Categorias
Ásia Oculta

Atthaka Vagga, o Livro das Oitavas

Leia em 5 minutos.

Este texto foi lambido por 110 almas essa semana.

por Raph Arrais. 

Monges budistas da vertente teravada registraram o Cânone Páli algumas centenas de anos após a morte do Buda. Dentre todo o Cânone, o Atthaka Vagga (em páli, Capítulo [vagga] das Oitavas [atthaka]) é um dos registros mais antigos que se conhece dos ensinamentos do Buda. Trata-se do quarto capítulo do Sutta Nipatha, que compõe o Sutta Pitaka juntamente com o Dhammapada (que também já traduzimos e lançamos pelas Edições Textos para Reflexão). Ele é chamado de Atthaka (oitavas) por ter sido escrito originalmente em 16 seções de 8 estrofes. Em português, eventualmente ficou conhecido como O Livro das Oitavas, ou O Livro Budista das Oitavas.

O conteúdo do Atthaka muitas vezes se contrapõe ao que se encontra em outros volumes da literatura canônica budista. A sua extrema antiguidade é atestada, além de outras provas, pelo fato dele ser mencionado em outras partes do Cânone. As incongruências e as contradições verificadas entre os diversos ensinamentos budistas, quando se comparam outros textos em páli com o Atthaka, só podem ser explicadas admitindo-se que os demais registros tenham sido escritos em época consideravelmente posterior a este.

Segundo Thanissaro Bhikkhu, monge budista e um dos principais tradutores do Atthaka para a língua inglesa, os versos do Atthaka tratam do tema do não apego. Nele, todos os quatro tipos de apego são tratados: o apego aos prazeres dos sentidos, o apego às ideias, o apego aos preceitos e rituais e o apego às teorias acerca de um eu. Os versos descrevem o que constitui a natureza do apego em cada caso em particular, as desvantagens do apego, as vantagens em abandonar o apego e os sutis paradoxos com respeito ao que significa o não apego.

Sobre a minha tradução da obra

O páli é uma língua litúrgica utilizada na escola teravada do budismo. Pertence ao tronco linguístico indo-europeu. É uma língua antiga indiana, provavelmente próxima daquela falada pelo Buda.

Pode-se dizer que o páli é uma forma simplificada de sânscrito. A sua fama advém de ser a língua na qual foram registradas as escrituras do budismo teravada, conhecidas como o Cânone Páli, no Sri Lanka (séc. I a.C.).

Muitos budistas da escola teravada acreditam que o páli foi a língua falada pelo Buda. Foi criada por Sidarta Gautama, o fundador do budismo, por volta do século V a.C., para redigir seus sermões a partir do magádi popular, que era uma forma não erudita do magádi utilizada pelas pessoas mais pobres do antigo reino de Mágada (ele se situava principalmente na região sul do rio Ganges, na atual Índia). Entretanto, é incerto se ela sequer chegou a ser de fato uma língua falada. Muitos pesquisadores consideram que era uma língua puramente literária criada a partir de alguns dialetos hindus, sendo o próprio magádi um dos seus mais prováveis ancestrais.

Ora, se o estudo do sânscrito antigo já é algo consideravelmente complexo para um ocidental, e requer muitos anos de dedicação, imaginem o páli, que é uma variação litúrgica do sânscrito.

Considerando este cenário, seria deveras complexo e pretensioso traduzir tal obra direto do original. Felizmente, no entanto, posso contar com a tradução clássica de Max Fausböll para o inglês, publicada na célebre coleção The Sacred Books of the East (Os Livros Sagrados do Leste; um total de 50 volumes publicados de 1879 a 1910), fonte essencial da história das religiões e da mitologia comparada, que serviu de base para a criação da disciplina acadêmica Ciência da Religião.

Desta mesma coleção, eu mesmo já traduzi o Dhammapada budista, assim como o Bhagavad Gita hindu e o Tao Te Ching taoista, todas elas traduções muito bem recebidas. Ainda assim, para a tradução do Atthaka também me vali do auxílio de outras traduções inglesas, dentre elas a do orientalista Laurence Khantipalo Mills e as dos monges budistas (bhikkhu é uma palavra derivada do sânscrito, que significa “monge ordenado”) Bhikkhu Sujato, Pannobhasa Bhikkhu e, finalmente, a tradução do já citado Thanissaro Bhikkhu.

Você pode encontrar a minha tradução na Amazon, em e-book. Em breve também teremos a versão impressa.

Uma amostra (exclusiva para o Morte Súbita)

Abaixo, trago a tradução do décimo poema da obra, intitulado Antes da dissolução do corpo:

Um monge:

“Como se comporta,

como contempla o mundo,

alguém que alcançou a paz?

Gautama, me fale sobre

a pessoa suprema.”

 

O Buda:

“Livre do desejo,

ele despertou

antes da dissolução [do corpo],

sem laços com o que foi

ou será,

além das categorizações,

ele vive

sem preferência alguma.

 

Sem raiva,

sem medos,

sem ostentação,

sem ansiedade,

dando conselhos sem perturbação,

ele é um sábio

cujo discurso

jamais escapa do controle.

 

Livre da angústia

em relação ao futuro,

sem lamentações

acerca do passado,

ele se mantém recluso

em meio à multidão,

ele não pode ser influenciado

pelo ponto de vista alheio.

 

Retirado,

jamais enganoso,

nem mesquinho ou avarento,

nem insolente ou agressivo,

ele não se envolve

com discursos divisivos.

 

Ele não se embriaga em tentações,

não é afeito ao orgulho –

ele é gentil e perspicaz,

além da convicção

e do desapego às paixões.

 

Ele não assume o seu treinamento

em busca de ganhos materiais;

ele não se abala

com a falta de recursos.

 

Desobstruído dos desejos,

ele não anseia experimentar

este ou aquele novo sabor.

 

Equânime, sempre atento,

ele não se supõe igual,

nem superior ou inferior

a qualquer um neste mundo.

Ele já não se deixa mais inchar

pelo orgulho.

 

Ele já não depende de mais nada,

ele segue o seu Darma

como um andarilho desenlaçado

do anseio de chegar:

assim dizemos, ‘ele está na paz’,

sem apego aos prazeres sensuais,

sem absolutamente nada

o prendendo aqui ou ali –

eis aquele que cruzou

a fronteira do ‘eu necessito’.

 

Ele não tem filhos,

nem gado, nem campo nem terra.

Nele você já não pode definir

o que é abraçado ou rejeitado.

 

Ele não se abala

pelo que as pessoas comuns,

ou os nobres e os outros monges

possam achar dele –

ele segue seu caminho

sem se preocupar com a opinião alheia.

 

A sua ganância virou pó,

ele não é mesquinho

nem miserável:

quando fala de si mesmo,

não se coloca em posição

superior ou inferior aos demais.

 

Assim, livre de suposições,

ele não segue teoria alguma.

Para quem sabe

que nada no mundo lhe pertence,

não há por que se afligir

pelo que não é,

não há por que se enlaçar

em doutrinas ou fenômenos:

assim dizemos,

‘ele está na paz’.”


Saiba mais sobre o autor em www.raph.com.br

Obs.: Texto destinado exclusivamente ao site Morte Súbita.

Deixe um comentário


Apoie. Faça parte do Problema.