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Robson Belli[1]
No meu curso sobre o Heptameron, o influente grimório atribuído ao filósofo e alquimista italiano Pietro d’Abano, organizei todo um esquema capaz de pegar uma pessoa que não tem nada senão o interesse em um praticante ipso facto de magia cerimonial. Nesse percurso, condensado em seis aulas pego na mão dos iniciantes e entrego-os na boca do círculo mágico para que possam começar a trabalhar por si mesmos. E com a prática invariavelmente descobri que a primeira etapa, não, a etapa zero, é a capacidade de se comunicar com o espírito evocado.
Meu primeiro conselho é simples. Pare de fantasiar! Se você está esperando um coral de anjos e trombetas que pode ser gravado com seu celular ou incomodar os vizinhos é melhor abandonar a magia cerimonial e ir assistir algum seriado de magia no Netflix. Seja como for às vezes óbvio precisa ser dito: espíritos não possuem cordas vocais, boca, pulmões ou garganta, portanto, não emitem sons audíveis como humanos
A comunicação espiritual não ocorre por meios físicos e não deve ser confundida com ilusões e devaneios de ouvir vozes fisicamente audíveis. Embora alguns médiuns relatem a experiência de ouvir vozes como se fossem sons reais, essa percepção geralmente é uma interpretação dos pensamentos intrusivos, onde o cérebro do médium “traduz” essas impressões mentais em uma forma que parece audível, mesmo que não seja captada pelos ouvidos. Todo mundo em algum momento experimenta isso. Antes de dormir naquela etapa entre o sono e a vigília são comum relatos de vozes na cabeça de intensidades variadas. A ciência chama elas de ilusões hipnagógicas. Essas vozes (assim como imagens mentais) surgem devido a uma combinação de atividade cerebral ainda ativa e um relaxamento dos processos inibitorios naturais. Esses mesmos processos são vencidos pelo uso de enteogenos, mas não recomendo estamos falando de magia cerimonial tradicional aqui. Para quem tiver interesse em psiconautica recomendo o livro Psicotropicon, de Tamosauskas.
Se o diálogo com os espiritos ocorre internamente, então o praticante precisa aprender a ouvir sua própria mente. Uma dica valiosa aqui: nesse exato momento você já está recebendo “a voz” do seu Sagrado Anjo Guardião, mas se você é uma pessoa normal provavelmente há tantas outras vozes juntas, suas e intrusivas, que pouco é possivel discernir deste ruído interno.
Por isso meditação é uma ferramenta tão fundamental tanto no processo iniciatico quanto na magia prática, mas é importante esclarecer que se trata de um tipo de meditação diferente daquelas que visam silenciar a mente ou mesmo alcançar o relaxamento profundo. A meditação que buscamos está alinhado com práticas contemplativas tradicionais, como o Vipassana no budismo, que se concentra na observação dos pensamentos e sensações sem julgamento. Essa meditação tem como objetivo a contemplação do fluxo mental sem a tentativa de controlá-lo ou influenciá-lo ativamente. Ao observar passivamente os pensamentos, o mago aprende a distinguir entre suas próprias vozes interiores e os pensamentos intrusivos, o que é um passo crucial para estabelecer comunicação com entidades espirituais.
O desenvolvimento dessa habilidade requer paciência, autoconhecimento e uma prática constante de auto-observação. Ao longo do tempo, o mago se torna mais habilidoso em discernir entre o seu próprio fluxo mental e as comunicações espirituais, abrindo caminho para uma prática mágica mais consciente e eficaz. Quanto mais o mago estiver habituado a escutar seus próprios pensamento mas claro será quando, em um contexto ritual, uma voz ‘estrangeira’ surgir em sua mente.
Para os praticantes que ainda não desenvolveram essa capacidade de discernimento, a frustração com a prática mágica pode ser uma consequência comum. A falta de habilidade para identificar corretamente as influências espirituais pode levar a decepções e a um sentimento de desconexão com os rituais. Portanto, é imprescindível dedicar-se a esses exercícios de percepção e consciência, como parte integral do treinamento mágico, para alcançar resultados satisfatórios e uma conexão mais profunda com o mundo espiritual.
Existem também exercícios específicos de desenvolvimento mediúnico, que treinam o praticante a concentrar-se em sons sutis, como o chiado dos ouvidos, também conhecido como “tinnitus espiritual”. Esse som constante, que pode ser ouvido em ambientes silenciosos, serve para aguçar a atenção do praticante, funcionando como um ponto de foco que facilita a percepção de pensamentos intrusivos oriundos de espíritos. Devido à sua natureza estranha e distinta dos pensamentos do praticante, esses pensamentos tendem a ser mais perceptíveis e, com um pouco de concentração e prática, podem ser identificados com maior clareza.
Se você tiver muita dificuldade em desenvolver esse contraste mental entre sua própria voz interna e pensamentos intrusivos, recomendo a leitura de outro artigo que publiquei aqui no Morte Súbita chamado ‘Eu vejo gente morta, anjos e demônios também!’. E se você quer saber quais são os próximos passos para se tornar um praticante de magia cerimonial segundo a tradição grimorial estou te esperando nesse curso do Heptameron.
Robson Belli, é tarólogo, praticante das artes ocultas com larga experiência em magia enochiana e salomônica, colaborador fixo do projeto Morte Súbita, cohost do Bate-Papo Mayhem e autor de diversos livros sobre ocultismo prático.
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