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Patrícia Schlithler da Fonseca Cardoso[*]
Excerto da Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Os Papiros Gregos Mágicos (PGM)[1] são uma coletânea de textos mágicos greco-romanos encontrados no Egito, que datam do século II a.C. ao século V d.C.. Nele encontramos “receitas” para feitiços com as mais diversas finalidades, proporcionando descrições detalhadas das práticas de magia correntes; além disso, encontramos também o registro de feitiços realizados, tratados sobre astrologia e outros tipos de oráculos.
A grande maioria dos textos dos PGM foi descoberta no século XIX. Parte significativa desses papiros foi primeiramente comprada por Giovanni Anastasi, antiquário armênio e diplomata do Reino da Suécia e Noruega, e depois vendida para diversos museus e colecionadores da Europa. Esses textos foram então reunidos com outros papiros comprados por outros colecionadores na edição feita por Preisendanz, publicada em dois volumes em 1928 e 1931. Essa edição passou por melhorias e contribuições de outros estudiosos até chegar a sua forma atual, publicada em 2001. Há uma tradução para língua inglesa com comentários organizada por Betz, porém não apresenta os textos originais. Além disso, essa nova edição dos PGM expande a anterior e inclui textos que não estão presentes em Preisendanz[2].
Essa coletânea de textos é também um grande apanhado de diferentes influências religiosas presentes no Egito durante a Antiguidade Tardia e os séculos anteriores. Além dos esperados elementos gregos, figuram também elementos egípcios, gnósticos, persas, mitráicos, babilônicos, romanos e semíticos[3]. A natureza sincrética de muitos desses textos é um reflexo das várias influências presentes no Egito na época do registro dos feitiços. O texto mais antigo dos PGM data da época da morte de Alexandre, o Grande, enquanto o mais recente é do século V d.C.[4]. Esse longo período de quase oitocentos anos abrange o período Ptolomaico e Romano no Egito. Muitos dos elementos que podem nos parecer estranhos a princípio – por exemplo, o fato de que, apesar de a coleção se chamar Papiros Gregos[5] Mágicos, o deus invocado com mais frequência é o da religião judaica[6] – fazem sentido se considerarmos os povos que viviam no Egito na época[7]. Brashear ainda argumenta que vários dos textos provavelmente são cópias de versões mais antigas, portanto alguns deles retratam um período da “religiosidade” anterior ao presente no Egito greco-romano.
Quando observamos textos como os PGM, nos deparamos com algumas questões: o que é “magia” e o que faz esses papiros serem classificados como “mágicos”? Tradicionalmente, “magia” é um termo definido em oposição a “religião”; enquanto religião possui um status oficial, a magia pode ser pensada como uma espécie de religião ilegítima[8]. Entretanto, o termo “magia” é extremamente abrangente e pode incluir diversas práticas que não são necessariamente relacionadas entre si e, muitas vezes, fazem parte do campo tradicional de “religião”, tal como é o caso de oráculos e divinação[9]. É importante notar também que o termo pode evocar muitos significados que não condizem totalmente com os textos dos PGM; por exemplo, a magia como prática coerciva de manipulação das forças divinas. Encontramos textos nos PGM de natureza laudatória com estruturas hínicas muito próximas ao que se esperaria de textos religiosos tradicionais. Dessa forma, esses textos extrapolam a definição de magia como prática coerciva utilizada pelo praticante para ordenar que as divindades o obedeçam em oposição às práticas religiosas, nas quais o praticante persuade as divindades com pedidos e elogios.[10] Além disso, há ocasiões em que o termo magia é utilizado com julgamento de valor e ainda refletindo um ponto de vista etnocêntrico, especialmente quando aplicado a culturas não ocidentais[11]. Mesmo quando utilizado sem julgamento de valor, o termo magia nem sempre traduz de modo eficaz as práticas de algumas sociedades. É o que ocorre com heka, termo egípcio tradicionalmente traduzido como “magia” – que é também uma divindade. No entanto, heka é um elemento fundamental na religião oficial do Egito (assim como sua versão deificada), mostrando mais uma vez que a díade religião e magia é mais complexa do que aparenta ser[12]. Inclusive, heka chegou à língua copta como ϩⲓⲕ, palavra utilizada para traduzir o grego µαγεία[13].
Μαγεία, por sua vez, é um termo que aparece algumas vezes nos PGM se referindo aos encantamentos presentes nos papiros e a práticas mágicas em geral:[14] PGM I. 126, ὦ µακάριε µύστα τῆς ἱερᾶς µαγείας (“ó bem-aventurado iniciado nos mistérios da magia sagrada”) e PGM IV. 2446 – 2249, ἐπεδείξατο Παχράτης, ὁ προφήτης Ἡλιουπόλεως, Ἁδριανῷ βασιλεῖ ἐπιδεικνύµενος τὴν δύναµιν τῆς θείας αὑτοῦ µαγείας (“Pakhrates, o profeta de Heliópolis, revelou ao rei Hadriano demonstrando o poder de sua magia divina”). Nesses casos, podemos interpretar o uso do termo “magia” também como autoafirmação daqueles que realizavam essas práticas, ou seja, com um enfoque positivo. Esse ponto de vista é oposto ao daqueles que nomeiam as atividades de terceiros como magia, impondo à alteridade um status desvalorizado e/ou oposto à religião.[15]
Notas:
[1] Para boas introduções aos Papiros Gregos Mágicos, ver Nock (1972), Skinner (2014), especialmente capítulos 1 a 3, e Brashear (1995).
[2] Betz (1992), Preisendanz (2001).
[3] Brashear (1995), p. 3390 – 3458.
[4] Skinner (2014), p. 44.
[5] Ritner (1995) questiona o uso do nome “Papiros Gregos Mágicos” para se referir a esse corpus. Ele argumenta que, apesar dos textos estarem em língua grega, não necessariamente refletem a tradição grega. O uso da palavra “gregos” no título estaria negligenciando a enorme influência egípcia nesses feitiços. Desta forma, um termo mais adequado para se referir a esses textos seria “greco-egípcio”.
[6] Smith (1978), p. 132.
[7] Para mais informações sobre o contexto histórico, linguístico e cultural do Egito relevantes para o estudo de papiros, ver Bagnall (1979), especialmente capítulos 17, 18 e 24. Especificamente sobre o povo judeu no Egito (períodos Ptolomaico, Romano e outros), ver Kasher, Aryeh. The Jews in Hellenistic and Roman Egypt: the struggle for equal rights. Vol. 7. Mohr Siebeck, 1985..
[8] Otto (2013), p.1.
[9] Skinner (2014), p. 18 – 20
[10] Graf (1991)
[11] Otto (2013), p. 6 , Ritner (1993), p. 4
BIBLIOGRAFIA
BAGNALL, Roger S.. Reading papyri, writing ancient history. Londres: Routledge, 1995.
BETZ, Hans Dieter (Ed.). The Greek Magical Papyri in Translation: Inclusing the Demotic Spells. 2. ed. Chicago: The University Of Chicago Press, 1992.
BETZ, Hans Dieter. The Delphic Maxim “Know Yourself” in the Greek Magical Papyri. History Of Religions, Chicago, v. 2, n. 21, p.156-171, nov. 1981
BRASHEAR, William M.. The Greek Magical Papyri: an Introduction and Survey; Annotated bibliography (1928 – 1994). In: TEMPORINI, Hildegard; HAASE, Wolfgang (Ed.). Aufstieg und Niedergang der römischen Welt: II. 18.5. Berlim: Walter de Gruyter, 1995. p. 3380-3684.
GRAF, Fritz. Prayer in Magical and Religious Ritual. In: FARAONE, Christopher; OBBINK, Dirk (Ed.). Magika Hiera. Oxford: Oxford University Press, 1991. p. 188- 213.
MOKE, David Frederick. Eroticism in the Greek Magical Papyri: Selected Studies. Ann Arbor: University Of Minnesota, 1975.
OTTO, Bernd-christian; STAUSBERG, Michael (Ed.). Defining Magic: A Reader. Sheffield e Bristol: Equinox, 2013.
PREISENDANZ, Karl (Ed.). Papyri Graecae Magicae: Die Griechischen Zauberpapyri. Munique: K. G. Saur, 2001.
RITNER, Robert. Egyptian Magical Practice under the Roman Empire: the Demotic Spells and their Religious Context. In: TEMPORINI, Hildegard; HAASE, Wolfgang (Ed.). Aufstieg und Niedergang der römischen Welt: II. 18.5. Berlim: Walter de Gruyter, 1995. p. 3333-3379.
RITNER, R. K.. The Mechanics of Ancient Egyptian Magical Practice. Chicago: The Oriental Institute, 1993.
SKINNER, Stephen. Techniques of Graeco-Egyptian Magic. Singapura: Golden Hoard Press, 2014.
SMITH, Morton. Relations between magical papyri and magical gems. In: BINGEN, G.; NACHTERGAEL, J. (Ed.). Actes du XVe Congrès International de Papyrologie. Bruxelas: Fondation Égyptologique Reine Élisabeth, 1979. p. 129-135.
Patrícia Schlithler Cardoso é doutora em Letras Clássicas pela USP. Possui também mestrado e graduação pela mesma instituição, com estágio de pesquisa realizado na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Pesquisa os Papiros Gregos Mágicos e língua grega antiga. É também musicista.
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