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René Descartes (ou Renato Cartesius, como ele assinava, em latim) nasceu em La Haye, Tourenne, França, em 1596. Sendo de família nobre, foi enviando para um colégio jesuíta em La Flèche, uma das mais célebres escolas da época.
Recebendo a melhor formação humanista e filosófica possível dentro das bases escolástica, com abertura relativa também para o estudo das descobertas científicas da época e ênfase na matemática, nem por isso Descartes deixou de se sentir insatisfeito, pois achava a orientação tradicionalista da escola um gritante contraste com a visão de mundo que surgia do desenvolvimento científico (especialmente em Física e Astronomia) que desenvolvia em toda parte, financiado pela emergente classe burguesa, boa parte da qual era protestante. O que mais o incomodava era a ausência de uma metodologia que abraçasse as idéias e as harmonizasse com uma práxis que conduzissem o estudioso numa forma que lhe possibilitasse guiar-se na “busca da verdade”.
O ensino de filosofia, em La Flèche, que era ministrado tendo por modelo a escolástica medieval e a visão de mundo de Aristóteles e São Tomás de Aquino, levava o espírito dos estudantes para o passado, condicionava a percepção de mundo e frequentemente lá transformavam-os em conservadores eruditos. O resultado era uma espécie de incompetência intelectual e moral (envoltas em trajes de sabedoria), uma falta de preparo e de adaptabilidade eficaz para os problemas do presente. Isto levou Descartes a um incômodo impasse. Para ele o estudo intensivo de uma visão de mundo já ultrapassada seria como viajar. “Mas quando dedicamos tempo demais a viajar, acabamos nos tornando estrangeiros em nosso próprio país, de modo que aquele que é por demais curioso das coisas do passado, só valorizando o que já foi, na maioria das vezes torna-se muito ignorante das coisas presentes” (Descartes). E o “presente”, na época de Descartes, era o do desenvolvimento do empirismo, da técnica da fabricação de relógios e outros instrumentos, do desenvolvimento da mecânica, do questionamento do poder clerical, do comércio, do florescimento do capitalismo. Mais do que tudo, era a época de um novo alvorecer: a época da Revolução Científica, cujos principais expoentes até então foram Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e Galileu-Galilei.
O papel destes gênios na obra de Dscartes é visível: Copérnico pela coragem de desafiar (mesmo que postumamente, com a publicação de seus trabalhos no ano de sua morte) uma concepção geocêntrica muito cara à Igreja. Depois de Copérnico, a Terra deixou de ser o centro do universo para tornar-se mais um planeta. A revolução de tal “heresia” parece hoje difícil de ser bem avaliada, mas representou um profundo golpe na hegemonia do conhecimento científico, que estava nas mãos dos padres de Roma; Kepler, por formular suas célebres leis empíricas dos movimentos planetários, que veio a corroborar o sistema de Copérnico, e a demonstrar que o conhecimento da natureza poderia ser adquirido por meio de um trabalho laborioso indepenente do aval religioso; Galileu, por ser o real mentor da mudança de paradigma e visão de mundo da ciência de sua época. Ao dirigir seu telescópio para as estrelas, Galileu provou inconteste que a hipótese de Copérnico era uma teoria válida. Além disso, Galileu foi o primeiro a combinar sistematicamente a experimentação científica com o uso da linguagem matemática. Isso não foi feito apenas porque a matemática é a “linguagem com que Deus fez o universo”, como dira ele, mas por que se prestava à perfeição para que hipóteses fossem divulgadas e compreendidas apenas por alguns poucos “iniciados”, escapando, assim, da fiscalização inquisitorial. Como disse Fritjof Capra, “Os dois aspectos pioneiros do trabalho de Galileu – a abordagem empírica e o uso de uma descrição matemática da natureza – tornaram-se as características dominantes da ciência no século XVII e subisistiram como importantes critérios das teorias científicas até hoje”.
Para que os cientistas pudessem descrever a natureza em forma matemática, e, assim, poderem ter uma espaço para a discussão de suas idéias sem um grande risco ante os olhos de Roma, Galileu postulou que eles (os cientistas) deveriam se restringir ao estudo das propriedades essenciais dos corpos, ou seja, a todas as propriedadades que pudessem ser mensuradas: forma, quantidade, movimento. Tudo o mais deveria ser posto de lado. Embora esta abordagem tenha sido muito bem sucedida e tenha permitido o desenvolvimento da ciência, o seu lado negativo foi, como nos diz R. D. Laing, que “perderam-se a visão, o som, o gosto, o olfato e o tato, e com eles foram-se a sensibilidade estética e ética, a qualidade, os valores; todos os sentimentos, motivos, intenções, a alma, a consciência, o espírito. A experiência, como um fato vivido pelo sujeito, foi expulsa do domínio do discusso científico”. Segundo Laing, nada mudou mais o nosso mundo do que a obsessão dos cientistas pela medição e pela quantificação (Capra, 1986).
Foi nesse clima “Galileano” que Descartes respirou o ar que lhe moldaria o gênio. Depois de ter obtido o bacharelado em Direito, pela universidade de Poitiers, Descartes sentiu-se ainda mais confuso e decide se dedicar às armas e alista-se, em 1618, nas tropas de Maurício de Nassau (um nosso conhecido, que esteve no Nordeste do Brasil durante a ocupação holandesa na região), que na ocasião combatia contra os espanhois pela liberdade da Holanda. Por esta época, conhece um jovem físico e matemático, Isaac Beeckman, que o estimulou a estudar física.
Aos 23 anos de idade, Descartes estava em Ulma, ao lado das tropas de Maximiliano da Baviera, quando, entre 10 e 11 de novembro de 1619, ele relata ter tido uma “revelação” ou iluminação intelectual, que iria marcar toda a sua produção a partir de então. Numa noite, após horas de reflexão sobre todo o conhecimento que havia adquirido até aquele dia, ele caiu numa espécie de transe sonambúlico e, então, teve um lampejo súbito onde via, ou melhor, percebia “os alicerces de uma ciência maravilhosa” que prometia ser um método para a unificação de todo o saber e que desenvolveria em sua produção, tendo sido cristalizada, em parte, em seu clássico “O Discurso do Método”. A visão de Descartes despertou nele a crença na certeza do conhecimento científico por meio da matemática. Nos fala Capra que “A crença na certeza do conhecimento científico está na própria base da filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada, e foi aí, nessa premissa fundamental, que Descartes errou. A Física do século XX mostra-nos convicentemente que não existe verdade absoluta em ciência, que todos os conceitos e teorias são limitados. A crença cartesiana na verdade infalível da ciência ainda é, hoje, muito difundida e reflete-se no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura ocidental. O método de pensamento analítico de Descartes e sua concepção mecanicista da natureza influenciaram todos os ramos da ciência moderna e podem ainda hoje ser muito úteis. Mas só serão verdadeiramente úteis se suas limitações forem reconhecidas (…).” (Capra, 1986, p. 53).
A certeza cartesiana é matemática. Descartes acreditava, partindo de Galileu, que a chave para a compreensão do universo era a sua estrutura matemática. Seu método, pois, consistia em subdividir qualquer problema a seus níveis mínimos, separar “as peças que constituem o relógio”, reduzindo tudo até seus componentes fundamentais para, a partir dese nível, se perceber suas relações. Esse método é analítico e reducionista. Não aceita que um todo possa ser compreensível como uma totalidade orgânica ou que esta todo possa ter características que superem a mera soma de suas partes constituintes. Assim, ele negligencia um quebra-cabeças montado como sendo, em seu todo, um sistema significativo. Só a interrelação lógica das peças – se houver – é que, para o método cartesiano, nos dará uma compreensão de todo o quebra-cabeças, o que, convenhamos, é um absurdo quando tomado como regra geral, e não como regra para alguns fenômenos. Esta ênfase no método analítico tornou-se uma característica essencial do moderno pensamento científico. Foi ele que possibilitou levar o homem à lua, mas sua excessiva dominância nos meios científicos também levou à fragmentação características das especializações dos nossos meios acadêmicos, plenos de cientificismo, e no nosso pensamento em geral. Este método, tomando como um dogma, levou à atitude generalizada de reducionismo em ciência – a crença de que a compreensão de partes que constituem um todo (sem levar em conta inter-influências ambientais ou não lineares) podem ser adquiridas plenamente pela análise.
Tendo se estabelecido em definitivo na Holanda, pela liberdade e tolerância desta terra à novas idéias, Descartes aceitou a sugestão do padre Marino Mersenne e do Cardeal Pierre de Bérulle para escrever um tratado sobre metafísica. Mas tal trabalho foi interrompido para escrever o seu Traité de physique. Entretanto, tomando conhecimento da condenação de Galileu por sua aceitação da tese copernicana, Descartes, que compartilhava da mesma e a expunha em seu Tratado, caiu em grande perturbação, e interrompeu o aperfeiçoamento da obra e/ou não divulgando-a. Superada esta fase, Descartes passou a se dedicar ao problema da objetividade da razão frente a Deus. Assim, entre 1633 e 1637, Descartes passou a fundir suas idéias metafísicas com suas pesquisas científicas, escrevendo seu livro mais famoso: O Discurso do Método, que fazia a introdução de três ensaios científicos: a Dioptrique, o Méteores e a Geométrie . Diferentemente de Galileu, Descartes considerou que era fundamental tentar expor o caráter objetivo da razão e indicar regras para alcançar esta objetividade (este conceito de objetividade é muito questionável hoje em dia. Qualquer escolha de qualquer método ou padrão de medição já demonstra, pela escolha em sí, um grau enorme de subjetividade).
Nesse mesmo período, Descartes se envolve emocionalmente com Helène Jans, com o qual teve uma filhinha amada, Francine, que morreu aos cinco anos. A dor pela perda da filhinha querida acabou por dominar Descartes, deixando marcas em seu pensamento. Ele retomou a elaboração de seu Tratado de Metafísica, agora sob a forma de Meditações, obra que reflete uma alma angustiada. Este lado espiritualista de Descartes é frequentemente negligenciado pelos estudiosos modernos. Apesar das polêmicas que seus trabalhos metafísicos e científicos provocam, Descartes se lança à elaboração de um trabalho arrojado: os Principia philosophiae que é dedicada à princesa Isabel, filha de Frederico V. Graças a esta amizade entre Isabel e Descartes, temos uma coleção de cartas que esclarece muitos pontos obscuros de suas idéias, particulamente sua concepção da relação da alma (res cogitans) com o corpo e a matéria (res extensa), sobre a moral e o livre-arbítrio.
Em 1649, Descartes aceita um convite da rainha Cristina da Suécia, e muda-se para o novo país. Mas isto acabou por causar a morte de Descartes, pois a rainha Cristina tinha o hábito de ter suas conversações às cinco horas da manhã, o que obrigava Descartes a se levantar muito cedo, o que, junto com o tremendo frio da Suécia, abalou a já frágil constituição física do filósofo. Assim, ao abandonar a corte sueca , Descartes pega uma grave pneumonia que o levou à morte, em 1650.
A Herança Cartesiana
Toda a concepção de mundo e de homem de Descartes se baseia na divisão da natureza em dois domínio opostos: o da mente ou espírito (res cogitans), a “coisa pensante”, e o da matéria (res extensa), a “coisa extensa”. Mente e matéria seriam criações de Deus, partida e ponto de referência comum a estas duas realidades. Para Descartes (embora os guardiões do racionalismo tentem passar por cima deste ponto), a existência de Deus era essencial à sua filosofia científica, embora seus seguidores de séculos posteriores fizessem de tudo para omitir qualquer referência explícita à Deus, mas mantendo a divisão cartesiana entre as duas realidade: as ciências humanas englobandas na res cogitans e as naturais na res extensa.
Em sua concepção, influenciada pelos avanços na técnica da relojoaria holandesa, Descartes achava que o universo nada mais era que uma máquina. A natureza funcionava mecanicamente de acordo com leis matematizáveis. Esse quadro tornou-se o paradigma dominante na ciências até nossos dias. Ela passou a orientar a observação e produção científica até que a física do século XX passou a questionar seus pressupostos mecanicistas básicos.
Em sua tentativa de construir uma ciência natural completa, Descartes ampliou sua concepção de mundo aos reinos biológicos. Plantas e animais nada mais eram que simples máquinas. Esta concepção criou raízes profundas com conseqüêcias não só a nível biológico, como psicológico (lembremo-nos do Behaviorismo, em Psicologia) e até mesmo econômico (manipulação comercial de animais sem consideração ética alguma). O corpo humano também era uma máquina, diferenciada porque seria habitada por uma alma inteligente, distinguível da máquina-corpo e ligado a ela pela glândula pituitária (é interessante observar que os espíritas dizem que esta glândula têm uma importância muito grande na interrelção espírito-corpo). As conseqüências dessa visão mecanicista da vida para a medicia foram óbvias, tendo exercido uma grande motivação no desenvolvimento da Psicologia nos seus primórdios. As conseqüências adversas, porém, são igualmente óbvias: na medicina, por exemplo, a adesão rígida a este modelo impede os médicos (os grandes cartesianos) de compreender como muitas das mais terríveis enfermidades da atualidade possuem um forte vínculo psicossomático e sócio-ambiental.
O objetivo da “ciência” de Descartes era a de usar seu método analítico para formar uma descrição racional completa de todos os fenômenos naturais num único sistema preciso de princípios mecânicos regidos por relações matemáticas. É claro que ele não poderia executar sozinho este plano grandioso. Mas seu método de raciocínio e as linhas gerais da teoria dos fenômenos naturais que ofereceu embasaram o pensamento científico ocidental por três séculos (Capra, 1986). Mesmo que a sua visão de mundo apresente, hoje, sérias limitações, o método geral que ele nos deu ainda é muito útil na abordagem de problemas intelecutais e funciona muito bem. Ele possibilita, ainda, uma notável clareza de pensamento, o qual nos possibilita, inclusive, questionar sua própria origem e visão de mundo. Descartes é, realmente, uma figura fascinante.
por Carlos Antonio Fragoso Guimarães
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