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Excerto de A Chave da Alquimia
Quando naquele plácido entardecer de novembro de 1493 voltava para casa, na pequena cidade suíça próxima a Zurique, o jovem e respeitado médico do lugar tinha uma ruga de preocupação marcando seu rosto com um fundo traço oblíquo. Apesar do cansaço, seus pés e o grande báculo de borlas que indicava sua profissão seguiam agilmente pelo caminho íngreme que conduzia à ermida de Einsiedeln, se desviando dos montes de neve e fazendo rolar encosta abaixo inúmeros cascalhos e pedrinhas da montanha.
No meio do caminho ele se encontrou com o vendedor de cerveja, antigo amigo e cliente, que parecia ter grandes novidades para contar. Aproximou-se com gestos largos e um sorriso no rosto.
- Doutor Hohenheim! Sabe da novidade? — O quê?
- Dizem que uns navios dos reis de Espanha voltaram das Índias por um novo caminho, trazendo um monte de coisas .. ouro puro… especiarias raras, pássaros fantásticos, e até alguns infiéis — imagine doutor — inteiramente nus!
O vendedor de cerveja, puxando o médico pelo casaco, parecia cada vez mais excitado. Este, no entanto, passado o espanto das primeiras palavras, ficou estranhamente indiferente, e logo depois, dando mostras de grande impaciência, se despediu bruscamente resmungando como desculpa:
- Sim, é possível. Acontecem tantas coisas! Só Deus
O vendedor de cerveja, bastante surpreso, ficou vendo-o subir rapidamente, balançando a cabeça cabeluda, e disse para si mesmo: “Que tipos mais esquisitos são estes médicos!”
Sem dúvida nenhuma, se tivesse seguido o doutor e entrado com ele na confusa e alegre casa que o esperava, junto à ermida, teria compreendido e desculpado a falta de atenção do seu amigo.
Pouco depois todo mundo ficou sabendo que a mulher do doutor Hohenheim acabara de dar à luz um menino, que no dia seguinte era registrado no escritório do intendente de Canton com o nome de Philippus Teophrastus.
Havia nascido Paracelso.
Não existe nenhum dado de autenticidade suficiente que nos fale dos primeiros anos do jovem Philippus. Mas podemos pensar que o tipo de vida familiar daquela época e as esperas pelo estranho e maravilhoso personagem que via em seu pai acabaram por atrair as atenções do menino pelas coisas da medicina. Sem dúvida deve ter sido mesmo assim, porque consta que seu pai foi seu primeiro professor, iniciando-o nos segredos da sagrada profissão.
Acompanhando-o por aqueles caminhos da montanha, pelos povoados, ele logo aprendeu a gostar das plantas e das ervas silvestres, iniciando-se no conhecimento e no amor pela natureza.
Sem dúvida seu espírito, seu sentido crítico, e sua tenaz curiosidade não tardariam em encher-lhe a alma de dúvidas e a mente de reservas. Vendo as coisas ao redor e por dentro, pôde dar-se conta com segurança dos inevitáveis truques e medicamentos que seu pai preparava entre bulas e solenes invocações para suas receitas do dia seguinte.
E um dia chegou à insólita decisão: revolucionaria e transformaria a medicina, levaria a terapêutica por caminhos mais naturais e declararia guerra sem tréguas ao trio intocável que seus contemporâneos veneravam: Celso, Galeno e Avicena.
O pai não deixou de achar graça na fantasia e na coragem do menino. Mas, pensando filosoficamente que apesar de todos os conselhos a experiência é que valeria mais, deixou-o partir.
Assim, Philippus Teophrastus, que como prova de sua oposição a Celso havia decidido chamar-se Paracelso, saiu do seu lugar e começou uma surpreendente e contínua peregrinação.
Frequentou as universidades da Alemanha, da França e da Itália, assistindo as aulas dos homens mais destacados da época: Scheit, Levantai e Nicolas de Ypon, doutorando-se com toda a segurança, ainda que tenha sido negado por alguns de seus examinadores. A época pensava e gravitava sem dúvida sobre as inteligências do século e Paracelso não pôde se furtar a ela. A magia mística, o ocultismo e a escolástica reinavam nas universidades. Por isso o jovem Teofrasto foi de grande perspicácia quando, logo depois de romper com todos os fariseus oficiais, absorveu a verdade nos frondosos conhecimentos médicos e principalmente em Tritêmio, célebre abade do Convento de São Jorge, em Wurzburg.
Este Tritêmio, cercado de mistério e de um certo temor supersticioso por seus contemporâneos, foi um criptógrafo e cabalista notável, grande conhecedor e comentarista das sagradas escrituras, e descobridor de importantes fenômenos psíquicos de magnetismo animal, de telepatia e transmissão de pensamento, além de um químico consumado.
Sua influência sobre Paracelso foi durável. Mas depois de certo tempo o discípulo resolveu se separar do mestre, não concordando com certas práticas de magia e nigromancia, já tendo absorvido o que lhe interessava nessas fontes. Pode-se atribuir a Tritêmio grande parte da tendência que logo depois tomou conta de Paracelso de complicar e inverter os conceitos, ocultando as ideias debaixo de fantásticos neologismos.
Depois viajou pelo Tirol, Hungria, Polônia, Suíça, atravessou novamente a França, a Espanha e Portugal, indo por mar até ao reino do grande Kan, na Tartária, cujo filho ele teve a graça de curar, sendo agraciado com honrarias como se fosse um personagem divino.
Entretanto, algumas de suas receitas e teorias tinham começado a causar ciúmes na suscetível e presunçosa vaidade de alguns colegas. Por isso, logo que chegou novamente na Alemanha foi acusado de charlatanismo e encarcerado em Nordlingen.
Mas a liberdade não poderia escapar daquele que tanto a amava. E novamente Paracelso se viu em praça pública, estudando, curando, ensinando… e insultando cada vez mais os seus inimigos. Entretanto, a prudência o ensinou que deveria desaparecer por algum tempo.
Sua nova peregrinação foi pela Itália, Países-Baixos e Dinamarca, trabalhando como cirurgião militar em diversas campanhas e obtendo grandes êxitos por sua habilidade em curar as feridas. Logo depois fioou algum tempo na Suécia, em seguida na Boêmia e regressou ao Tirol. Nesses lugares ensinava sempre. E em todas as partes, com os alquimistas, com os quiromantes, viveu em grande simplicidade, falando uma linguagem rústica e atuando profissionalmente sem nenhuma arrogância.
As suas observações nesta época, sobre as enfermidades dos mineiros e sobre as virtudes de alguns minerais foram notáveis. As do mercúrio, por exemplo, para a cura de úlceras sifilíticas, estão entre as aquisições definitivas. E desta maneira muitas outras. Apesar disto a vida de Paracelso transcorria alternadamente entre a riqueza espetacular e a pobreza franciscana, sem que isso no entanto modificasse seu comportamento. Como consequência lógica, às vezes peregrinava sozinho e outras acompanhado e rodeado de exaltados discípulos. Um deles, o mais constante e preferido, o célebre Oporinus, foi mas tarde o seu pior inimigo.
Hoje, por cima das calúnias e impugnações, está fora de dúvida que Paracelso possuiu uma grande cultura, um grande amor pelo estudo, um rigoroso espírito crítico e costumes baseados na sobriedade e na castidade absoluta.
Sua fama e renome comoveram de tal maneira o público, que finalmente foi chamado para ocupar uma cadeira na Basiléia (1527), quando tinha somente 34 anos de idade. Posteriormente se dedicou ao ensino público em Colmar (1528), Nurember (1529), Saint-Gall (1531), Pfeffer (1535), Augsburgo (1536) e Villach (1538), onde quatro anos antes havia morrido seu pai.
A estes dez anos de docência ininterrupta seguem-se outros dois que, retirado em. Mindelheim, ocupou-se em recopiar, ordenar e rever seus escritos e conferências, dispersas aqui e ali, entre as que ficaram para a posteridade nas poucas notas de seus discípulos.
Durante o inverno desse segundo ano em Mindelheim, Paracelso foi atacado por uma doença rara que o consumia pouco a pouco. Acreditando que uma mudança de ares seria benéfica, decidiu transferir-se para sua querida cidade de Salzburgo, tão formosa e de clima tão suave. Nela, desperto para seu agudo e perene misticismo, escreveu comentários sobre a Bíblia e a vida espiritual, cujos fragmentos foram publicados por Toxites em 1570. Mas a doença progredia e Paracelso teve a sensação que o fim estava perto.
Neste ponto os historiadores se contradizem consideravelmente. Para uns Paracelso, esquecido, abandonado e reduzido à maior indigência, morreu no Hospital de Santo Estevão. Coisa possível, mas bastante ilógica. Outros contam que ele, perseguido por matadores profissionais pagos pelos médicos de Salzburgo, foi assassinado ou envenenado traiçoeiramente.
Hoje, com efeito, parece perfeitamente estabelecido o interessante processo de sua vida, cheia de dignidade, reconstituída e desenterrada segundo testemunhos indiscutivelmente exatos, recopiados pelo doutor Aberle.
Parece certo que esteve internado no Hospital de Santo Estevão e ali sentiu um dia a morte chegar com rara corporiedade. Sua reação foi caracterizada pela suavidade dos eleitos. Depois alugou um grande cômodo na pousada do Cavalo Branco, em Kaygasse, que poderia usar como quarto e escritório. E para ali se mudou à espera da morte que, segundo dizia, “seria o fim de sua laboriosa jornada e verdadeira colheita de Deus”.
No último dia daquele verão ditou seu testamento, preparou seu funeral, repartiu seus bens, escolheu os salmos I, VII e XXX para serem cantados no momento da grande viagem de sua alma, e desejou que seu corpo fosse enterrado na Igreja de Santo Estevão. Três dias depois, em 24 de setembro de 1541, morreu, ao 48 anos de idade. Diante dos seus restos desfilou toda a cidade, e o príncipe eleito arcebispo ordenou que os funerais fossem com todas as honras, de acordo com o homem digno que acabava de desaparecer. Meio século depois seus ossos foram desenterrados do jardim da igreja e depositados em um nicho cavado no muro, fechado por uma placa de mármore. E lá ainda se vê, marcado pelo tempo, mas ainda bastante perceptível, o cândido elogio de um epitáfio; muito breve e simples para a vida de um homem como ele:
Aqui jaz Felipe Teofrasto de Famoso doutor em medicina, que curou toda espécie de feridas, a lepra, a gota, a hidropisia e outras enfermidades do corpo com ciência maravilhosa. Morreu em 24 de setembro no ano da graça de 1541.
A OBRA
O perfil psicológico deste homem gigantesco é essencialmente o de um apaixonado, grande rebelde e grande curioso. “O saber não está armazenado em um só lugar, mas disperso por toda a superfície da terra”, dizia, fundando o sagrado e necessário universalismo da verdadeira ciência, pela qual, apesar de todas as vicissitudes passadas, atuais e futuras, o homem acaba sentindo que a vida não é uma viagem inútil e que ele pode verdadeiramente ter sido criado à imagem e semelhança do Criador.
A ânsia de conhecer de Paracelso, sua obsessão em combater a mentira, o empirismo, e charlatanismo, e a linguagem rígida de classe, aproximando-se dos doentes e dos pobres antes que eles batessem à sua porta, como era costume dos seus empoados colegas, o definem como um homem aferrado à razão justa das coisas. Por sua vez não esperava gratidão dos seus contemporâneos. E se voltou para o povo, ensinando-lhe a medicina em sua própria linguagem vulgar para grande escândalo “dos contempladores de urina e dos acadêmicos”, como costumava dizer. O apelido de “Lutero da medicina” que acabou ganhando, tem um fundo de verdade e o define com todo o direito e honra como o promotor da grande revolução científica do século 16.
Um viajante estudioso e atento, um fustigador sem medo das coisas erradas do seu tempo, um homem voltado de todo o coração para o povo a ponto de ter sido chamado “o médico dos pobres”, e sobretudo um revolucionário por uma exigência de consciência, em meio a um século eminentemente aristocrático: assim foi Paracelso.
Seu extraordinário grau de observação o levou a substituir os velhos princípios da terapêutica em uso por uma nova arte fundada num conhecimento mais exato do homem, considerado como uma parte do universo e cujas leis não poderia escapar. Assim criou seu princípio do homem como microcosmo, dentro da grande ordem superior, o macrocosmo.
O princípio vital foi chamado por cie de “elemento misterioso, ignoto ou arcano”, cuja ação, espontaneamente favorável, devia ser favorecida com a manutenção do doente em uma higiênica expectativa, desenterrando o velho aforismo de primum non nócere com calmantes — como o láudano —, dietas e cantáridas, e a proscrição de vomitórios, sangrias e demais medicações violentas tão estimadas pelos galenistas. E não há dúvida de que obtinha assim curas retumbantes.
Uma alquimia de uma dignidade toda especial, antecessora venerável e honesta — ainda que um tanto pitoresca, como é natural — da atual química biológica, foi outra arte sua que muitos aperfeiçoaram e racionalizaram depois, sem que pudessem suprimi-la da essência dos conhecimentos médicos.
Quando Claude Bernard disse, séculos depois, “que os venenos eram os melhores escalpelos para se aprofundar no estudo da fisiologia dos órgãos”, não estava senão endossando para a posteridade um dos postulados de Paracelso. Além disso, sua obra vastíssima encerra todos os extremos da medicina conhecida naquela época. Entre eles contam-se numerosos tratados sobre a sífilis, a peste, a doença dos mineiros, as epidemias, as enfermidades produzidas pelo tártaro, os livros de prática, a arte de receitas, as análises químicas, influências dos astros, a cirurgia, o livro das ervas, dos minerais e das pedras, a matriz, as feridas abertas e as chagas, a preparação do eléboro, as úlceras dos olhos e o mal chamado glaucoma, os princípios ativos que se obtém para a trituração dos remédios, e, principalmente, seu “tratado contra as imposturas dos médicos”, para não falar dos “dicionários” que a sua nomenclatura especial e diferente exigiu. Mas ainda serão precisos muitos anos de cuidadosos estudos para trazer à luz da verdade a grande quantidade de feitos justos, verdades irrefutáveis, e a diversidade de estupendos vislumbres que seu gênio precursor sentiu.
E tudo isso que ele escreveu pôde atravessar os séculos, quase intocável, apesar das cargas invejosas dos seus colegas, graças ao seu estilo quase incompreensível, cheio de mistérios e neologismos extravagantes. Mas isso também foi o culpado pelos apelidos que ganhou de mago, astrólogo e louco consumado, dos seus imediatos sucessores. Aquela época estranha do século 16 não podia ficar de todo alheia à sua personalidade. Neste ponto Paracelso sucumbiu ao peso da exaltação mística, escolástica e quiromântica do meio. Mas contra tudo isso ele se debateu da melhor maneira possível, usando seu juízo excepcional, sua indubitável veia poética e seu magnífico senso de humor. E por mais de uma vez recorreu a essas habilidades para não ser acusado de herege. Uma acusação das mais inquietantes que atingiu naquela época muitos homens que hoje chamaríamos de intelectuais liberais.
Mas Paracelso, apesar de todos os erros e aberrações da época, que como ramagens escondiam e empanavam seus esplêndidos frutos, deixou de ser o ocultista ilegível e tenebroso conforme o viam seus inimigos contemporâneos. E hoje, sem nenhuma dúvida, ele é considerado um clássico: fundador da terapêutica moderna e semeador da medicina experimental.
A ÉPOCA
Leonardo, Erasmo e Lutero foram contemporâneos de Paracelso. A máxima expressão da arte analisada como nunca havia sido analisada, científica e filosoficamente: Leonardo. O maior sentimento filosófico e satírico que os conhecimentos científicos e artísticos da época conseguiram realizar: Erasmo. E o mais alto e transcendental expoente da paixão religiosa, iconoclasta e construtiva por sua vez, cheio de misticismo e uma implacável perseguição à hierarquia temporal: Lutero.
Levados pela fantasia ou pela sugestão experimental, podemos estender um fio marcando um campo magnético entre Rotterdam, Milão e o burgo saxão de Eisleben, fazendo um triângulo de uns setecentos quilômetros de lado. Grande para o mundo daquela época e insignificante para o de hoje, mas muito carregado de induções espirituais que não poderia deixar de impregnar e dominar o temperamento de algum ser, sem dúvida predisposto pelo destino a aparecer no centro luminoso deste triângulo. E este centro corresponde com bastante exatidão a Einsiedeln, à ermida de Suábia, onde nasceu Paracelso.
Todas as paixões, forças e inquietações, todas as tremendas interrogações, as críticas e perseguições que tal clima acabaram por criar, pesaram e fermentaram na mente deste grande suíço.
Darember chegou a dizer que tudo isso formou o “Arcano da Alemanha”, protótipo da essência intelectual do século, cuja representação apareceu em Paracelso. Se for de outra maneira, uma impressão mais profunda provocou essa carga formidável de paixão em Paracelso, lançando-o para a incansável mobilidade de viajante, para a intensa sede de saber, explicar e compreender, e, principalmente, para a sua implacável polêmica contra os maus médicos, charlatães, incapazes e completamente nulos na arte de curar.
Em parte por sua proximidade ao medieval, ainda sensível, e em parte pela introversão que a meditação sobre os problemas causava, o certo é que as condições do ambiente foram especialmente favoráveis. Pode-se dizer, é claro com algum exagero, que aquele mundo estava habitado de um lado por uma turba de filósofos, sonhadores, alquimistas, humanistas, médicos, engenheiros incipientes, artistas, e religiosos a jogar atentamente o grande xadrez da Reforma e da Contra-Reforma. E do outro lado uma imensa e miserável classe popular, museu vivo de todas as desgraças e doenças, e um grande campo experimental para um olho ansioso em descobrir a verdade debaixo daquelas roupas estranhas, entre o borbulhar de ideias filosóficas, de panaceias intragáveis e de fantásticas liturgias.
A atividade contemplativa estava especialmente favorecida pela tranquilidade que este quadro social oferecia, isento de homens de negócio e aventureiros, de indústrias e de guerras, sempre tão pertubadores para o equilíbrio e a criação dos espíritos. Com efeito essa corrente emigrava até as riquezas e maravilhas que Colombo expunha em Barcelona diante dos olhos atônitos dos reis de Espanha, Isabel e Fernando, como resultado de um sucesso sensacional acontecido um ano antes do nascimento de Paracelso: o descobrimento da América.
Entretanto uma outra emigração, mais sutil, e menos barulhenta, mas também de indiscutível importância, acabava de acontecer da Espanha para os países da Europa Central: a dos judeus, ordenaida pelos reis católicos. Uma emigração a mais no perpétuo nomadismo desta raça, e sem dúvida de um excepcional valor espiritual: eles levaram os tesouros do saber que o acervo da civilização árabe havia semeado na península ibérica, muito superior àquela que a Idade Média tinha alcançado na Europa, e que assim voltava madura e purificada ao triângulo formado pela Holanda, Saxônia e o norte da Itália. Um núcleo que haveria de influenciar — com a inclusão da França nos séculos seguintes — no que hoje chamamos de cultura ocidental.
OS CONTEMPORÂNEOS
Já nos referimos como Paracelso se via de vez em quando às voltas com inúmeros discípulos e seguidores. Entre estes só restou um nome: Oporinus. Um secretário e discípulo predileto durante muitos anos que acabou voltando-se contra o mestre, tornando-se seu principal acusador, ao lado de Erasto, também inimigo jurado de Paracelso. Os dois formaram a base de uma série de informações inexatas e caluniosas, como, por exemplo, chamando-o de ébrio habitual, aproveitador e vagabundo. Ao lado dessas, algumas outras acusações certamente eram verdadeiras. A de que Paracelso escondia conceitos e medicamentos debaixo de um palavreado todo especial por ele inventado — geralmente deturpações latinas — cuja tradução devia ser feita com uma chave secreta que tornava invisível os princípios da medicina paracelsista. Isto lhe valeu a acusação de estar subtraindo o conhecimento da ciência aos demais. Digamos que isto era apenas um pecado menor, trazido do fundo hermético e ocultista que dominava aquela época. Séculos mais tarde ainda encontramos por exemplo o caso do fórceps: instrumento mágico cujo segredo foi zelosamente guardado durante muitos anos, de pai para filhos, no seio de uma mesma família. Outro impugnador importante foi Lieber, que em 1572 escreveu uma Disputado de Medicina Nova Paracelsi, editada em Basiléia e impregnada do mesmo espírito de Oporinus e Erasto.
Um fato surpreendente é a atitude de Erasmo de Rotterdam, ardente defensor e amigo de Paracelso durante sua vida e voltado contra ele depois de morto. O único que, segundo parece, lhe tributou plena fé e consideração, apesar de não ter sido seu aluno, foi o cônsul de Saint-Gall, doutor Joaquim de Wardt, por quem Paracelso sempre demonstrou um grande afeto e gratidão, dedicando- lhe vários de seus escritos.
Entre os imediatos seguidores no tempo, merece destaque o grande Van Helmont, cuja afirmação de que a mulher “é inteiramente útero”, tão citada pelos sexólogos modernos, tem toda a característica da linha de pensamento paracelsista.
Entretanto, em pleno século 17, Guy Patin se escandalizou ao saber que em Genebra as obras de Paracelso estavam sendo reimpressas em quatro volumes, considerando uma vergonha que alguém ainda tivesse coragem de fazer tal trabalho. O certo é que, envolvido pela inveja e pelo despeito, a lembrança de Paracelso pareceu cair no esquecimento, com exceção feita a alguns eruditos, como Descartes e Montaigne, que se interessaram por ele.
A POSTERIDADE
No século 18 Paracelso desapareceu de cena. Mas depois do esquecimento injusto e do silêncio veio a tempestade entusiasta da reabilitação, principalmente por parte do erudito Cristobal Gottlib von Murr, que no fim deste mesmo século sacudiu a opinião da cultura europeia com uma campanha cheia de entusiasmo. (Neues Journ Litterat und Kunstgeschichte, Leipzig, 1798-99, II).
A partir dele e com as primeiras luzes do século romântico, todos os autores se rivalizaram no mesmo empenho.
Preu (Das System der Medicin das Theophrastus Paracelsus, Berlim, 1838); Lessing, com a sua magnífica biografia (Paracelsus, sein Leben und Denken, Berlim, 1839); Marx (Zur Würdigung des Teophrastus von Hohenheim, Goettingen, 1840-41); e Locher (Teophrastus Paracelsus, eine kritische Studie, Wurzburg, 1874); Schubert (Paracelsus Forschungen, Frankfurt am Main, 1887) e Sudhoff (Versuch einer kritik der Echtheit der Para-celsischen Schriften, Berlim, 1894, Reiner ed.), reclamam para a Alemanha as primeiras exegeses triunfais. Uma homenagem lógica ao primeiro homem que, apesar de suíço, consa-grou a intenção de fazer dò alemão um idioma de cultura.
Entretanto Stanelli publicava na Rússia um notável estudo critico sobre a filosofia de Paracelso (Die Zukunft Philosophie des Paracelsus, Moscou, 1884).
Na Suíça, sua terra natal, como geralmente acontece com todos os gênios, houve um atraso. Kahlbaum, professor de Basiléia, pronunciou uma conferência consagratória em 1894 (Ein Vortrag Kehalten Zu Ehren Theophrast’s von Hohenheim). Este magnífico ato, cheio de uma profunda e razoável paixão alcançou uma ressonância extraordinária. O elo tinha sido rompido.
Em língua inglesa, à paciente série de trabalhos de Ferguson (Bibliographia Paracelsica, Glasgow, 1877-1893) e de Weber (Paracelsus—A portrait medal of Paracelsus — Additional Remarkes on Paracelsus, London, 1893-1895), se acrescenta a biografia reunida por Hartmann (Life of Paracelsus, London, 1887), os estudos sobre sua alquimia por Waite (The Hermetic and Alchemical Writings of Paracelsus, London, 1894), uma nova biografia de Stoddart (The Life of Paracelsus, Glasgow 1915) e, mais recentemente, a primeira norte-americana, de Stillman (Theophrastus Bombast von Hohenheim, Chicago, 1920).
Von Petzinger (lieber das reformatorisches Moment ;n den Anschaugen des Theophrastus von Hohenheim, Greifswald, 1898) e Schneidt (Die Augenheilkunde, München, 1903) consagram suas teses inaugurais sobre Paracelso.
Magnus, de Breslau (1906) qualifica-o de “arquimédico” e finalmente, outro filho ilustre da mesma Einsiedeln, Raimundo Netzhammer, arcebispo de Bucareste, publicou em 1901 sua melhor biografia, esboçada poucos anos antes (1895) na Real Institution pelo arcebispo anglicano de Londres. (Neízhammer — Theophrastus Paracelsus, das Wissenswerkeste uber dessen; eben, Lehre und Schriffen, Einsiedeln, 1901).
Na França o interesse e a exegese da obra de Paracelso cobre as mesmas etapas, aproximadamente no mesmo prazo, apesar de um pequeno atraso bastante compreensível em relação aos países germânicos. Apesar de tudo sua popularidade é muito menor e, salvo os eruditos, somente chega ao público em reduzidos núcleos devotos das ciências ocultas.
Bordes-Pagés (Philosophie medicale au XVI siècle. Paracelse, sa vie et ses doctrines, Revue Indépendante, abril, 1847) é o primeiro que se ocupa em fazer um esboço de sua vida e sua obra, com palavras surpreendentes de elogio, que mais tarde também Bouchadat repete (Nouveau Formulaire Magistral, Paris, 1850) e principalmente Cruveilhier, com seus entusiasmados artigos (Revue de Paris, 1857) Bouchut (Histoire de la medicine et des doctrines médicales, Paris, 1864) e Jobert (1866, Paris) e Durey (1869, Paris), também lhe dedicam suas teses.
Desta uniformidade de critérios, separa e se destaca um autor tão importante como Daremberg, que em sua Histoire des Sciences Médicales, lança contra Paracelso uma encarniçada perseguição. Daremberg considera Paracelso como alemão e o trata mesmo como um inimigo. Ele é o criador da frase de que Paracelso personifica o arcano da Alemanha, e evidentemente se compraz em descarregar sobre ele todo o seu rancor de velho patriota. Às palavras generosas e entusiastas de Cruveilhier, que o considera como um desses “inovadores que apesar de todos os obstáculos se lançam por cima de mil quimeras e mil sonhos em busca de um novo ideal… ”, opõe-se afirmando que “nunca as quimeras e os sonhos levaram à alguma coisa”.
Mas este é um isolado e inoperante ponto negro que somente surpreende pela indiscutível erudição do seu autor. Depois dele tornam-se a se agrupar outros autores em torno dos elogios: Grasset (La France Médicale, outubro, 1911), Lalande e Gallavardin (Le Propagateur de L’Homeopathie, revista mensal, abril, 1912) e principalmente Grillot de Vivry, que em 1913 publicou a primeira e única tradução das obras completas de Paracelso em francês, muito elogiada pela sua meticulosidade e competência acima de tudo. Não se trata pois de uma coincidência ou aventura: Paracelso alcançou os limbos da glória e ficou na História. Fora isso não temos outra coisa a fazer senão lhe render um testemunho que se chama: admiração e justiça.
(Os únicos manuscritos diretos que se conservam hoje, de reconhecida autenticidade, são os de Vosius e Huser, os da Biblioteca de Viena e os que Wegenstein encontrou entre os despojos do Monastério Del Escoriai, na Espanha.)
Alimente sua alma com mais:
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