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1970-2025
“Quem não honra suas origens, apodrece suas raízes.” — dizia Adriano Camargo “O Erveiro”. Sua fala era lapidar, de uma simplicidade cortante, como uma folha de arruda passada nas têmporas. Em tempos de espiritualidades à la carte, onde orixás e incensos são invocados com a mesma volubilidade com que se muda de senha do e-mail, ele se destacou foi um raro exemplo de coerência entre discurso, prática e raiz.
Adriano nasceu em 27 de Maio de 1970, – geminiano com ascendente em virgem como gostava de enfatizar – e, se você perguntasse onde foi o parto, talvez responderia “no chão do terreiro”. Não literalmente, claro. Mas quase. Sua mãe, Eliza, era daquelas umbandistas raiz: fogão à lenha, atabaque dobrado, e uma tesourinha de ferro que só ela mexia, usada exclusivamente para cortar folhas no quintal — mas só nos dias certos. Era uma Umbanda sem glamour, sem hashtag, e principalmente, sem manual. Era fé do tipo que se aprende por osmose: vendo, sentindo, obedecendo.
A casa onde Adriano cresceu tinha cheiro de arruda fervida e de feijoada. As duas coisas saíam, às vezes, da mesma panela. E a cada banho de erva, seu corpo de criança ganhava um novo magnetismo — mesmo que ele não soubesse o que diabos era isso. Não podia perguntar. Criança, na lógica da casa, não questiona. Cumpre.
A infância de Adriano foi daquelas que não passariam batidas num consultório. Desde pequeno, ele via coisas. E não era força de expressão: via mesmo. Cores, vultos, pulsares, luzes — o tipo de visual psicodélico que hoje só se tem com um chá ayahuasca ou um botão de mescalina. Naquela época, era só o jeito dele de enxergar o mundo.
Na linguagem da vizinhança, era “esquisito”. Para os mais cautelosos, “sensível demais”. Para os médicos, provavelmente “hiperativo” ou “precisando de remédio pra dormir”. Resultado: psiquiatra, calmante e muito silêncio. Falar do que via era garantia de olhar atravessado — ou de umas boas colheres de xarope amargo.
A exceção era o terreiro. Lá, os barulhos da cabeça dele se acalmavam. Era como entrar numa zona de silêncio dentro do caos: o som do atabaque ritmava seus sentidos, como se alguém ajustasse o dial da sua frequência interna. Era o único lugar onde o mundo parecia fazer sentido.
Só que ser um mini-xamã no meio de um Brasil pós-ditadura militar, cheio de evangelho na TV e nada de “umbandismo gourmet” na moda, não era exatamente algo valorizado. Aos poucos, Adriano aprendeu o truque que quase todo médium precoce aprende: fingir que não está vendo. Como quem aperta “mute” nos próprios sentidos.
Chegando à adolescência, ele já dominava o ofício da negação como um samurai domina a espada. O mundo começou a girar em torno de coisas mais “normais”: escola, amigos, um interesse crescente por meninos — que, nos anos 80, ainda era tabu sobre tabu. A mediunidade virou bagagem esquecida no porão da consciência. Mas o porão ainda estava lá. E não demoraria tanto para que a porta começasse a ranger de novo.
Início da Vida Adulta
Nos anos 90, Adriano trocou o terreiro pela gravata. Estava na fase do “vamos ser alguém na vida”. Não que ele quisesse exatamente isso — mas, na dúvida entre dar bom-dia pro Caboclo ou bater ponto no escritório, a sociedade brasileira da época recomendava fortemente a segunda opção.
Foi assim que o menino que via luzes virou um jovem de pastinha 007. Trabalhou em empresas, reuniões, deadlines, metas. A mediunidade foi trancada num armário mental, com cadeado e tudo. Umbanda? Só de vez em quando, em pensamento. Mas mesmo assim, o cheiro de erva fervendo às vezes voltava, sem ele saber de onde.
Só que o armário começou a vazar. Um dia, a vontade de aprender sobre ervas bateu. Sem motivo. Sem contexto. Sem nenhum guia incorporado dizendo “vai estudar”. Foi uma espécie de saudade do que ele nem sabia que sabia. E então começou: jardinagem, fitoterapia, florais de Bach, homeopatia, botânica. Uma verdadeira rave vegetal no cérebro de um geminiano com ascendente em Virgem.
Mas o aprendizado ainda era solitário. Não queria ser “o filho da Dona Eliza”. Queria entender por si mesmo. Evitava terreiros que lembrassem o da mãe, mas acabava caindo exatamente neles. Era como se a espiritualidade dissesse: “pode correr, mas não vai escapar”.
Foi no meio dessa crise de identidade mediúnica que ele conheceu o mestre Rubens Saraceni. Ou melhor: foi “fisgado” por uma apostila que quase o fez levitar no meio de uma loja de artigos religiosos. O contato com Saraceni funcionou como um reboot cósmico. O que antes era vivido por instinto, agora ganhava palavras, esquemas, apostilas, doutrina. A Umbanda de Adriano deixava de ser só chão de terreiro e passava a ter lógica interna, coerência.
Na virada da década, Adriano já não era mais o executivo em crise. Nem o ex-médium tentando “levar uma vida normal”. Era o aprendiz que voltava pra casa. Com humildade, com sede de saber, e com um pé no mato e outro na biblioteca.
Templo Escola Ventos de Aruanda
Virada de século. Enquanto o bug do milênio não aconteceu e todo mundo ainda usava e-mail como se fosse carta com pombo, Adriano estava fazendo outra transição: da curiosidade à missão. Os anos 2000 chegaram com uma promessa que ele nem sabia ter feito: “agora vai.”
Já não bastava mais estudar ervas, queria ensinar sobre elas. Só que, antes de virar professor, teve que ser cobaia. A espiritualidade jogava os temas, e ele corria atrás. Um dia o assunto era Arruda, no outro era Júpiter, e no seguinte, um banho de erva que precisava de água, mas não podia ter água demais. Era um curso avançado de botânica mística, ministrado por guias invisíveis com sotaque de mata fechada.
Foi nesse período que ele começou a falar pra plateias de verdade. Aulas em turmas de teologia, seminários, rodas de conversa — tudo ainda com aquela cara de “não sei se estou pronto, mas vamos ver no que dá.” A cada nova explicação sobre erva quente, morna ou fria, ele descobria também um pouco mais sobre si mesmo. E os outros também descobriam nele um negócio raro: alguém que sabia do que falava, mas falava como quem estava aprendendo junto.
Até que, em 2007, veio o passo óbvio: abrir a própria casa. Nascia o Templo Escola Ventos de Aruanda, em São Bernardo do Campo. Não foi só um terreiro. Foi uma espécie de Hogwarts de Umbanda: um lugar pra formar médiuns, magos, sacerdotes e — acima de tudo — seres humanos menos babacas.
A inauguração foi quase um parto com placenta astral. Adriano não queria repetir os modelos que já conhecia. Queria outra coisa: uma casa com chão firme, mas teto alto. Sem vaidade de dirigente, sem guru de palco, sem carisma fake. Só com conhecimento, verdade e uma boa dose de cafezinho com pitada de alfavaca. O terreiro começou pequeno, como tudo que presta. Mas o boca-a-boca (ou seria o boca-a-caboclo?) logo se encarregou de fazer crescer. Em pouco tempo, o Ventos de Aruanda virou referência.
Rituais com Ervas
Em 2010, Adriano fez o que muito sacerdote evita: abriu o conhecimento. Literalmente. Lançou turmas de formação sacerdotal — e isso não é pouca coisa. Em vez de esconder saber em linguagem cifrada ele abriu o jogo. E abriu mão, também, da figura do guru inalcançável. Porque guru, no Brasil, ou vira coach ou vira meme.
O objetivo era formar sacerdotes, mas sem criar clones. Queria gente com autonomia de pensamento e consciência de chão — aquele tipo de médium que entende por que está fazendo um banho, e não só como se faz. E mais: que saiba distinguir um manjericão roxo de uma alfavaca, sem precisar perguntar pro oráculo do Google.
Essa foi a década em que o Erveiro virou método. O que antes era só prática e oralidade virou curso, apostila, cronograma. A didática das ervas começou a ganhar corpo, classificação, fundamentos botânicos, analogias mitológicas e até paralelos com astrologia. Tudo isso costurado com o tipo de clareza que só quem se perdeu no mato sabe dar.
Nessa época, ele também começou a rodar o Brasil com suas formações. Uma delas o levou ao Rio Grande do Sul, onde uma turma inteira resolveu devolver a visita: pegaram um ônibus e foram conhecer pessoalmente o Santuário Nacional da Umbanda, em São Paulo. Adriano foi junto.
Em 2015, Adriano já tinha plantado muita coisa. Literalmente e metaforicamente. Estava com o terreiro fincado, o nome estabelecido, o livro nas mãos e as turmas rodando. Mas aí veio aquele fenômeno que só os iniciados entendem: a fase da poda.
Porque crescer não é só multiplicar. É escolher o que fica. É saber que uma árvore não dá mais frutos só porque tem mais galhos. Tem que cortar, modelar, reenraizar. E foi isso que começou a acontecer. A vida pessoal apertou. O corpo deu sinais. E a espiritualidade — sempre ela — começou a cobrar mais presença, mais verdade, mais entrega.
O Templo Ventos de Aruanda crescia, mas sem virar vitrine. Continuava sendo o que sempre foi: chão de barro, sabedoria de quintal, altar de gente que sua. A vaidade, tão comum no meio esotérico-religioso, passava longe. O trabalho não era pra render seguidor. Era pra formar gente decente com fundamento e consciência. E isso sempre dá mais trabalho.
Também foi nesse momento que a voz do Erveiro começou a ecoar além do terreiro. Convites para eventos, rodas de conversa, lives, aulas em outros estados. Ele foi fincando seu nome como referência em magia natural — mas sem virar mascote de Instagram, sem vender banho pronto de prosperidade ou empoderamento em potinho.
Sua ética era clara: se você não entende o que está usando, não é magia. É cosmético. E cosmético, no campo espiritual, é igual a espuma no café: bonito, mas não sustenta.
O livro “Rituais com Ervas”, publicado nesse período, foi um divisor. Um livro bastante didático e bem organizado. “Sem mistérios, simples, ilustrado e colorido, assim como é a natureza.” Nele o Erveiro nos trouxe uma forma dinâmica, simples e objetiva de trabalhar com os elementos da natureza em rituais de banhos, defumações, benzimentos e outras práticas que visam o bem estar de corpo, mente e espírito.

Em 2023 Adriano Camargo participou como um dos palestrantes convidados no Simpósio Sofia (13º Simpósio de Ocultismo e Filosofias Arcanas) com o tema ‘A História da Umbanda Sagrada. As Ervas e a Umbanda’ , ocasião em que foi aplaudido, não apenas pelo brilhante conteúdo mas por toda sua história.
Bem estabelecido e conhecido como escritor e especialista no uso ritualístico e religioso das ervas e elementos da natureza, Adriano passou para a próxima fase em 3 de abril de 2025 — não como quem parte, mas como quem se planta. Seu corpo, talvez, tenha silenciado, mas suas palavras ainda brotam em folhas e suas pegadas seguem acesas nos terreiros que ousam cultivar fé com raiz e razão. Como um velho alecrim que ainda perfuma a mão de quem poda, o Erveiro segue vivo nas práticas que ensinou, nos banhos que curam, nas folhas que falam. Porque gente como ele não morre: vira rezo, vira vento, vira sabedoria de quintal soprada de geração em geração.
~ Tamosauskas
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