiro capítulos do Livro da Gênese onde Adão é modelado (ײצר) como um jarro oco de pasta de argila em pó (מו־האדמה). O europeu comumente faz vista grossa para a lição mais precisa de melhor técnica de escultura exposta anteriormente em Gênese 1:26-27, sobretudo para não ter de pôr em pauta evidências não apagadas de politeísmo e igualdade de gêneros.
Em oposição ao primeiro relato, Gênese 2 e 3 determina que nada era bom. Os humanos tinham péssima índole. Furtaram, mentiram, fizeram pouco caso da instrução teológica, tiveram medo da vigilância impudica alheia.
Notas
[1] Texto hebraico, transliteração e marcações lexicais do Livro da Gênese. Consultado em 06/07/2016. URL: <http://www.qbible.com/hebrew-old-testament/genesis/1.html#27>
[2] FRAZER, Sir James George. El Folklore em el Antiguo Testamento. Trad. Geraldo Novás. Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1993, p 25
[3] LEGER, Cardeal Paulo Emílio. Desafio à Igreja. Trad. José J. Queiroz. São Paulo, Edições Paulinas, 1969, p 41.
[4] LEGER, Cardeal Paulo Emílio. Desafio à Igreja, p 40.
[5] EPOPÉIA DE GUILGAMECH. Trad. Norberto de Paula Lima. São Paulo, Hemus, 1995, p 97.
[6] EPOPÉIA DE GUILGAMECH. Trad. Norberto de Paula Lima. São Paulo, Hemus, 1995, p 98-99.
[7] ELDERKIN, Kate McK. Jointed Dolls in Antiquity. Em: AMERICAN JOURNAL OF ARCHAEOLOGY. Vol. 34, No. 4. EUA, The University of Chicago Press, outubro-dezembro 1930, p 468, 475. URL: <https://www.jstor.org/stable/498710?seq=1>.
[8] THE ADAM AND EVE STORY: Eve Came From Were? Em: BIBLE HISTORY DAILY. Publicado em 09/15/2015. URL: <http://www.biblicalarchaeology.org/daily/biblical-topics/bible-interpretation/the-adam-and-eve-story-eve-came-from-where/>
[9] LAMBERT, Wilfred G. Technical Terminology for Creation in the Ancient Near East, p 193. Em: Intellectual Life in the Ancient Near East: Papers Presented at the 43rd Rencontre assyriologique international (July 1–5, 1996), ed. Jiri Prosecky. Prague, Academy of Sciences of the Czech Republic, Oriental Institute, 1998. URL: <https://ejournals.library.ualberta.ca/index.php/jhs/article/view/5993/5046>
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