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Ásia Oculta

Os primeiros séculos budistas

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O budismo nasceu em silêncio. Não teve tábuas gravadas em pedra nem um profeta gritando verdades em praça pública. Foi no sussurro da meditação que Siddhartha Gautama, o Buda, descobriu o que acreditava ser o segredo para acabar com o sofrimento humano. E, ao longo de 45 anos, ele transmitiu sua mensagem com uma simplicidade desconcertante: tudo é impermanente, o sofrimento é inevitável, mas existe um caminho para escapar dele. Quando morreu, por volta de 405 a.C., deixou para trás um legado poderoso, mas frágil. Não havia livros, nem escrituras formais, só o esforço incansável de seus discípulos para guardar suas palavras na memória.

Foi o suficiente para dar início a uma jornada extraordinária. Do pequeno vale do Ganges, onde tudo começou, o budismo cresceu até se tornar uma das mais influentes religiões do mundo. Foi adotado por imperadores, moldou culturas inteiras e chegou a reinos distantes por rotas comerciais e missionários dedicados. Mas o caminho não foi uma linha reta. O budismo enfrentou disputas internas, perseguições e mudanças profundas em sua filosofia, sempre encontrando formas de se reinventar.

Aqui vemos uma viagem por essa história, desde os primeiros concílios budistas, onde as sementes da doutrina foram plantadas, até sua expansão pela Ásia e sua reinvenção no mundo moderno. É a história de como uma mensagem simples sobre o sofrimento humano atravessou milênios e continentes, transformando-se em uma das maiores forças culturais e espirituais da humanidade.

Os Três Concílios

A morte de Buda – ou Parinibbana, para quem já decorou esse vocabulário básico do budismo – aconteceu por volta de 405 a.C. Foi o fim da linha para o homem, mas só o começo para a doutrina. Pouco tempo depois, um grupo de monges liderado por Mahakassapa se reuniu em Rajagaha para um evento grandioso: o Primeiro Concílio Budista. O objetivo? Preservar o Dhamma (os ensinamentos de Buda) e o Vinaya (as regras para a vida monástica). Tudo isso, vale lembrar, sem um único caderno ou caneta na mesa. Era tudo de cabeça. Só muito mais tarde é que essas informações seriam escritas, quando a memória já começava a dar sinais de cansaço.

Mas segurar uma religião como quem segura água com as mãos nunca é fácil. Cem anos depois, por volta de 305 a.C., já havia briga na comunidade. Os monges se reuniram no Segundo Concílio, em Vaisali, para discutir interpretações das regras monásticas. A coisa ficou tensa, e foi aí que surgiram as primeiras rachaduras na unidade budista – o que acabaria criando as bases para as futuras escolas, como o Theravada e o Mahayana.

O budismo poderia ter ficado ali, restrito a pequenos grupos de monges debatendo sobre regras, se não fosse por um homem: Asoka, o Grande. Ele foi imperador da dinastia Maurya entre 272 e 236 a.C. e começou a vida como um conquistador de fazer inveja a Genghis Khan. Mas algo mudou depois da sangrenta Batalha de Kalinga. Segundo as crônicas, Asoka ficou tão horrorizado com o banho de sangue que decidiu largar a violência e abraçar o budismo. Não só abraçou como levou a religião ao próximo nível.

Asoka foi o grande marqueteiro do budismo. Ele patrocinou o Terceiro Concílio Budista em Pataliputra, um evento para limpar a Sangha (a comunidade budista) de heresias. Mais do que isso, espalhou o budismo para além da Índia. Enviou missionários para o Sri Lanka, Ásia Central e até para regiões que hoje são a Grécia. Suas estupas – estruturas que guardam relíquias de Buda – pipocaram pelo subcontinente indiano, transformando a paisagem e o próprio imaginário budista.

China e Tibet

Depois da morte de Asoka, o budismo seguiu expandindo sua influência, embora enfrentasse desafios, como a repressão esporádica durante a dinastia Shunga. Mesmo assim, o legado artístico floresceu. Locais como Sanchi e Bharhut são testemunhas de como o budismo moldava a cultura da época.

E então, no século II d.C., veio Nāgārjuna. Esse cara era um gênio – o Einstein da filosofia budista. Ele fundou a escola Madhyamaka (Caminho do Meio) e trouxe a ideia de vacuidade (śūnyatā). Em bom português? Ele dizia que nada tem uma existência intrínseca. Nada é, por si só. Tudo depende de tudo. Pode parecer abstrato, mas a ideia virou o coração do Mahayana. Seu texto mais famoso, o Mūlamadhyamakakārikā (Versos Fundamentais do Caminho do Meio), ainda hoje é estudado por quem gosta de misturar metafísica com xícaras de chá.

Foi nesse mesmo período que o budismo começou a ganhar espaço fora da Índia, impulsionado pela Rota da Seda. Monges como Faxian, no século V d.C., viajaram quilômetros para buscar textos e relíquias na Índia. Ele registrou tudo no seu Relato dos Reinos Budistas, um verdadeiro guia  espiritual da época. Faxian foi um dos primeiros a traduzir textos budistas para o chinês, ajudando a semear o budismo na China.

Na China, o budismo explodiu culturalmente. Durante a dinastia Tang (618–907), ele se tornou um dos pilares da cultura chinesa. Escolas como a Terra Pura, que prometia um paraíso pós-morte para quem tivesse fé no Buda Amitabha, e a Chan, precursora do Zen japonês, floresceram. Os manuscritos e esculturas das grutas de Dunhuang e Longmen ainda hoje são joias históricas.

Enquanto o budismo viajava pela Ásia, a Índia ainda era seu epicentro intelectual. No século V, nasceu a Universidade de Nalanda, o maior centro de aprendizado da Antiguidade. Nalanda recebia estudantes da Ásia inteira – China, Tibete, Coreia. Lá, eles estudavam de tudo: lógica, medicina, filosofia. Dharmakirti, um dos maiores nomes da epistemologia budista, ensinava ali. Ele desenvolveu teorias sobre como percebemos e inferimos o mundo, moldando a lógica budista de forma que reverbera até hoje.

Enquanto Nalanda fervilhava, o Tibete dava os primeiros passos no budismo. Segundo as tradições tibetanas, o rei Totori Nyentsen (século II-III) recebeu textos e estátuas budistas, plantando a semente da religião no país. Mas foi no reinado de Songtsen Gampo (618–640) que o Tibete realmente começou a mergulhar no budismo. Ele mandou traduzir escrituras e construiu templos como o Jokhang, em Lhasa, que se tornaria o centro espiritual tibetano.

Foi nesse ambiente que nasceu o alfabeto tibetano, criado por Thonmi Sambhota com base no sânscrito. Isso abriu as portas para a tradução de textos budistas, ajudando a consolidar a religião como parte da identidade tibetana.

Por volta do século X, o budismo começou a minguar na Índia. Invasões islâmicas destruíram mosteiros como Nalanda e Vikramashila, enquanto o hinduísmo ganhava força e absorvia elementos budistas. Sem patronos poderosos, o budismo praticamente desapareceu de sua terra natal.

No Tibete, por outro lado, o budismo floresceu. Mestres como Atisha Dipamkara revitalizaram os ensinamentos, enquanto escolas como a Nyingma e a Gelug, fundada por Tsongkhapa, aprofundaram práticas tântricas e filosóficas. A linhagem dos Dalai Lamas, que emergiu com a escola Gelug, consolidou o budismo como força espiritual e política no Tibete.

Presente e Futuro

No século XX, o budismo enfrentou um dos maiores desafios de sua história: a invasão do Tibete pela China em 1959. O exílio do 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, marcou o início de uma nova era. Sob sua liderança, o budismo tibetano se espalhou pelo mundo, ajudando a transformar o budismo em uma tradição verdadeiramente global.

Hoje, o budismo vive uma de suas eras mais paradoxais. Ao mesmo tempo em que luta para sobreviver em sua terra natal – a Índia, onde ele é quase uma sombra de seu passado –, encontrou novos lares e fôlego em partes do mundo onde sequer existia há um século. O Ocidente, por exemplo, se apaixonou pelo budismo, mas de um jeito peculiar: importou suas práticas, como a meditação mindfulness, muitas vezes desconectadas de seus contextos espirituais. Centros de meditação, livros de autoajuda inspirados no budismo e aplicativos prometem o “despertar interior” adaptado às rotinas urbanas e ansiedades modernas.

Enquanto isso, no Oriente, o budismo segue como força vital em países como o Japão, Tailândia, Sri Lanka e Tibete, mesmo enfrentando desafios. No Tibete, por exemplo, o governo chinês pressiona para controlar o papel do budismo na identidade cultural tibetana, colocando em risco séculos de tradições. Mas, mesmo sob essas circunstâncias, a voz do Dalai Lama continua ressoando globalmente como um símbolo de compaixão e resistência pacífica.

O futuro do budismo parece promissor, mas também exige adaptações. Na era digital, textos sagrados estão a um clique de distância, e aulas de filosofia budista podem ser assistidas pelo YouTube. Por outro lado, há o risco de que sua essência – a prática do desapego, da compaixão e da sabedoria – seja diluída em um mundo obcecado por resultados rápidos e soluções fáceis.

Ainda assim, o budismo tem mostrado, ao longo de sua história, uma resiliência notável. Ele sobreviveu a invasões, perseguições e mudanças culturais radicais, adaptando-se sem perder seu núcleo. No futuro, a principal questão será como equilibrar essa adaptabilidade com a preservação da tradição.

Uma coisa, porém, é certa: enquanto houver sofrimento, haverá espaço para o budismo. Afinal, sua mensagem central – que o sofrimento pode ser compreendido, enfrentado e, em última análise, superado – continua tão relevante hoje quanto era nos tempos de Buda. E talvez seja por isso que, mesmo 2.500 anos depois de Siddhartha ter sentado sob a árvore Bodhi, sua jornada continua inspirando a nossa.


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