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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Num certo estágio da sociedade antiga, era comum considerar que o rei ou o sacerdote fossem dotados de poderes sobrenaturais ou que fossem a encarnação de uma divindade e, de acordo com essa crença, supunha-se que o curso da natureza estivesse mais ou menos sob o seu controle, razão pela qual eram considerados responsáveis pelo mau tempo, pelas más colheitas e calamidades semelhantes. Parece que, até certo ponto, existia a suposição de que os poderes do rei sobre a natureza, como o poder sobre seus súditos e escravos, se exercia através de atos claros de sua vontade e, portanto, se havia seca, escassez, peste ou tempestade, o povo atribuía o infortúnio à negligência ou culpa do seu rei, e o castigava devidamente, açoitando-o e amarrando-o e — caso ele permanecesse insensível — depondo-o e matando-o. Mas, por vezes, se supunha que o curso da natureza, embora considerado como dependente do rei, era parcialmente independente de sua vontade: sua pessoa é con- siderada, se assim podemos dizer, como o centro dinâmico do universo, do qual se irradiam linhas de força para todos os cantos dos céus, de modo que qualquer movimento do rei — o voltar da cabeça, o erguer da mão — afeta de imediato e pode perturbar seriamente alguma parte da natureza. Ele é o ponto de apoio do qual depende o equilíbrio do mundo, e a menor irregularidade de sua parte pode perturbar esse delicado equilíbrio. Impõe-se, portanto, o maior cuidado, tanto do rei consigo mesmo como de seus súditos no trato com ele. Toda a sua vida, nos mínimos detalhes, deve ser regulada de modo que nenhum ato seu, voluntário ou involuntário, possa modificar ou perturbar a ordem estabelecida da natureza. O micado ou dairi, o imperador espiritual do Japão, é, ou melhor, era o exemplo típico dessa classe de monarcas. Ele é a encarnação da deusa do sol, a divindade que governa o universo, inclusive os deuses e os homens. Uma vez por ano, todos os deuses vêm servi-lo, e passam um mês na sua corte. Durante esse mês, cujo nome significa “sem deuses”, ninguém freqüenta os templos, pois acredita-se que estejam vazios. O micado recebe de seu povo, e adota nas suas proclamações oficiais e nos seus decretos o título de “divindade manifesta ou encarnada” (akitsu kami) e se arroga uma autoridade geral sobre os deuses do Japão. Por exemplo, num decreto oficial do ano de 646, o imperador é descrito como “o deus encarnado que governa o universo”.
No reino do Congo, na África ocidental, havia um sumo pontífice chamado chitóme, ou chitombé, considerado pelos negros como um deus na terra e todo-poderoso no céu. Assim, antes que qualquer outro os provasse, os primeiros frutos da temporada lhe eram oferecidos, pelos súditos receosos das múltiplas infelicidades que se abateriam sobre eles se desobedecessem a essa lei. Quando ele deixava sua residência para visitar outros lugares sob sua jurisdição, os casais tinham de observar uma abstinência rigorosa durante todo o tempo em que estivesse fora, pois se achava que qualquer ato de incontinência lhe seria fatal. E se ele morresse de morte natural, acreditava-se que o mundo pereceria, e a terra — que, sozinho, conservava apenas com seu poder e medito — seria imediatamente aniquilada. Da mesma forma em Humbe, um reino de Angola, a incontinência dos jovens na puberdade constituía crime capital, porque se acreditava que isso provocaria a morte do rei naquele mesmo ano. Mais recentemente, a pena de morte foi comutada por uma multa de dez bois, imposta a cada um dos culpados. Essa comutação atraiu milhares de jovens dissolutos a Humbe, procedentes das tribos vizinhas, entre as quais a pena de morte ainda é observada com rigor.
Em qualquer lugar, como no Japão ou na África ocidental, onde se suponha que a ordem da natureza e mesmo a existência do mundo dependem da vida do rei ou do sacerdote, é claro que este deve ser considerado pelos seus súditos como uma fonte tanto de infinitas bênçãos como de perigo não menos infinito. De um lado, deve- se-lhe o agradecimento pela chuva e pelo bom tempo propícios aos frutos da terra, pelo vento que leva os navios ao litoral e mesmo pelo chão firme que o homem tem sob seus pés. Mas aquilo que o rei dá, também pode recusar, e tão grande é a dependência em que a natureza se encontra de sua pessoa, tão delicado o equilíbrio do sistema de forças do qual ele é o centro, que a menor irregularidade de sua parte pode provocar um tremor que abalará os alicerces da terra. E, se a natureza é perturbada pelo menor ato involuntário do rei, é fácil imaginar a agitação que a sua morte não provocará. A morte natural do chitomé, como vimos, era considerada como equivalente à destruição de tudo. Evidentemente, portanto, é com vistas à sua própria segurança, que podia ser posta em risco por qualquer ato impensado e mais ainda pela morte do rei ou do sacerdote, que o povo exigirá do rei ou do sacerdote a obediência rigorosa às regras cuja observação é considerada necessária à sua preservação, e conseqüentemente à preservação de seu povo e do mundo. A idéia de que os reinos antigos eram despotismos nos quais o povo existia apenas para o soberano é totalmente inaplicável às monarquias de que falamos. Pelo contrário, nelas o soberano existe apenas para os seus súditos: sua vida só tem valor enquanto ele desempenha as funções de sua posição, ordenando o curso da natureza em benefício de seu povo. Tão logo ele se mostra incapaz disso, o zelo, a devoção, a homenagem religiosa que até então lhe haviam sido dispensados cessam e se transformam em ódio e desprezo. Ele é afastado vergonhosamente, e deverá sentir-se grato se escapar vivo. Venerado como deus num dia, é abatido como um criminoso no dia seguinte. Mas não há, nessa modificação do comportamento do povo, nada de caprichoso ou de incoerente. Pelo contrário, sua conduta é perfeitamente lógica. Se o rei é o seu deus, é, ou deveria ser, capaz também de ser seu protetor; se não for capaz de proteger seu povo, deve dar lugar a outro que tenha condições de fazê-lo. Mas enquanto o rei corresponder às expectativas de seus súditos, não há limite ao cuidado que estes têm com ele e que o forçam a ter para consigo mesmo. Um rei desse tipo vive cercado por uma etiqueta cerimoniosa, por uma rede de proibições e observações que não visam a contribuir para a sua dignidade, e muito menos para seu conforto, mas a impedir que ele se comporte de modo a , que perturbando a harmonia da natureza, possa acarretar para si, para seu povo e para o universo uma catástrofe. Dos tabus impostos aos sacerdotes, podemos encontrar um exemplo notável nas regras de vida determinadas para o flamen dialis, um dos flâmines de Roma, que tem sido interpretado como a imagem viva de Júpiter ou uma materialização humana do espírito do céu. Essas regras eram as seguintes: o flamen dialis não podia montar ou tocar um cavalo, nem ver um exército em armas, nem usar um anel que não estivesse quebrado; não podia haver nó em qualquer parte de suas vestes; nenhum fogo, exceto o fogo sagrado, podia ser retirado de sua casa; não podia tocar farinha de trigo ou pão fermentado; não podia tocar, e nem mesmo mencionar, um bode, um cão, carne crua, favas e hera; não podia passar sob uma parreira de uvas; os pés de sua cama tinham de ser sujos de lama; seu cabelo só podia ser cortado por um homem livre e com uma faca de bronze; seus cabelos e unhas, quando cortados, tinham de ser enterrados sob uma árvore da sorte; não podia tocar um corpo morto nem entrar num lugar onde um cadáver estivesse sendo incinerado; não podia ver um trabalho ser realizado em dias sagrados; não podia ficar à descoberto ao ar livre; se um homem amarrado fosse levado à sua casa, o cativo teria de ser desamarrado e as cordas tinham de ser retiradas por um buraco no teto e levadas dessa forma para a rua.
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