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Um Sonho de Georg Christoph Lichtenberg

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Georg Christoph Lichtenberg [1]

Tradução: Shirlei Massapust

            Eu me senti como se flutuasse bem acima do solo quando me encontrei face a face com um impressionante ancião cuja aparência me inspirava um sentimento para além do mero respeito. Sempre que eu abria os olhos diante dele, era tomado por um irresistível sentimento de reverência e confiança. Eu estava prestes a me prostrar diante dele, quando o ancião se dirigiu a mim com uma voz de indescritível gentileza. “Trago comigo algo que poderá ser de utilidade a ti, que amas estudar a natureza”. Ao dizer isso, ele me entregou uma esfera de coloração azul esverdeada, sarapintada de cinza aqui e ali, que segurou entre o indicador e o polegar. Parecia-me medir cerca de uma polegada de diâmetro.

“Pegue este mineral”, continuou ele, “examine-o e diga-me o que vier a descobrir. Atrás de você encontrarás o laboratório mais completo possível para realizar tais investigações. Agora retirar-me-ei, mas retornarei para ter contigo em tempo útil”.

Quando olhei em volta vi uma formidável sala com todos os tipos de ferramentas, o que não me pareceu tão estranho no sonho como depois que acordei. Senti como se eu já houvesse estado lá muitas vezes antes. Encontrei o que necessitava tão prontamente como se eu mesmo houvesse preparado tudo com antecedência. Inspecionei, tateei e cheirei a esfera diversas vezes. Agitei-a e ouvi-a como se fosse uma pedra preciosa.[2] Eu a provei com minha língua. Com um pano limpo removi a poeira e uma espécie de mancha quase imperceptível. Aqueci-a e esfreguei-a na manga do casaco para sobressaltar a eletricidade estática.  Testei-a em aço, vidro e ímãs. Determinei seu peso específico, que era, se bem me lembro, entre quatro e cinco.

As provas transcorreram de tal modo que conclui que o mineral valia muito pouco. Lembro-me também de que, quando criança, comprei esferas do mesmo tipo, ou pelo menos não muito diferentes, ao preço de três por um Kreuzer em uma feira de Frankfurt.

Então procedi testes químicos e determinei os componentes do todo em porcentagens. Aqui novamente não encontrei nada de especial. Havia um pouco de argila, aproximadamente a mesma quantidade de óxido de cálcio, mas muito mais dióxido de silício e, finalmente, um pouco de ferro e cloreto de sódio e uma substância desconhecida, que tinha muitas características de substâncias conhecidas, mas nada peculiar a si mesma. Lamentei não saber o nome do ancião. Eu teria gostado de dar o nome dele à substância no rótulo, para homenageá-lo. Devo ter sido muito preciso em minha investigação, pois quando somei tudo o que havia encontrado, cheguei a exatamente cem. Assim que dei a última conferida em meus cálculos, o ancião entrou na sala.

Ele pegou o papel e leu-o com um sorriso gentil, que mal se notava. Então ele se virou para mim e, com um olhar cheio de bondade celestial misturada com seriedade, perguntou: “Tu sabes, ó mortal, o que é que você estava examinando?” Todo o seu tom e maneira de falar anunciavam claramente um ser sobrenatural.[3] “Não! Imortal”, elevei a voz, prostrando-me diante dele, “não sei”. Porque eu não queria mais confiar em minhas anotações.

Disse o fantasma: “Então saiba que, em menor escala, a esfera representava nada menos que o planeta Terra por inteiro”.

Eu: “Eterno grande Deus, onde estão os oceanos e toda a vida marinha?”

Ele: “Tudo isto está pendurado no seu guardanapo, pois você os enxugou”.

Eu: “Oh! Onde estão a atmosfera e toda a beleza dos continentes?!”

Ele: “A atmosfera deve ter sido destilada aí na retorta. Quanto às peculiaridades da terra firme – conforme sua questão – sendo poeira fina, na manga do seu casaco há um pouco”.

Eu: “Contudo, não encontrei vestígios da prata e do ouro que definem o orbe!”

Ele: “Isso é bastante ruim.  Vejo que devo ajudá-lo. Saiba que com uma punção tu destruíste toda a Suíça, Saboia e a parte mais formosa da Sicília. Tu arruinaste completamente e destruíste toda uma extensão da África de mais de mil milhas quadradas, do Mar Mediterrâneo até Tafelberg. Ali naquele painel de vidro – oh! Acabaram de desabar – lá estavam as Cordilheiras, e o que chamou sua atenção ao repartir a amostra na placa de vidro foi o vulcão Chimborazo”.

Eu entendi e permaneci em silêncio. Eu teria dado nove décimos da minha vida restante para reparar a Terra que danifiquei quimicamente. No entanto, não me atrevi a ofertar tal serviço. Quanto mais sábio e gentil for o doador, mais difícil será para o humilde pedir-lhe um segundo presente, especialmente quando sabe o mau uso feito do primeiro. Mas um novo pedido, pensei, este impressionante rosto paterno te perdoará: “Oh!”, eu exclamei, “grande ser imortal, ou sejas o que for, sei que tu podes aumentar um grão de mostarda até ficar tão espesso quanto toda a Terra. Permita-me estudar as elevações e as reentrâncias deste, acompanhar o desenvolvimento da semente até a germinação”.

“Como isso lhe seria proveitoso?”, foi a resposta dele. “A própria Terra já é um grão aumentado com a dimensão de um planeta. Pesquise-a”. Antes da sua conversão[4] você não chegará ao outro lado do véu. Você não alcançará o que busca, nem neste nem em qualquer outro grão da criação. Pegue esta sacola e analise o que tem dentro. Diga-me o que encontrarás.

Ao se afastar, acrescentou, quase brincando: “Entenda-me bem, analise quimicamente, meu filho”. Desta vez demorou mais. Que alegria poder investigar novamente! Pois desta vez, pensei, eu gostaria de proceder com mais esmero. “Tenha cuidado, disse a mim mesmo, pode ser algo brilhante. Se brilhar, certamente será o Sol, ou alguma outra estrela fixa.” Ao abrir a sacola encontrei, contrariando todas as minhas expectativas, um livro, um volume simples e nada brilhante.

A linguagem e a escrita não eram das mais conhecidas e, embora as características de algumas linhas parecessem praticamente as mesmas quando vistas superficialmente, quando examinadas mais de perto elas não eram mais do que as mais complicadas. Tudo o que consegui ler foram as palavras na página de título: “Analise isto, meu filho, mas quimicamente, e diga-me o que encontrarás”.

Não posso negar que me senti um tanto desconcertado em meu espaçoso laboratório. “Como”, disse a mim mesmo, “deveria examinar quimicamente o conteúdo de um livro? Se o conteúdo de um livro é o seu significado, a análise química equivaleria à analisar papel e tinta”. Enquanto pensava por um momento, repentinamente surgiu um halo de luz em minha cabeça, e com a luz veio um rubor de vergonha intransponível. “Oh!”, gritei cada vez mais alto, “eu entendo, eu entendo! Perdoe-me, Ser imortal, perdoe-me. Aceito sua bondosa reprimenda! Agradeço ao eterno por poder entendê-lo!” Fiquei comovido além das palavras. Então eu acordei.


Bibliografia:

LICHTENBERG, Georg Christoph. A Dream. Translated by Meyer Schapiro. Em: THE NEW YORK REVIEW, edição de 13/08/1970. URL: <https://www.nybooks.com/articles/1970/08/13/a-dream/>.

LICHTENBERG, Georg Christoph. Ein Traum. Em: Posto online por Meine Bibliothek Zeno.org, acessado em 04/08/2024. URL: <http://www.zeno.org/nid/20005270367>.

LICHTENBERG, Georg Christoph. Un sueño y otros aforismos. Presentación y traducción de Juan Villoro. México, Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), 2006, p 9-14. Posto online para download gratuito em formato PDF: <http://www.enelaula.unam.mx/Libreria/DGPYFE_1A%20LIBRERIA_47/Un%20sueno%20y%20otros%20aforismos.pdf>.

NOTAS

[1] Georg Christoph Lichtenberg (1742-1799) foi um filósofo, escritor e matemático alemão. Foi admitido na Universidade de Gottingen em 1763, onde estudou matemática e ciência natural. Em 1770 se tornou professor na universidade. Como cientista, ele foi o primeiro a ter um cargo de professor explicitamente dedicado à física experimental na Alemanha. Ele é lembrado por seus cadernos publicados postumamente, que ele mesmo chamou de sudelbücher, e por sua descoberta de padrões de descargas elétricas chamados de figuras de Lichtenberg. O escrito Ein Traum, que hora traduzo, foi impresso pela primeira vez em Göttinger Taschenkalender (1794). O psicólogo austríaco Alfred Adler (1870-1937) escreveu que: “Lichtenberg, contemporâneo a Goethe, asseverou que melhor se pode inferir o caráter e a essência de um ser humano de seus sonhos, do que de suas ações e palavras. Há por certo exagero nessa afirmação. Adotamos a regra de que só com o maior cuidado nos devemos utilizar de fenômenos isolados da vida psíquica, e mesmo assim em conexão com outros fenômenos”. (ADLER, Alfred. A Ciência da Natureza Humana. 4ª edição. Trad. Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1957, p 111-112).

[2]Adlerstein” (pedra de águia) no idioma original. Antigamente acreditava-se que era possível encontrar gemas preciosas dentro dos ninhos das aves. Talvez a lenda fosse inspirada no achado de ovos fossilizados.

[3] Aqui salta à vista a autonomia entre a natureza do humano mortal (Sterblicher) e do imortal (Unsterblicher) dito sobrenatural (Überirdischen), o espectro (Geist), o eterno grande Deus (Ewiger, großer Gott).

[4] Conversão (Umwandlung) pode ser também uma transformação ou metamorfose física.


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