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Paracelso
CAPÍTULO I
(Onde se explica o princípio do fogo e da metodologia médica)
A primeira coisa que todo médico deve saber é que o homem pode se compor de três substâncias. E ainda que venha do nada, ele sempre foi feito com alguma coisa, justamente esta que vamos dividir em três. Enquanto entidade física o homem possui nelas todo o bem e todo o mal. Por isso interessa ao médico conhecê-las intimamente, tanto em sua divisão e composição como em sua conservação e dissolução. A saúde ou a doença, em suas três divisões (mínima, média e total) são consequências disso, assim como seu peso e sua quantidade.
Mas o número e a medida (in pondere, in numero, in mensura) são propriedades específicas do estado doentio, cujo fundamento deve ser estabelecido sem equívocos. Vamos examinar este caso detidamente nesta introdução.
Do mesmo modo c conforme essas três coisas, analisaremos o problema da morte. Tais coisas mantêm a vida dentro dos seus próprios limites assim como a mais íntima relação (colligatio) diante da vida e do homem. Dessas três substâncias vêm todas as causas, origens e conhecimentos das doenças, assim como os sinais e propriedades de tudo aquilo que o médico deve saber. Elas constituem a ciência que lhes dará o conhecimento de como o homem pede ficar doente ou curar-se, devendo saber que não só a enfermidade nasce da saúde, como também a saúde da enfermidade. Não basta conhecer as origens das doenças, mas também os modos como a saúde pode ser perturbada.
Acontece que os médicos incompetentes acabaram fazendo sombra na luz da natureza, ignorando suas três substâncias e construindo sua ciência unicamente sobre a base das fantasias produzidas por seus pobres cérebros. Eles não pensaram que nenhuma verdade fundamental nas doenças ou no homem não pode existir sem que tenha recebido sua luz na natureza, segundo podemos provar através de inúmeros testemunhos.
Com efeito esta é a grande luz do mundo. E digo que assim como o ouro pode ser avaliado até sete vezes pelo fogo, também o médico deve se provar sete ou mais vezes pelo fogo, já que este provará por sua vez as três substâncias, revelando-as nuas, puras, limpas e simples. Por isso não se pode dizer que alguma coisa tenha sido provada devidamente antes de submetida à prova do fogo.
O fogo prova todas as coisas. E ao separar as impurezas sempre acaba fazendo aparecer as três substâncias puras. Assim o médico será provado. Não pela própria natureza mas segundo a arte teórica e prática que tenha aprendido sob o batismo do fogo. Porque essas três coisas, esses três princípios, não são perceptíveis acs olhos dos rústicos e nem se deixam captar facilmente. Justamente o fogo é que acaba com a obscuridade que os envolve, expondo-os nitidamente aos nossos sentidos.
Esta há de ser a forma como a ciência da medicina deve se explicar. Assim pois, como obras de Deus, os médicos e a medicina foram criados do fogo e no fogo.
Por outro lado o médico não existe por si mesmo, mas pela medicina: razão pela qual ele deve se submeter ao exame da natureza, do mundo e de todas as coisas que ela contém.
Em semelhantes condições tudo o que aprender da natureza deve ser confiado à sua sabedoria sem pretender interpretar a natureza a partir das especulações de sua inteligência. Finalmente, uma vez recebido os bons conhecimentos, deverá depositar a doutrina e a experiência que eles lhes proporcionaram no fichário da memória. Exibindo a natureza e não ocultando-a, os médicos e as suas obras serão dignos de serem vistos como merecem.
É preciso que as causas da saúde e da doença sejam claramente visíveis e que nenhuma obscuridade seja projetada sobre elas. Por esta razão nos referimos antes ao fogo, em cujo seio todas as coisas estão escondidas e só aparecem sob a sua ação. Desta visibilidade (aspectu) nascem os testemunhos da ciência médica. Por isso o médico é médico pela medicina e não sem a medicina, porque esta é anterior a ele e existe por si mesma. De onde se deduz que o seu estudo está na observação dos fatos e não na imaginação dos médicos.
Na natureza da medicina será preciso contar com a sabedoria, com a arte teórica e prática do médico. Somente ele poderá refutar e declarar como erro tudo o que não se encontre na natureza e seja somente resultado de uma opinião preconcebida. Pois é verdade que o fogo foi conferido aos mestres e não aos discípulos.
Tornarei isto mais claro: digo que não existe nada no interior do homem que possa fazer dele um médico por mais brilhante que seja o seu gênio. Nada nele pertence à arte da medicina, pois seu espírito está tão vazio como uma cesta, apesar dele estar sempre disposto a receber e guardar as coisas que lhe sejam entregues e que são um verdadeiro tesouro. Falta entretanto a esse gênio brilhante a experiência da arte médica, pois na verdade tudo o que apreendemos e experimentamos deve ficar guardado por um certo tempo, e somente aplicado no momento oportuno.
Considerem agora estes exemplos.
Perguntem ao fabricante de vidros de onde ou de quem ele recebeu a sua arte. Certamente não foi dele mesmo, porque a sua razão sozinha não poderia apreender os fundamentos desta arte, apesar de que basta apenas que ele pegue a matéria e lance-a no fogo para que a luz da natureza faça aparecer o cristal diante dos seus olhos.
Vejam agora o carpinteiro. Pelo simples impulso de sua iniciativa ele pode adquirir esta arte e construir uma casa precisando apenas possuir um machado e uma bca madeira para este trabalho.
O médico é como o fabricante de vidros. Ainda que tenha diante de si um doente e diversos medicamentos à disposição, falta-lhe a ciência e o conhecimento das causas. Pele contrário, se possuir um machado e a madeira do carpinteiro, pode chegar a ser verdadeiramente um médico. Tanto de uma maneira como de outra, por mais que como um bom artesão ele se arme de um machado e coloque todo o seu talento pessoal para aprender a usá-lo, precisará do fogo para que o tesouro escondido apareça. Isto é, para que a farmacopeia e a ciência contida em sua inteligência alcancem a finalidade de sua medicina: comprovação que só corresponde ao médico.
Os ignorantes da ciência médica, ou melhor, os que não nasceram da natureza e que, presos à sua própria razão se satisfazem com ela sem querer reconhecer nenhum crutro preceptor, são simplesmente amassadores de areia. Pois digo que tudo aquilo que o fogo ensina não pode ser provado nem compreendido sem o fogo.
Falarei agora sobre a sabedoria que se divide em duas classes: uma vem da experiência e a outra do nosso trabalho. Por sua vez, a sabedoria e experiência são duplas: de um lado está a verdadeira base da medicina, e do outro encontramos o erro misturado com a sedução.
No primeiro desses grupos estão todas as verdades que o fogo proporciona quando por meio da arte de Vulcano realiza a transmutação, fixação, exaltação, redução, transposição e outras operações conexas. Nesta experiência as três substâncias da natureza chegam a aparecer, seja qual for a natureza, propriedade ou composição com que apareceram contidas nas coisas de todo o universo do mundo.
No segundo grupo estão todas aquelas coisas que se descobrem fortuitamente, sem nenhuma experiência anterior. Em tais casos, quando se encontra uma coisa verdadeira apenas uma vez, não se pode afirmar que ela se repita sempre com igual exatidão, sem o que nãc se pode usá-la como base firme cm nossos estudos ulteriores. O edifício que se constrói sem esses requisitos não tem fundamento e está sustentado apenas pelos erros, sofismas c ficções.
Que experiências pode ter aquele que só tenha pensado desta maneira? Eu digo que absolutamente nenhuma. Pelo contrário, retrocedendo de uma coisa para as outras, chegaremos à primeira, origem das demais, possuindo assim a arte de Vulcano.
Saibam que nunca serão doutores em medicina se desprezarem semelhantes lições e conferências. Mas devem perguntar qual foi o primitivo método de ensinamento e então comprovar que esse é o nosso método.
Reconheçamos então o nosso primeiro mestre na natureza de Vulcano, pois se alguém diz: “faz isso ou aquilo que se curará”, é preciso sabermos exatamente o que é que foi dito.
O mérito de tudo isso recai sobre aquilo que é a saúde mesma. Por isso devemos ir até ao fundo dos conhecimentos médicos, ou seja, da natureza, pois de outro modo não poderíamos nos considerar verdadeiros médicos.
Por isso, quando quiserem conseguir uma base correta, é conveniente que não pensem nem tratem de coisas invisíveis, mas das perfeitamente visíveis e palpáveis, porque não existe melhor motivo de reflexão para o médico do que contemplar o que Deus põe diante dos nossos olhos e nos leva assim, diretamente por nesso Salvador, ao fundamento de toda a verdade.
É preciso que a medicina esteja presente e seja tangível com a máxima evidência, de tal sorte que possamos tocá-la visivelmente e não como em uma sombra.
Acontece que todos os que não sabem ver com essa visão do fogo acreditaram que a medicina era algo invisível, donde resultou esse desvio sobre o qual assentaram o edifício de sua medicina incerta e movediça.
As explicações que acabamos de dar não bastam para compreender como existem quatro humores distintos no homem. Digo que isso corresponde à fé. apesar da insistência que faço afirmando que a medicina deve ser construída diante dos olhos e não da fé, exceto quando se trata de doenças da alma e da salvação eterna.
A medicina do corpo é visível sem nenhuma fé. Fora isso, certamente existem coisas erradas como existem religiões erradas. Nem todos os que dizem “Senhor, Senhor!” se veem curados pelo exorcismo. O mesmo acontece quando um falso médico aplica uma medicina c diz ao seu doente: “faz isso ou aquilo”, e não obtém nenhum resultado.
A medicina não faz caso de tais médicos, que também não podem ser bons pastores dos seus doentes porque estes os desconheceram. O conhecimento do doente por parte do médico faz parte de sua medicina. Por isso, somente aquele cuja presença é reclamada é o verdadeiro médico capaz de dar toda a medicina da terra.
Em resumo, o fato de que devemos conhecer e explorar as três substâncias subsiste fundamentalmente, náo pela simples inteligência mas pela experiência da dissolução da natureza e a pesquisa dc suas propriedades.
Da mesma forma o homem deve aprender toda sua sabedoria do grande mundo ou macrocosmo, e não de um só organismo ou microcosmo.
Todo médico se faz nesta concordância (quoe medicum integrat) -, o conhecimento do mundo e, nele c por ele, o conhecimento do homem. Isto não quer dizer que sejam duas coisas, mas uma só, que finalmente será completada pela experiência.
CAPITULO II
(Sobre as três primeiras substâncias)
Entre todas as substâncias do mundo existem três cujos corpos sempre vemos reunidos em cada um dos seres. Estas três substâncias — enxofre, mercúrio e sal — ao se unirem (com-ponuntur), compõem os corpos, aos quais nada poderá ser acrescentado, exceto o sopro da vida e o que com ele se relacione. Quero dizer que sempre que tenham um corpo qualquer em suas mãos, estão também tomando as três substâncias sob uma só forma ou espécie. Falaremos então dessas três coisas, porque na forma sob a qual existem se encontra toda a saúde.
Assim, quando pegam com as mãos um pedaço de madeira, o testemunho do que estão vendo dirá que se trata apenas de um só corpo. Sem dúvida isto não pode ser de nenhuma utilidade ou benefício, já que o mais ignorante dos homens pode ver a mesma coisa. Vocês, ao contrário, devem saber que têm nas mãos o enxofre, o mercúrio e o sal. Se realmente chegarem a percebê-los separadamente, seja por seu aspecto ou contato, digo que terão adquirido finalmente os olhos e a visão de um verdadeiro médico, já que o médico deve perceber estas três substâncias com a mesma precisão com que o camponês vê a simples madeira.
Este exemplo deve nos fazer pensar que as três substâncias se encontram igualmente no corpo do homem.
Ainda que nos ossos humanos estejam juntos o enxofre, o mercúrio e o salv somente podem dizer o que é um osso e que conhecem a razão e o mecanismo de suas enfermidades depois de tê-los examinado separadamente. Porque por mais que as aparências exteriores estejam ao alcance da percepção de todos, os médicos é que têm a obrigação de possuir essa visão especial do interior (contuitio) através da qual o segredo das coisas nos é dado.
E necessário então que as tornemci visíveis. Ainda que a medicina seja relativamente defeituosa nesta maneira de ver, temos que ir levantando os véus que as cobrem com toda a paciência e acabar mostrando a natureza em suas menores substâncias.
Se meditarem sobre isto, e chegarem até que ponto e em quantas classes a última matéria das coisas pode ser reduzida, verão que as três substâncias estão em todas elas perfeitamente independentes entre si. Com isso o médico consegue o que o impostor ou o profano não podem conseguir.
É preciso portanto conhecer primeiro estas três substâncias e suas propriedades no macrocosmo (in magno mundo) para poder se referir a elas e depois encontrá-las com facilidade no corpo humano (microcosmo), pretendendo assim o que ele é e o que nele existe.
Para um melhor entendimento voltaremos ao exemplo da madeira: se queimarem o corpo da madeira e observarem o que acontece, verão que existe uma coisa que arde — o enxofre — outra que faz fumaça — o mercúrio — uma outra que se transforma em cinzas — o sal. Este fenômeno de queimar a madeira confunde o homem rústico, mas dá ao médico um principio inicial da maior importância e o prepara para possuir o olho clínico.
Fiquemos pois com essa ideia de que as três substâncias são encontradas separadamente em todas as coisas e que existem iguaimente em todas elas. E que se tais substâncias não são perceptíveis à primeira vista, podem se revelar e se tornarem visíveis sob a influência da arte.
Somente o enxofre arde, e nada pode se transformar em fumaça além do mercúrio, assim como nada pode virar cinzas sem que seja sal.
A cinza é a substância, ou melhor, a parte da matéria que compõe a madeira. E ainda que ela seja a última e não a primeira substância, serve para testemunhar (testatur) a existência da primeira matéria, ao lado da qual — e também da segunda — encontra-se unida no corpo vivo. Pois se é certo que tudo o que se encontra no corpo vivo está ao alcance do povo, não c da mesma forma quando se trata das substâncias para as quais, segundo explicamos, é preciso um trabalho prévio de separação.
Não falarei aqui sobre a primeira substância porque não estou tratando agora de filosofia, mas somente de medicina.
Mas direi que onde existe fumaça, lá estará a segunda substância, volatilizada e sublimada pelo fogo. Porque ainda que o mercúrio não seja visível separadamente em seu primeiro estado, o é pelo contrário no momento de sua fuga, quando se transforma em fumo, último estado sob o qual não pode se fixar, permanecendo assim incapturável.
Da mesma forma, tudo aquilo que arde, aparecendo aos nossos olhos em esplêndidas brasas, é o enxofre. Pois assim como o mercúrio se sublima pela virtude de sua volatibilidade, o enxofre, que é fogo, representa a terceira substância das que formam a constituição do corpo.
Depois do que foi exposto devemos deduzir a teoria que nos permita estabelecer claramente a natureza do mercúrio, do enxofre e do sal que encontramos na madeira e em todas as outras matérias, e em que grau e forma entram na composição do microcosmo (do homem). Pois já sabemos que o corpo do homem não é outra coisa senão que enxofre, mercúrio e sal: substâncias onde se alojam a saúde e as doenças, e tudo o que se relacione com elas.
Insisto neste ponto porque verdadeiramente é nestas três substâncias que encontramos a razão das doenças e não nos quatro elementos ou qualidades.
Assim, por exemplo, ainda que as pedras, os metais e muitas outras substâncias não possam arder, faltando-lhes propriedades combustíveis, chegam a se tornar incandescentes (flagrabilia), como demonstra a ciência da alquimia. O mesmo pode se dizer com relação à sublimação de diversas substâncias, inclusive o sal.
Assim, a arte pode colocar em evidência o que os olhos dos leigos não podem ver, ou melhor, o processo de separação pelo qual todas as substâncias aparecem diante dos nossos olhos.
Se agora quisermos falar das propriedades e da natureza destes três princípios devemos considerar a questão da seguinte maneira: a natureza onde se encontra o mercúrio, o enxofre e o sal, sendo ela boa ou má, cura ou faz adoecer. E toda a substância, por assim dizer, cada uma dessas substâncias possui sua natureza característica.
Se estes três princípios se misturarem no mesmo corpo, suas três naturezas se manifestarão sob uma só forma, que se expressará apesar da predominância de cada natureza individual e não a da substância comum resultante.
Em princípio todas as naturezas são boas, apesar do que podem não ser favoráveis, provocando o aparecimento da doença. Isto nos permitirá saber que parte da natureza se separa, porque somente quando uma delas se separa é possível se ver as outras claramente. O que significa que existirá tantas doenças^ quanto naturezas, e que, em qualquer caso, para falar das naturezas é preciso conhecer a primeira matéria. E a esta primeira matéria vamos dar o nome de “Fiat”.
Entretanto o fogo de Vulcano nos ensinou alguma coisa sobre isto ao nos dar o conhecimento das três primeiras substâncias que se identificam com o enxofre, pelo enxofre, pelo mercúrio por suas semelhanças com o sal já que se originam de uma só e semelhante operação.
Ainda que todas elas pertençam essencialmente ao grande mundo — ou macrocosmo — devem também ser interpretadas e referidas ao pequeno mundo
— ou microcosmo — que é a natureza do homem, cuja primeira matéria resulta da coagulação das três substâncias e dos quatro elementos no limbo.1
O médico então deve saber que as doenças nascem da perturbação das três substâncias e não dos quatro elementos, pois nem a sua natureza e nem sua força têm relação com a medicina. Isso porque os humores não são mais que verdadeiras matrizes, como teremos oportunidade de explicar no parêntesis relativo a esse assunto.
Essa é a razão fundamental pela qual somente ao médico cabe o conhecimento e a exploração destes três princípios em cuja substância existem as causas de todas as doenças em estado latente.
Isto tem ainda maior interesse porque o homem não pode durante a sua vida ver nele estes três princípios que somente são perceptíveis depois da destruição. Por isso farão bem se aplicarem seus espíritos no conhecimento dessas coisas que moram tão esplendidamente no homem são, justamente antes que a morte as dissolvam.
Enquanto o enxofre, o mercúrio e o sal estiverem vivos, os homens não ficarão doentes, caindo em tal estado no entanto se tais elementos se dissolverem. Por isso é da maior importância para nós médicos colocar toda a atenção no estudo do processo dessa separação, pois na verdade somente a vida como um pano cobrindo todas as coisas — nos oculta os princípios das substâncias.
Vejam por exemplo como é formoso o homem enquanto está vivo, e a extraordinária destruição que se produz nele com a morte. Inclusive quando morre apenas um dos seus membros se dissolvendo nas três substâncias.
Sem dúvida não devem se esquecer de que tudo o que está na morte também está na vida, só que com menos brilho e enfeites.
Igualmente quando um cedro é lançado ao fogo, tão formoso em vida, veremos aparecer imediata e espontaneamente nele todo tudo o que a vida mantinha oculto. E assim acontece com todas as outras coisas.
Quero que todas as coisas que possam ser demonstradas de diversas maneiras sejam apresentadas de acordo com os seus princípios, de onde devem derivar as suas doenças.
Repetimos então: todo o corpo que conserva unidas suas três substâncias se encontra em boa saúde. Pelo contrário, quando elas se dissolvem ou desagregam, acontecerá que uma apodrecerá, outra se inflamará, e a última se dissipará de um modo ou de outro, aparecendo assim verdadeiras enfermidades. Enquanto o corpo se mantiver unido estará isento de doenças. Mas logo que se dissolva (dissipetu) manifestará tudo o que interessa ao médico saber.
Darei um outro exemplo: quando conhecemos vinte homens distintos unidos por um pacto ou uma crença, e depois de certo tempo os encontramos novamente, mas separados, podemos reconhecê-los perfeitamente um por um e inclusive saber qual foi o motivo da dissolução de sua sociedade.
É na separação que podemos conhecer todas as coisas, pois somente deste modo saberemos o que se separou, remediando justamente o princípio correspondente a cada caso.
Caso não trabalhem desta forma somente restará o princípio da morte, ou melhor, a destruição de toda a soberania.
Resumindo: o enxofre, o mercúrio e o sal são as três primeiras substâncias que durante a vida permanecem ocultas e que com a separação da vida se revelam e se manifestam,
É preciso que o médico conheça todos os nomes, gêneros e espécies dessas substâncias de tal maneira que na presença de qualquer doença possa dizer: “esta é uma doença provocada por tal causa”. E da mesma forma como no exemplo da sociedade dos vinte homens quando esta terminou, possa dizer: “isto ou aquilo foi a causa da ruptura, e esta se produziu de tal maneira”. Nunca digam: “ela foi provocada pela cólera, a melancolia ou a fleuma”, mas afirmem que “o homem é quem a provocou”. Significando que é mais justo atribuir a causa ao homem mesmo do que à cólera. Os médicos que me escutam devem reter isto como um verdadeiro axioma.
Saibam então que todas as doenças devem ser referidas ao homem, motivo pelo qual devemos lhe atribuir os três elementos, as três substâncias, os quatro astros, as quatro terras, as quatro águas, os quatro fogos, os quatro ares, c todas as condições, costumes, propriedades e naturezas, sem o que nenhuma doença poderá existir; coisa que de fato se esqueceram ao escrever que as doenças nascem dos quatro humores, que nunca tiveram a menor afinidade com os elementos e nem com as substâncias.
Alegro-me de ter falado assim, pois na verdade todas as naturezas relativas ao homem se encontram na doença, e umas c outras no seio do limbo perfeito.
CAPÍTULO III
(Sobre o modo de ação das três primeiras substâncias, o sujeito intermediário e sobre a alquimia)
As doenças foram criadas e devem ser conhecidas segundo a natureza viril. Explicaremos isto com mais detalhes: o enxofre, o mercúrio e o sal são três humores, entendendo que humor quer dizer corpo. Por isso, quando falamos de um corpo, estamos nos referindo concretamente a um humor e não a uma coisa desconhecida e rara.
O corpo e, por outro lado, o que o médico deve tratar.
Quanto ao humor, não é certo, como querem, que a doença se assente nele, pois não é baseada nele e nem produzida por ele.
O que gera a doença é a entidade substancial (ens substanciale) que precisa além disso, sejam quais forem as doenças, de uma natureza masculina ou viril na totalidade do limbo astral. Com isto fica definitivamente eliminada a influência dos humores, que, como se sabe, não possuem nada que venha dos astros.
Essa é a razão pela qual todas as doenças devem ser do gênero masculino.
Observem agora quais são as três coisas que chamamos de geradoras do estado doentio.
O súlfur, ou enxofre, não estimula ou incrementa o dano que pode produzir, a menos que seja de natureza astral, ou melhor, a menos que uma faísca de fogo se una a ele. Neste caso ele se desenvolverá de um modo masculino (virescit) sob a excitação da faísca, pois não há nada mais viril do que se consumir no fogo. Por isso, quando uma doença surge com essa origem, será preciso antes de mais nada chamar o enxofre pelo próprio nome, e depois determinar qual é a operação masculina na qual se desenvolve.
Existem muitos enxofres: assim a resina, a goma, a terebintina, a gordura, a manteiga, o azeite, a aguardente, a axonga(?)… etc., são outros tantos enxofres. Alguns vêm da madeira, outros dos animais, outros do homem e alguns, finalmente, dos metais, como o azeite do ouro, da prata, do ferro, ou das pedras como o licor do mármore, do alabastro etc.. . Da mesma forma se produz em algumas sementes, como também em muitas outras coisas designadas por seus nomes particulares.
Quando o fogo cai sobre qualquer uma dessas coisas, único astro verdadeiro como seu nome indica, se realiza a primeira parte de uma operação que chamaremos de matéria pecante.
A propósito do sal devem saber que ele existe como humor material, mas que não conduz à doença nem se une ao astro, sendo o seu astro a decisão que o toma viril (masculta). Pois o sal, da mesma forma que o espírito do vitríolo, do alúmen, do tártaro, e do nitro, se manifesta desordenadamente ao ser dissolvido (resolvitur). Como poderia ser enviada aos humores uma natureza semelhante a não ser pela influência do astro? Sem dúvida todos os médicos guardaram o mais absoluto silêncio sobre isto.
E ainda digo que se não tivessem cometido outro erro que o de omitir sistematicamente a influência do astro em todas as causas e tratamentos das doenças, bastaria isso para afirmar que eles construíram seu edifício sobre a areia ou sobre o barro.
Saibam também que existem muitos sais: como a cal e as cinzas. Assim como existem os arsénicos, os de antimônio, a marcassita e outras que provocam e geram doenças especiais que imediatamente tomam nomes e naturezas próprias.
Quanto ao mercúrio, cuja natureza não é viril por si mesma, precisa da influência do sol para sublimar-se, deixando diversas combinações mas conservando sempre a sua essência em um só corpo.
A diferença dele para o sal e o enxofre está precisamente neste fato, pois enquanto esses corpos podem se manifestar sob múltiplas formas, o mercúrio é sempre único, dependendo sua natureza e as diversas doenças que provoca das distintas variações do astro. Isto é o que lhe confere, repetimos, um caráter masculino.
Todas as doenças, com seus nomes e títulos especiais, estão contidas nestas três substâncias. Entre elas, convém atribuir ao enxofre tudo o que seja sulfuroso c capaz de queimar por si mesmo; ao mercúrio o que suporte a sublimação, c ao sal tudo o que possa se reduzir novamente em sal.
Devem saber que o homem foi colocado entre essas três substâncias e um corpo intermediário que é o “corpo vivo“, “entidade vivente“, “sopro vital“ ou “anima“, razão da existência dos médicos e das doenças, sendo primeira matéria tudo o que está antes desta vida, e última matéria tudo o que está depois.
O que chamaremos de “sujeito“ do corpo intermediário não é somente o princípio que enunciamos, mas o que está constituído pelas três substâncias, a saber: a vida em separado (seposita), a essência e a natureza, à qual nada podemos acrescentar ou subtrair.
Agora que sabem como existe o nosso “sujeito”, direi que ele pode ser ferido ou rompido de três maneiras: a primeira acontece por si mesma, é o que acontece quando a vida o destrói, pois é preciso saber que a vida e a paz têm a mesma razão de ser. E que a concórdia existe onde há paz, acabando esta e a própria vida tão logo a concórdia se dissolva. Por isso, quando estas três coisas não querem continuar unidas (indivisa) entre si, a vida termina e o corpo se desintegra. A segunda acontece pela dissolução violenta que se produz no nascimento, durante a educação, ou em qualquer momento pelo arbítrio da nossa vontade, através da qual induzimos e excitamos os astros contra nós. Enquanto a terceira vem espontaneamente, ainda que o corpo permaneça unido e sem se dissolver, sem que possamos atribuí-la a nenhuma força exterior, representando simplesmente o fim. Isto acontece fatalmente com todas as coisas, por melhores, fortes ou magníficas que sejam, já que o tempo há de levá-las fatalmente a este ponto. Fim para onde também o homem será conduzido, pois sempre serão poucos os anos de sua vida.
Estudaremos agora a razão pela qual estas três coisas foram criadas com todas as suas infinitas espécies e variedades. Pois é notório que a resina de Retia é diferente da de Nórica,2 que o azeite de amêndoas feito em Nápoles é diferente do que se colhe no lago de Como, e que em geral as plantas nascidas nas montanhas são diferentes daquelas que brotam nas planícies. Saibam que a razão dessa diversidade está nas palavras de Cristo: “todo o reino que se divide contra si mesmo, perecerá”, e que se as coisas devem morrer é preciso que se produzam guerras internas nos diversos membros, e que o corpo, assim dissolvido, morra de uma ou outra maneira, já que não será possível investigar somente as aparências.
Isto e os humores constituem o verdadeiro fundamento das doenças e a razão da abundância dos médicos. Além disso, a medicina em si é uma coisa caduca, que nasce e morre com cada homem, podendo ser comparada com os círculos de Platão (anni), nos quais todas as coisas se renovam continuamente, segundo explica Arnaldo de Villanueva.
Voltando ao assunto, direi que somente aquele que conheceu a fundo os capítulos da destruição do reino pode ser considerado sábio e admitido na ciência que demonstra ter mais bases.
Como conclusão, c para que todas as doenças sejam conhecidas devidamente, faremos três livros em seguida, nos quais será explicada a produção c o desenvolvimento de tudo aquilo que pode vir das doenças, de nós mesmos e do curso do tempo.
Com isso fica estabelecido que se o médico quiser conhecer o homem e suas doenças deve começar descobrindo as doenças de todas as coisas universais que a natureza sofre no grande mundo ou macrocosmo, que por sua vez são as mesmas que causam os sofrimentos humanos. Assim, tal coisa sofre desta maneira e uma outra de modo diferente, mas tudo sofre no homem. Pois se o homem vem da totalidade do limbo, é lógico que carregue em si todos os bens e todos os males. A partir do que Deus estabeleceu um intermediário (médium) para que através dele continuemos sem nos desviar da medida e da ordem preestabelecidas (proefiguratus) desde o começo das coisas.
As doenças estranhas devem ser estudadas pelos médicos por métodos estranhos, aplicando as concordâncias (sumere concordantias) correspondentes, preparando e separando as coisas visíveis, e reduzindo seus corpos à última matéria com a ajuda da arte spagírica ou da alquimia.
Então, encontrada a substância que gera a doença, teremos conseguido o conhecimento de todas as doenças, sempre que esta substância seja capaz de reduzir todas as coisas, pois se não devemos nos limitar ao tratamento das doenças desta ou daquela região, sem que possamos fazer nada contra as que sejam de uma natureza mais estranha.
O médico, com efeito, somente deve ser médico das doenças que conheça, mas não daquelas que ignora. Por isso não deve se preocupar como nós de serem influenciados pelos árabes, bárbaros ou caldeus. E não acreditar em nada daqueles que não passaram pela prova do fogo, pois isso não é verdadeira medicina, já que, como temos repetido, o fogo é que cria o médico.
Aprendam pois a alquimia, também chamada de spagíria, porque ela lhes ensinará a distinguir o falso do verdadeiro. Com ela possuirão a luz da natureza e poderão provar todas as coisas claramente, dissertando sobre elas de acordo com a lógica e não pela fantasia, de onde nada de bom pode sair. A não ser coisas assim como essas histórias infundadas e artificiais sobre os quatro humores, impróprias de um gênio rico e brilhante.
CAPÍTULO IV
(Sobre as compleições e os “arcanos”)
Vamos falar agora sobre as compleições. Quando se diz que tal pessoa é sanguínea, colérica, fleumática ou melancólica, afirma-se uma coisa completamente sem razão. E isto pode ser provado facilmente de muitas maneiras. Uma delas, talvez a melhor e mais importante, é justamente a de que as compleições são produtos que a vida concede com toda liberalidade. Pois bem. Se a vida confere as compleições, estas não tem nada a ver com as trés substâncias. Por isso elas não são de muito interesse para os médicos, já que a vida em si, o que dela emana ou se relacione, foge de toda a influência. O médico não deve se esquecer de que tudo que passa (transit) com a vida não tem relação com a teoria médica, e que se trata de um grave erro referir ao corpo doente aquilo que só corresponde na realidade ao corpo são.
No corpo, isto é, na natureza, não se encontram as compleições mas as substâncias, porque quando dizemos “isto está quente ou tem tal calor” não indicamos a compleição da coisa mas da natureza da substância, que não gera por si a saúde nem a doença e que não corresponde ao corpo vivo.
Igual falsidade se comete quando se diz que os costumes, os hábitos ou as maneiras provém da compleição, porque na verdade eles vém dos astros. Não é a bílis que provoca a cólera, mas Marte. Assim, quando a bílis se acumula c derrama como uma bebida que tivesse enchido o estômago excessivamente, é Marte que está determinando.
Qual é então a natureza dessas coisas? A verdade é que este assunto diz mais respeito ao astrônomo que ao médico. Por isso dizemos que as compleições não pertencem ao campo da medicina, nem são matéria ou causas de doenças, correspondendo à vida e ao corpo físico.
O fato da doença ser quente ou fria, úmida ou seca, não quer dizer que tenha alguma relação com as compleições.
A compleição é algo duplo e simultâneo: quente e seco, ou quente e úmido, ou bem frio e seco, ou frio e úmido, que se converge até à natureza elementar, sobre a qual nos absteremos de falar aqui.
As condições das doenças podem ser quentes ou frias, mas não úmidas ou secas ao mesmo tempo, ou bem úmidas ou secas, mas não quentes ou frias, pois sua constituição só permite que sejam de uma única maneira: quentes, frias, secas ou úmidas.
Esta condição resulta de uma só qualidade e não de duas. As manias são uma coisa quente, sem secura nem umidade alguma, e a hidropisia uma umidade sem calor nem frio de espécie alguma.
Assim estão constituídas as enfermidades. Em medicina não se considera mais do que um só grau e uma única condição, sem compleições duplas ou bigeminadas. As dualidades não podem subsistir no estado doentio, já que assim se subordinam à vida e não ao médico. Por exemplo: o que diz respeito ao médico uma coisa que seja bela, brilhante e colorida?
Ao contrário, se querem saber o que é o calor somente, o frio, a secura, ou a umidade, é preciso representá-las em algo que esteja só. O que nunca é uma coisa com vida. Então, somente assim, ou pelo acréscimo de influência dos astros a doença se faz presente.
Quando o corpo se abrasa é sinal de que alguma coisa, mas uma só, o invadiu (invadit). Essa coisa é que o leva para o calor, o frio, a secura ou a umidade, e que o médico deve investigar. Daremos um novo exemplo: quando alguém faz uma ferida, ou provoca uma deformação em outra pessoa, ou corta o próprio pé, não provoca com isso o calor, o frio, a secura ou a umidade, mas uma agressão, um golpe (ictus), e nada mais.
O começo das doenças é mais ou menos assim, pois mesmo as de natureza interna não passam de feridas ocultas que nada têm a ver com o calor, o frio, secura, ou a umidade. Por isso podemos concluir que a arte verdadeira e natural (genuina) consiste precisamente em “encarnar”. Não importa que as coisas produzidas no íntimo sejam quentes, frias, secas ou úmidas. Apenas é preciso que saibam que elas estão efetivamente na carne. Por mais que as feridas queimem, inflamem e provoquem febres, não pode se dizer que elas sejam verdadeiras doenças.
Combatam diretamente a doença e verão como não precisam se deter nem se refrescar no seu esforço. O que acrescentamos foi para mostrar o erro e os defeitos de sua arte, já que não sabem tudo o que se refere à encarnação como deveriam saber por obrigação.
Na hidropisia essas coisas da encarnação são também as que expulsam os sais dissolvidos, e não o que é frio ou quente, já que a medicina não foi constituída assim.
A mesma razão explica a virtude purgativa da coloquíntida e do turbito1, que também nada têm a ver com a compleição, e que tiram tal virtude, não da compleição mas da natureza masculina. Razão pela qual todas as virtudes das coisas são verdadeiros “arcanos” enquanto curam as doenças que lhes correspondem, sem nenhuma intervenção de compleição. Recordem tudo o que acabo de dizer porque isso encerra uma grande verdade.
Saibam agora que tudo o que vem com a natureza, com a natureza se vai. Assim, quando a água apaga o fogo, o responsável por isso não é o frio, mas a umidade. E quando o fogo esquenta, a causa está no calor e não na secura. Logo, o que governa a doença é algo de semelhança perdurável e não os acidentes transitórios da matéria (sed non quod matéria peccans sit) (como por exemplo a cor) que não acrescentam nem tiram nada. Assim a doença, como uma espada incandescente, está incidindo sobre a compleição.
E quando o enxofre do corpo se inflama e explode como o fogo persa, a medicação não poderá ser outra senão apagar a citada combustão. Razão pela qual os resultados terapêuticos que se obtém por meio do frio são sempre duvidosos, porque o importante é apagar esse fogo invisível.
Apagar é uma boa finalidade. Esfriar, ao contrário, é envenenar (refrigerare venenun est), chamar e provocar outras doenças.
Queremos dizer com isso que Deus não pede que façamos isso ou aquilo conforme a nossa habitual determinação, mas de acordo com a medicina perfeita que está baseada na boa ordem, como vimos no exemplo da água e do fogo.
Por isso é preciso que abramos bem os olhos para esta arte a fim de que possamos distinguir as coisas não só medicinalmente, mas com a verdadeira visão do fogo, e não com a simples contemplação dos rústicos e dos leigos.
Isto há de ser o fundamento do qual partiremos para o estudo do tratamento médico, logo que nos separemos definitivamente das compleições e dos quatro humores, responsáveis por tantas obscuridades nos conceitos da medicina.
A verdade é que toda doença tem que ser quente ou fria. Qual poderia dispensar estas “cores”? Diremos que nenhuma. Sem dúvida elas não passam de simples sinais e não doenças propriamente ditas. E quem tomá-las como matéria se enganará fatalmente.
Quando a testa arde, a cabeça inflama, o corpo fica dolorido, a urina avermelhada, o pulso rápido, e o fígado ressecado, o que isto significa? Quer dizer certamente que existe uma doença, sem que estes sinais sejam a enfermidade. São apenas a sua imitação ou expressão.
Igualmente na cólica provocada pela retenção ou estreitamento encontramos sinais semelhantes aos das cólicas violentas que produzem inflamação, paralisia, sede, vômitos e outras coisas.
Entretanto podemos afirmar que não são essas impressões que nos fazem sofrer, pois se conseguimos libertar o doente da constipação, todos os outros acidentes desaparecerão imediatamente.
Considerem os cálculos e os males que eles trazem: para fazê-los desaparecer será necessário apenas eliminar a pedra. E ela não será eliminada com o calor nem com o frio, e muito menos pela inflamação das compleições ou dos humores, sendo preciso no entanto que usemos a faca (bisturi?). Com isso dizemos que a faca será o “arcano” da pedra.
É importante que saibam quais são os “arcanos” e suas doenças correspondentes.
Isso quer dizer que todo aquele que pense em usar as coisas frias para combater as quentes, e as secas com as úmidas, não compreendem a natureza da doença.
Consideremos por exemplo a mania ou loucura. Nada alivia mais esta doença do que a ruptura de uma veia, único meio nestes casos para atrair a saúde. O “arcano” desta doença será então a sangria (phlebotomia), e não a cânfora, o nenúfar, o sândalo, a manjerona, os clisteres, nem o banho frio.
E o que é certo para a loucura também o é para outras doenças, porque todas se submetem à mesma lei.
Se agora alguém quiser dizer que tal homem são é muito melancólico, estará usando um termo inexato, pois a luz da natureza ignora o que é melancolia. O correto seria dizer que este ou aquele é lunático, ou saturnino, de acordo com os seus costumes. Porque é certo que os nossos costumes e as propriedades da nossa natureza foram feitos sob o influxo dos astros, sendo que a melancolia não tem nada a ver com isto. Motivo pelo qual não deve ser admitida em medicina nem adotada como coluna fundamental em nossa ciência.
A melancolia se localiza no baço, cujo astro é Saturno, o que não significa que sempre quando o baço estiver doente Saturno esteja em jogo, pois a melancolia pode se manifestar perfeitamente sozinha. A febre quarta também corresponde a Saturno, e ela não produz melancolia. Por isso concluímos afirmando a falsidade do humor melancólico.
Outras fantasias são ditas sobre a fleuma do cérebro e a cólera do sangue, assim como dos rins, dos pulmões, do estômago, e do coração. Se todos produzissem seu humor correspondente existiriam outros além dos quatro aqui referidos cada um de acordo com a sua natureza sem que nenhum suplante o lugar dos outros.
Assim o baço, os rins, os pulmões, a região que guarda a cólera, o lugar da fleuma e da melancolia etc… todos conservam o lugar que lhes corresponde. Deixemos longe de nós o pensamento de que o corpo possa se escravizar a quatro simples colunas de humores ou de elementos. Mas conservemos a ideia de que esses quatro elementos existem realmente.
Se me perguntarem o que é o elemento, responderei que é a matriz do seu fruto (matrix sui fructus) do mesmo modo que, segundo toda evidência, a terra também é a matriz do seu fruto. Isso não tem nada a ver com a secura ou o frio da terra, e que nada representa por si mesmo, mas que precisa da união dos quatro elementos para se desenvolver.
A mesma coisa podemos dizer da água, do ar, e do fogo, pois se fôssemos confiar nas descrições que fazem deles, poderíamos convir que vocês jamais os conheceram. Porjue se isto tivesse acontecido, ao menos um pouco, não teriam explicado tão grosseiramente a natureza do homem (microcosmo) c teriam deixado observações mais inteligentes sobre isso.
CAPITULO V
(Razão e superioridade da anatomia)
Acabamos de demonstrar que o verdadeiro “sujeito” da medicina são as “três substâncias”, ao lado das quais o “corpo intermediário” se diferencia nitidamente graças as suas admiráveis construções e perversões. Essa mutação ou perversão é a mesma coisa que faz o pintor ou o escultor ao realizar uma estátua de madeira, ou ao pintar uma imagem na parede quando ninguém chega a ver a madeira, e ao contrário, todos percebem a imagem desenhada.
Sem dúvida, basta que esfreguemos um lenço ligeiramente molhado para que desapareça tudo o que o pintor acrescentou ali com a sua arte.
O mesmo acontece com a vida. Assim, uma vez que Deus nos esculpiu ajuntando as três substâncias, a vida nos anima permitindo-nos andar, deter e mover-nos. Apesar disto, qualquer “esponja” pode fazer desaparecer todas essas coisas. Isso quer dizer que não devemos nos deixar seduzir pela vida nem por tudo o que ela encerra.
Além disso, esse pintor1 é tão hábil que pintou as três substâncias com as cores do Sol, da Lua, de Vénus etc…, brancas, pretas, ou de outras cores distintas, obtendo com isso o mais alto grau de maestria, inalcançável para nós, já que suas cores e pigmentos não estão diluídos na cola, no azeite, como as nossas, mas são ligeiras como o ar ou as sombras, apesar do que chegam a ter no homem vivo a propriedade exata de sua cor.
Somente a morte pode apagar tais cores dando em troca o seu pigmento especial, já que quando ela toma o corpo impõe sua própria cor, desprezando as cores da vida. Disto se deduz que a aparição da cor da morte significa justamente a morte da doença.
É preciso que conheçam bem estas duas espécie de cores — as da vida e a da morte. Sua comprovação não significa por si mesma o menor conhecimento da doença, mas seus simples sinais exteriores. A natureza dos sinais é tão incerta e falsa como uma palavra que escapa da boca, seja ela uma expressão séria ou uma brincadeira.
Também não devem acreditar que pelo fato de conhecerem suas cores terão as coisa da natureza sob controle. A verdade é que o céu e a terra estão por cima de tudo isto e não podem limitar-se com vocês mesmos.
Devem pensar e saber que todas as coisas têm uma imagem ou figura (suní effigiatae), que nós chamamos de sua anatomia. Assim o homem está revestido de uma forma (fictus est), e daí o interesse do médico em conhecer a anatomia antes de mais nada. Não só a do homem normal como também a do homem doente, pois todas as doenças têm sua anatomia própria. A hidropisia, por exemplo, tem uma figura característica, e assim todas as outras. Devemos estudá-las e conhecê-las, porque sem isso a natureza nunca nos reconhecerá como médicos.
Ouçam este exemplo sobre as rosas e os lírios: Deus deu às rosas e aos lírios a forma e figura que têm pelo motivo de serem produtos da terra e para que o médico e a sua medicina conheçam o que a terra produz. E assim, conhecendo a anatomia das ervas chegar também a conhecer a anatomia das doenças. Somente desta maneira poderá estabelecer as concordâncias, semelhanças, e relações de umas com as outras, pois só por meio do estudo das anatomias comparadas poderá fazer progredir a sua ciência. Venturosa hora em que um médico pode trabalhar assim, sem que nenhuma miséria o impeça!
Tudo o que é benéfico ou prejudicial para a matriz tem a anatomia da matriz. Isso vem reforçar a necessidade do estudo da anatomia de todas as coisas naturais. Dizemos que, assim como Deus é conhecido pela grandeza de suas obras, pela multiplicidade das imagens que existem dentro de nós, também o é pelas admiráveis figuras das doenças.
Aquele que tenha a sorte de conhecer a anatomia das doenças das rosas deve ficar feliz por Deus ter colocado diante dos seus olhos essa medicina, assim como a benevolência, a eficácia e a prontidão de sua ajuda. Isso se refere também, por suposição, aos lírios, à lavanda, e a todas as outras plantas.
As cores devem ser consideradas apenas como um motivo ou estímulo (pabulum) para os olhos exteriores, diante dos quais a doença só pode se manifestar quando reduzida (abeant) à sua última matéria.
Igualmente podemos falar sobre o gosto, que também é parte da anatomia das semelhanças e das concordâncias. A distribuição do gosto pelos órgãos do corpo está feita de tal maneira que o doce está unido ao doce, o amargo ao amargo, assim como o ácido ao ácido em seus diversos graus. Qual médico encontraria o medicamento para o fígado na graciana, no agárico ou na coloquíntida? E que outro trataria a bílis com maná, mel, açúcar ou com o feto? Nenhum, sem dúvida, porque só o que é semelhante pode combinar.
Na ordem anatômica o frio não pode atuar contra o calor, sendo em geral uma grave confusão buscar nossa saúde na linha das coisas contrárias. Tão absurdo como se, por exemplo, um pai desse ao seu filho uma serpente em vez de um pedaço de pão. Isto seria a mesma coisa no que se refere às doenças, se o nosso Pai comum que está no céu nos enviasse serpentes em vez do necessário para nossa sobrevivência. Conforme este exemplo, digo que é má medicina dar absinto em vez de açúcar.
Dar ao menino o que ele pede e não outra coisa, ao crente o que espera, ao coração o que lhe convém e ao fígado o que lhe é próprio, constitui a verdadeira coluna da medicina, que em resumo pode ser assim enunciada: dar a todas as anatomias suas próprias semelhanças. Porque está claro que o pão comido por um menino tem sua mesma anatomia, e que todas as medicinas devem conter a anatomia da doença para a qual estão destinadas.
Neste sentido se compreende que todo aquele que não seja suficientemente hábil e conhecedor da anatomia terá grandes dificuldades para se manter, ainda que para isto baste uma probidade elementar e estar isento de toda emoção maligna ou de toda a infâmia. Asseguro-lhes que quem não age assim é um verdadeiro inimigo da luz da natureza.
Considerem por exemplo o olho, e vejam a arte admirável com a qual foi construído, assim como a maneira maravilhosa como o corpo médio (médium corpus) recebeu a anatomia e o gosto em sua imagem. E verão que o conhecimento da medicina do olho resulta precisamente do estudo do seu gosto e de sua imagem.
Se agora recordarem a anatomia de suas doenças, como a catarata, a úlcera, a mancha branca (leucoma, albugo), a cintilação (scotomia) etc… verão, por menos que conheçam a terapêutica oculista (ocularia simplicia), como encontrarão a aparência desses males na anatomia.
As doenças vêm (descendunt) da transmutação das imagens ou do gosto do estado são.
Se adquiriram a concordância de todas essas coisas conjuntamente, respondam: qual o cego que depois de ter elevado suas preces a Deus receberá veneno cm vez da ajuda que tão ardentemente solicita? Sejam pois hábeis conhecedores da anatomia para não confundir as pedras com o pão, para que sejam pais dos seus doentes dando-lhes o sustento que precisam como se fossem seus filhos, não sendo apenas doutores de sua medicina.
Da mesma forma como um pai é afetuoso com o filho, assim também o médico deve ser com seus pacientes.
Transmutem tudo o que apareça transmutado. E cuidem para que as anatomias conservadas concordem reciprocamente, assim como todas as doenças que aconteçam.
As receitas devem ser estabelecidas e compostas de acordo com estes princípios, e não em intermináveis fórmulas de xaropes, triacas3 outras incongruências sem a menor razão anatômica e somente presididas pelas mais exaltadas fantasias.
Digo então que existem razões de sobra para relegar definitivamente ao esquecimento essas velhas “Recipes” (receitas), por mais que esses medicamentos tenham indiscutíveis virtudes. A ação deles se deve à fortuita coincidência com alguma anatomia, ou então à mistura de algum princípio fundamental tomado de algum médico verdadeiro e sincero por charlatães que com isso pretendem dissimular e esconder a sua teoria. Em tais casos esse princípio fundamental aparece desprovido de toda hierarquia, que se atribui pelo contrário a outras substâncias reconhecidamente supérfluas e inúteis.
O ensino desses homens está cheio dos mais baixos erros. Por isso não é de se estranhar que os alicerces de seu edifício estejam sobre o barro, o qual devemos limpar constantemente desmascarando seus sofismas, e fantasias, fazendo ver que suas simulações não passam de gessos de bufões, desprovidos de qualquer medida.
Vejam agora outra questão: o vinho e o azeite são verdadeiramente bons para as feridas, conforme disse o Cristo a respeito do ferido de Jerico?4. Eu digo que não. E além disso digo também que é da maior importância que não vejam nisto uma simples frase, um jogo ou um engodo, pois se o tomarem ao pé da letra podem simplesmente se declararem loucos. Ainda que não exista sobre isto uma absoluta evidência, o que Cristo (que é a verdade) quis indicar não foi uma medicina inadequada mas a existência do “arcano” de uma anatomia. Não se trata pois de que Cristo não tenha enunciado corretamente os elementos da natureza. Mas que isto é um “arcano” para as feridas, com o que poderão ver em cada caso tudo o que lhes falta.
A questão pode ser resumida da seguinte maneira: é preciso que o vinho e o azeite existam em quantidades suficientes. Sobre isto tenham a maior atenção quanto à preparação, à propriedade, ao tempo, à hora e em tudo que com isso se relacione. Pois assim como o grão não pode frutificar a cada ano, a menos que tenha sido semeado e apodrecido em seguida na terra, também é preciso saber que o campo é uma ferida, e o azeite e o vinho as suas sementes. A partir disto não será difícil adivinhar a natureza do fruto que será produzido.
CAPÍTULO VI
(Discurso sobre as anatomias)
Com o que ucabamos de dizei ficam à vista todas as artes que dividem e separam do corpo vivo tudo aquilo que não faz parte do microcosmo. E acrescentamos o seguinte conceito: é preciso introduzir na vida o estudo experimental.
É indispensável então que seja submetido a experiências tudo o que compõe o corpo médio (in medio corpore), dissolvendo umas coisas cm outras, c vice-versa, fazendo com que aquele que ocupa o primeiro lugar seja também procurado no último. A vida, com efeito, nasce para as artes c não para o benefício da alma. Por isso dizemos que a vida não pode scr uma simples hospedaria para a alma.
A vida descobre as artes c os seus fundamentos a tal ponto que, quando a debilidade da primeira vida chega adiante das operações dos “arcanos”, essa primeira vida morre, já que nela nada pode ser úul ao homem.
A rosa, magnífica em sua primeira vida. quando o esplendor do seu perfume a anima, não tem nenhuma utilidade médica, sendo preciso que apodreça, morra e torne u nascer para que1 adquira tal virtude. Somente então podemos falar de suas propriedades medicinais e administrá-las em nossas receitas.
Pois assim como tudo o que passa pelo ventrículo experimenta a putrefação, cujo resultado é a construção do corpo humano, assim nada o que a medicina há de formar pode permanecer imputrefato.
O motivo pelo qual não existem remédios para a primeira vida está no fato de que não há nada nela para ser examinado, já que toda a sua compleição e todo o seu ser estão destinados a morrer sem deixar nenhum rastro. Então, nada que não perdure ou não se dissolva novamente num novo nascimento está submetido à medicina. O resultado disto é que todo o trabalho do médico consiste em conseguir um novo nascimento. Aí estão e daí vem o verdadeiro enxofre, o mercúrio, e o sal autêntico, nos quais estão contidos (extent) todos os “arcanos”, obras, curas e fundamento.
Somente quando a segunda vida foi introduzida e quando a primeira se retirou do corpo é que podemos usar e aproveitar a primeira matéria, encontrando nela mesma a última.
Desta vida intermediária há de sair a nova vida, já livre de toda outra enfermidade ou morte que não seja o grande final onde todas as coisas vão perecer.
A razão pela qual nenhuma nova vida pode perdurar está justamente em sua fragilidade, que por sua vez é o motivo e o fundamento da morte.
Todo o fundamento disto está por conseguinte no fato de o homem só considerar que as coisas primeiras se manifestarão quando o corpo médio se expor e se separar. Somente aquele que as reconheça para a vida nova (ex nova vita) conhecerá verdadeiramente o objeto desta vida.
Sobre isto existem duas partes (subjecta): uma constituída pelo doente, a sós com sua vida média vegetativa que lhe escapou transitoriamente, e outra na qual está a medicina, que trata de proteger a vida média através da nova vida. Por isso os “arcanos” estão na nova vida, e não na primeira nem na média.
Procuremos agora a dupla anatomia do microcosmo, local e material. Chamamos de anatomia local aquela que o homem apresenta em si mesmo, quando por meio da dissecação podemos examinar os ossos, a carne, as veias, em seus lugares correspondentes 2. A anatomia material, muito mais importante, estuda as transmutações pelas quais a vida nova entra no homem logo depois da primeira e da média, assim como a natureza do seu sangue, dos elementos (enxofre, mercúrio, sal) e do funcionamento do coração, do cérebro, e de todos os órgãos do corpo . Esta é a verdadeira anatomia, origem de tudo e na qual todo médico deve se formar.
Também compreendo que o nascimento desta verdade permaneça sólido e que esta dissertação pareça difícil para muitos. Esses são justamente os que não querem dar descanso à sua fantasia e que têm maior confiança em sua imaginação do que na luz da verdade. Por isso é absolutamente necessário que vivamos e nos eduquemos nas artes. Só assim, como verdadeiros homens, poderemos oferecer a fé e a confiança aos que as pedem.
Conhecendo isto a fundo descobriremos como a primeira matéria pode nos indicar o estado de enfermidade, ou melhor, a transmutação da anatomia. De onde se deduz que ainda existe outra anatomia, ainda que não nos ocupemos dela agora, que é a anatomia da doença.4
Reconhecemos então três anatomias: a local, que indica a imagem do homem, sua proporção, natureza e tudo que com isso se relacione; a material, que se ocupa do enxofre vivo, do mercúrio volátil, e do sal amargo em cada órgão, e a que mostra a nova anatomia que dá a morte, assim como a natureza e imagem do que sobrevive. Esta anatomia da morte chega e se apresenta sob formas tão variadas como podem ser as espécies que vêm dos elementos. Existirá então tantas classes de mortes como de corrupções, e digo que cada vez que uma corrupção gera algo diferente, aí mesmo já existe uma anatomia, que irá mudando sucessivamente até que a totalidade do ser se tenha consumido na corrupção.
Antes de tudo isso a ciência da anatomia da medicina obedecia à mesma lei, pois o céu, a terra, o ar e a água já se comportavam da mesma maneira. A perfeição atual reside precisamente no fato de o firmamento dos astros ter aparecido na vida nova, onde Saturno reproduz Saturno e Marte a Marte.
Pois da mesma maneira que a árvore e a erva saem da semente, na nova vida é preciso que descubramos tudo aquilo que normalmente permanece oculto, reduzindo-o ao extremo, até que possamos percebê-lo com os nossos olhos. Já que dizemos que a luz da natureza é uma verdadeira luz, afirmamos implicitamente que ela deve ser visível e não obscura ou tenebrosa.
Tal luz será de tal forma que nos permita ver tudo diretamente, ainda mais que a nossa contemplação é e deva ser diferente daquela que veem os olhos profanos. Nossos olhos, com efeito, devem estar iluminados pela luz da natureza, em cuja virtude se fundamenta o conhecimento da anatomia. Como consequência, é justo e equitativo que as doenças sejam denominadas segundo a luz e não conforme as trevas. Desta maneira, cada enfermidade receberá o nome que inteligente e rigorosamente lhe corresponda segundo a arte.
Só por erro contrário a toda razão, chamamos a febre de febre. Com efeito, febre vem de fervor, que quer dizer calor, que somente é um sinal da doença mas não a sua matéria nem a sua causa, de onde justamente deveria ser tomado o nome. O nome deve proceder da matéria, da propriedade ou da natureza das substâncias.
A urtiga (urtica) é verdadeiramente urtiga porque produz ardor e queimação, assim como o sal da urina, que possui a mesma anatomia.
O nome da febre traduz a besteira de quem o inventou. Na realidade a febre é a doença do nitrato de enxofre fumegante (morbus nitri sulfuris incensi) que agita o corpo provocando calafrios e intermitências.
O nome “apoplexia” por sua vez dá a medida da pobre sapiência de quem o criou; na boa razão médica a apoplexia deveria ser chamada de mercúrio caquímico (?) sublimado, pois é a natureza da matéria pecante que lhe deu origem.
Assim pois os sinais servem somente para exteriorizar os corpos e as substâncias, e digo que todo aquele que misturar os sinais c as causas errará e fracassará na prática.
Sendo tão numerosos os corpos e as espécies que provocam frio ou calor, explica-se ainda mais a incorreção do nome da febre. Nitro, ao contrário, é o nome correto desse estado no princípio dos humores.
Deveria existir um maior cuidado na escolha dos nomes, mais de acordo com o método curativo. Desta forma, o “mal caduco“ que foi curado por Viridellus5 deveria se chamar “viridella morbus“.
Se isto não for feito com o devido discernimento o erro será inevitável c como consequência a anatomia sofrerá. De fato não devemos nos surpreender com isso, já que, quando os olhos não estão educados não podem mesmo ver muitas dessas coisas, pois o corpo médio (médium corpus) obscurece os olhos, mas ao contrário, possui a ciência onde todo médico deve se apoiar. Essa ciência revela mais coisas ao médico do que ao leigo. Mas isso não é completamente normal, pois se o leigo não vê e nem entende muitas dessas coisas é porque não foi criado para a medicina e nem chamado para esse caminho.
A ciência é verdadeiramente a origem da força do médico. Somente através dele os milagres de Deus podem ser revelados publicamente. Se Deus está presente, o médico poderá fazer uso dos milagres sempre que os empregue com retidão para uma boa finalidade.
Assim, nenhuma coisa que esteja escondida deixará de scr revelada ao médico. E sua luz poderá ser projetada sobre a terra, a água, o firmamento, o fogo e sobre todas as coisas que queiram contemplar as maravilhas do Deus que as criou, e em cuja mente vivem antes de tudo.
Se ainda existem coisas sem explicação isto se deve somente ao fato de o trabalho intelectual ainda não ter sido completamente explorado.
Podemos dizer que a cegueira dos olhos, ou glaucoma, a catarata e a mancha branca invadem também as outras profissões. E assim como nós não conhecemos esse monstro marinho que é a baleia, tampouco as outras profissões conhecem a besta do Apocalipse ou da Babilônia. Estas cegueiras todas se parecem entre si e é muito importante que sejam corrigidas. Porque assim como a cegueira do médico é a morte do doente, assim a outra cegueira é a morte da alma.
Depois que Cristo disse toda essa série de coisas surpreendentes que constituem a teologia, de uma maneira tão maravilhosa, e sendo a medicina tão admirável, é preciso considerá-las inseparáveis, aplicar-se ao seu estudo com todo afinco, e pesquisá-las profundamente. Porque assim como o corpo é o domicílio da alma, a teologia e a medicina devem caminhar juntas, iluminando- se mutuamente.
CAPITULO VII
(Sobre a dualidade das formas e dos corpos)
Até agora aconselhamos que busquem e considerem conjuntamente a anatomia e a nova vida na ciência de todas as substâncias, que não foi criada em vão pois se constitui em base e fundamento da medicina.
É preciso que todas as nossas doenças, internas ou externas, sejam examinadas pelos mais diversos meios, já que não há nada invisível em nós que não tenha algum sinal exterior, ainda que em muitos casos não chegue a possuir uma verdadeira forma (effigiatum). Basta que o gérmen esteja presente em nós (intra nós) representando todo o corpo, da mesma forma que a semente representa toda a árvore dentro da terra. O ventrículo, segundo isto, é o verdadeiro escultor do corpo, e apesar de permanecer invisível cumpre a sua função.
Todas as doenças têm suas imagens próprias, assim como cada imagem possui a medicina e a anatomia que Deus lhe deu. Peço que pensem sobre isso detidamente.
Todos os nossos alimentos possuem algo do nosso próprio ser porque ao nos alimentar comemos sempre alguma coisa de nós mesmos, o que também acontece com cada medicina, com respeito à consideração específica da doença para a qual está destinada.
Assim, tudo o que tenha se separado de algum órgão pode voltar a ele pela saúde, o que não é tão extraordinário como parece, conforme verão neste exemplo: a árvore que cresce no meio do campo não chegaria a ser uma árvore se não tivesse se alimentado devidamente; alimento que não consiste apenas em se encher ou aumentar de volume, mas em adquirir uma forma. Ao que podemos acrescentar que a fome é simplesmente a indicação da proximidade da morte na destruição dos órgãos.
Deus é o criador da forma que foi esculpida primeiramente no útero materno, e cuja permanência determina a imagem. Essa forma interna acaba morrendo se não recebe a oposição da forma exterior, pois aquele que não come não pode crescer nem viver. De onde se deduz que o alimento é o artesão da forma, que já contém em si a forma da imagem esculpida por Deus, com a qual se funde ao aumentá-la e amplificá-la. Porque tudo o que cresce, cresce pelo alimento.
Assim a chuva e os sucos da terra já possuem a árvore em si mesmos. E ela cresce justamente por causa desses alimentos: o suco da terra representa a comida e a chuva a bebida.
Na árvore nada cresce verdadeiramente se a chuva ou o licor da terra não se acrescentarem a ela na forma de madeira e cortiça, porque o formador e modelador dessa árvore está nela mesma, quer dizer, em sua semente.
A mesma coisa acontece com as ervas: a semente também não representa mais que o princípio da forma, para cujo conhecimento é preciso, além da chuva, o licor da terra e outras coisas que estão representadas nos ramos, nos talos, nas folhas e nas flores.
Assim, todas as formas já estão contidas no exterior das coisas capazes de crescer. Por isso, quando essas formas nos abandonam ficamos incapacitados para crescer, morrendo em seguida num estado precário e sob uma forma elementar (deserta). Ao contrário, quando estamos em pleno crescimento precisamos armazenar essas formas ou alimentos para que em nenhum momento cheguem a nos faltar, já que somente a sua essência, semelhante ao fogo, pode incrementar nossa forma e imagem, sem o que morreríamos de inanição.
Essia é a razão pela qual devemos nos conhecer a nós mesmos, se não quisermos morrer por falta de forma. Deste modo comemos nossos dedos, nosso corpo, nosso sangue, nossa carne, nossos pés, nosso cérebro, nosso coração, de tal forma que cada bocado ou porção de alimentos que ingerimos contém todos os nossos órgãos e tudo o que homem tem em si mesmo.
Sobre este ponto algumas pessoas podem duvidar que os órgãos e o corpo necessitem se alimentar, inclusive sem saber explicar se os alimentos são necessários e a que finalidade estão destinados. E eu digo que não compreenderam o que é o alimento, o que ele representa, e nem para que serve. A mesma coisa acontece com o artesão quando quer talhar uma estátua. Ele só usa aquilo que o conduzirá ao fim desejado, ou melhor, só aproveita a madeira necessária, rejeitando a restante como se fosse excremento, e deixando subsistir somente a imagem terminada.
Isto deve ser ainda explicado melhor: assim, dizemos que a nutrição foi instituída em todas as coisas somente em detrimento da forma. Quando chega o verão, por exemplo, acontece uma época de fome para as árvores, graças à qual as folhas, as flores e os frutos se desenvolvem, cujas formas ainda diferentes não têm nada de estranho em relação à árvore, porque, se assim fosse, os ramos arrancados da terra poderiam florescer. E eles estão justamente plantados na terra para que a forma penetre e os componha, o que certamente é o dom e o exercício das árvores.
O homem não precisa de nada disto, já que seus frutos não são produzidos da mesma maneira que os das árvores, sendo, na verdade, em relação ao fruto, uma criatura completamente diferente.
Saibam que todas as coisas vivem pela conservação da forma, e que a fome e a sede não passam de manifestações da destruição dessa forma cuja satisfação provoca novamente a sua restauração e renovação. Vejam como o jejum causa a magreza e o aniquilamento, estando perfeitamente estabelecido que quando falta a nutrição nas partes principais do corpo se produz a morte repentina, já que a vida não pode durar quando faltam a imagem e a forma interior do corpo.
Os homens então aumentam e crescem pelos homens. Isto significa que seus alimentos são o homem mesmo. Assim comemos literalmente a nossa própria substância; tão necessária para nós que se não a comêssemos o nosso corpo desmaiaria, assim como a vida média (vita media) e tudo que existe em nós.
Com isto quero dizer que existem dois homens: um visível e outro invisível. O visível é duplo, composto de corpo e alma, e o invisível, único, se refere somente ao corpo.1
Vejam este exeipplo: quando temos diante de nós um pedaço de madeira, não vemos mais do que isso. Sem dúvida um escultor pode fazer dele uma imagem, cortando e tirando o que está sobrando. Isto quer dizer que a madeira possuía oculta uma estátua que nós não víamos.
Deste modo o alimento contém o homem em si mesmo, se repartindo por todos os seus órgãos sem subsistir como uma porção à parte, mas se elaborando com uma grande complexidade (artificiosíssima). Pois o grande cinzelador, que é Deus, foi quem dispôs assim os órgãos e as últimas extremidades do homem.
É preciso que saibamos extrair as devidas conclusões médicas do fato de, tanto os homens como as árvores e todos os seres vivos se comerem e se beberem a si mesmos.
Ainda que nos alimentemos diretamente de ossos, veias, ligamentos, cérebros, corações, pâncreas, ou intestinos, todas essas coisas se encontram reunidas de uma vez no bolo alimentício, pois saibam que o osso não gera osso nem cérebro. Mesmo que a forma se encontre invisível no bolo alimentar, o osso existe positivamente nele.
O pão, por exemplo, já é sangue, manteiga e gordura (lardum) e ninguém pode ver nem tocar essas coisas, ainda que tudo isso seja gerado nele e por ele através do laborioso artesão que trabalha no ventrículo.
Ele, que pode fabricar o ferro a partir do enxofre, também pode fazer o homem por este artifício. E pode fazê-lo com tanta ou maior facilidade como transforma o sal em diamantes ou o mercúrio em ouro. E que tem mais cuidado em fazer o homem do que qualquer outra coisa. Por isso prepara a cada momento o que melhor lhe convém.
Sejam pois médicos, operadores e intermediários dessas coisas submetendo a matéria a Deus sem pôr nem tirar nada, da maneira que Ele quer.
Somente Ele conhece o modo, número, peso, proporção e tempo de todas as coisas.
Observem que todas as criaturas são duplas, sejam quais forem: uma constituída pelo esperma e outra pelo alimento.
O esperma é uma semente. Por isso, logo depois de semeado ele deseja e busca o alimento. E como contém em si a forma do homem em liberdade, quando se alimenta tudo o que come se transforma em homem e em membros humanos.
Isto quer dizer que o corpo do homem é composto da semente inicial e do que adquire com os alimentos, sendo esta última parte a que morre, enquanto a semente se conserva transmitindo-se interiormente de um indivíduo para outro.
Não basta que o homem nasça das entranhas maternas, mas também das substâncias com as quais se alimenta. Nada que pertença à alma dentro da natureza da vida humana tem relação com o alimento. Já os costumes e as qualidades intelectuais (ingenia) que vêm com o corpo (accedit) se originam no homem segundo a sua sabedoria.
Resumindo: tudo o que é do corpo e o que o médico possa conhecer dele é um resultado do alimento e não da virtude, da cólera, da probidade ou da malícia.
Além disso, aquele (Deus) que formou o corpo no útero materno é também quem o forma no ventrículo (estômago).
Assim como o arquiteto trabalha em sua obra, corrigindo-a e reparando- a, mesmo que apesar disso ela desmorone um dia pelo efeito da deterioração natural, assim todas essas coisas se manifestam de diversos modos no corpo por meio das doenças. E na mesma medida a saúde precisa conservar sua perfeição e integridade, como a doença precisa da cura.
Tudo isso prova completamente que nossos dois corpos na realidade são um só: acontece que foi criado de uma maneira dupla, pelo esperma e pelo alimento, e que sob estes dois aspectos continua conservando igual semelhança.
E conveniente que saibam o seguinte: desde o momento em que saímos do útero materno — e inclusive antes — vivemos somente pela graça e misericórdia de Deus, que nos permite manter e alimentar o nosso corpo.
Quando recebemos o corpo que nosso pai e nossa mãe nos dão igualmente, temos que conservá-lo. Para isso usamos a graça que pedimos por meio de oração. Assim, quando rezamos: “o pão nosso de cada dia nos dai hoje” estamos dizendo, “dai-nos hoje Senhor o nosso corpo de cada dia”, porque é certo que o corpo saído do claustro materno deve continuar se alimentando até a hora da sua morte. Isto explica o motivo da oração cotidiana.
Nossos dois corpos podem por isso serem atribuídos à justiça e à misericórdia, às quais justamente correspondem às duas classes de medicinas que podemos prescrever: uma para o corpo que nossos pais nos deram, e outra para aquele que busca nossos alimentos.
Essa é a razão pela qual Cristo nos ensinou que, ao pedir o pão cotidiano, pensemos que o corpo recebido dos pais é bem pouca coisa, podendo morrer hoje mesmo, ter morrido ontem ou há muito tempo. Que o pão só será nosso corpo no futuro, e que tratemos de não viver da justiça que nossos pais nos deixaram, mas do corpo da misericórdia. Também para que não deixemos de pedir ao nosso Pai celeste que nos dê a substância do nosso corpo no pão de cada dia, e com ele o corpo de sua misericórdia, do que viveremos em seguida, sem conservar o corpo de justiça a não ser no princípio (initium) da nossa atividade.
O homem deve pensar nisto de tal maneira que não duvide de que, mesmo tendo saído do útero materno, já não será depois o filho de seu pai e de sua mãe, mas daquele que o alimenta: o nosso Pai celestial, que continua sendo- o mesmo depois da nossa morte. Já que pertencemos a Deus e não ao corpo da justiça, a Ele é que devemos dirigir as nossas preces, pois digo que se o corpo de sua graça não existisse, o da justiça poderia morrer a qualquer momento.
Assim, quando comemos a nós mesmos, temos que fazê-lo segundo a graça, a oração, e não segundo a justiça, na qual devemos nos acostumar a não confiar em demasia.
CAPÍTULO VIII
(Onde são explicadas as diferenças entre o pão da justiça e o da misericórdia, e onde se fala sobre a extensão e complexidade da medicina)
Tudo o que acabamos de dizer deve servir de meditação sobre o que somos na realidade. Se vivemos pela graça, quer dizer, pelo pão, ou pela justiça, segundo o corpo que nossa mãe nos deu. São João Batista fez uma alusão a isto quando disse aos judeus que Deus tinha tirado das pedras os filhos de Abraão. 1 Pois, o que pode ser feito com a terra e as pedras senão o pão? E com que outro alimento faria crescer os corpos dos filhos de Abraão? Certamente reconheceram que viviam segundo o corpo da graça.
Exponho isto desta maneira para confirmar minha teoria de que todo homem tem exteriormente (foris) uma anatomia que deve ser conhecida pelo médico, que por sua vez deve ter formado sua consciência de tal maneira que possa penetrar com ela até ao conhecimento das três substâncias.
Daí podemos deduzir imediatamente o estudo do regime e da dieta, encontrando assim a oportunidade de descrever as doenças causadas pelo excesso de comida, também conhecidas como saciedade ou imoderação, assim como as que são provocadas pela má qualidade e inconveniência de alguns alimentos.
Ainda que o ventrículo transmude tudo o que chega em seu seio pela ingestão em nossa própria substância, o pedido de oração do Padre-Nosso só se refere ao pão. De outro modo, o certo é que os alimentos são mais saudáveis na medida em que se assemelham ao pão, e que sirvam para o nosso rejuvenescimento e renovação. Ao contrário, decaímos e nos aniquilamos à medida que rejeitamos a sua semente.
O corpo da justiça só nos deu uma doença, apesar dele não gerar propriamente as enfermidades, da mesma maneira que o pão pelo qual rezamos. Por esta razão São João Batista e alguns outros puderam viver livres de todas as doenças.
As doenças e outras coisas parecidas se produzem quando cometemos excessos, seja com o pão ou com a justiça. E digo que nada disso nos afligiria se vivêssemos na oração e dentro da lei.
As doenças do útero materno têm a mesma explicação, pois, já que devemos nascer novamente, elas acontecem justamente por causa do pão cotidiano.
Por isso, por mais que falemos e escrevamos sobre os diversos regimes, não é possível determinar nenhuma dieta que não obedeça a lei da justiça e dos alimentos que pedimos a Deus todos os dias, com os quais se preserva a saúde e evita-se todas as doenças. Só observando pontualmente esse regime conservaremos a saúde do nosso corpo.
Os delitos deste gênero e o desprezo pelos regimes dados por Deus não chegam a atrair sua vingança sobre nós, mas estimula mais ainda a sua bondade, graças a qual os médicos foram criados à sua imagem e semelhança. Por isso Cristo disse ao seus discípulos: “Somente depois de pecar muitas vezes é que o pecador se envergonhará dos seus pecados”. Razão pela qual o médico deve estar preparado para curar as doenças, por mais numerosas que sejam. Só o grande poder que se desprende desta missão permite aos médicos curarem todas as classes de doenças, inclusive a lepra.
A medicina e os médicos atuam de tal modo que, conservando a potência do corpo, chegam a conservar nele a própria alma.
O exercício da medicina se torna assim algo mais árduo e excelente do que alguns querem admitir com notória leviandade. Pois quando Cristo disse: “ide e purificai os leprosos, devolvei a agilidade e a capacidade de andar aos coxos, dai a vista aos cegos”… se dirigiu tanto aos médicos como aos apóstolos. Por isso digo que aquele que não possui habilidade para curar a lepra, não compreende o poder da medicina.
Deus criou os médicos não só para que curasse o catarro, a dor de cabeça, os abcessos, e as dores de dente, mas também a lepra, a apoplexia, a epilepsia, e todas as doenças sem exceção.
Se somos incapazes de curar estas doenças podemos dizer que nos falta a arte ou a sabedoria. Ou então que esquecemos de pedir a bênção de Deus, pois tudo o que existe sobre a terra pode ser curado pela medicina, com exceção daquilo que chega a penetrar e lesar os nervos, cuja colheita não nos foi concedida.
E aqueles que recolhem os frutos da verdadeira medicina sabem ficar acima dos sofismas e das falsidades, podendo curar os leprosos e devolver a visão aos cegos, já que a virtude de tudo está na terra em quantidades cada vez maiores. Ao contrário, a jactância dos sofistas impede que os mistérios da natureza e a magnificência de Deus se manifestem, já que não podem considerar as coisas da medicina além dos seus próprios estilos de sofistas, cuja ciência e probidade não vale mais que uma dracma.
Toda a insuficiência deles aparece quando dizem: “essa doença é incurável”, manifestando assim uma estupidez e supostamente uma mentira, porque Deus nunca criou uma doença sem ao mesmo tempo criar para ela uma medicina apropriada e um médico adequado.
Acontece que estamos tão familiarizados com a nossa ignorância, que chegamos ao extremo de esquecer que foi Deus que criou o nosso corpo e o renova diariamente. Por que então não nos daria o remédio para socorrer as doenças que aparecem no momento em que Ele mesmo prescreveu? E quem poderia ignorar tal medicina? Aqui está uma coisa que tortura os nossos adversários.
Mas ainda podemos investigar muitas coisas sobre este assunto: uma delas consiste em saber se Deus quer verdadeiramente que os homens vivam meia vida sadios e meia vida doentes. E outra, o motivo pelo qual um só homem pode transmitir frequentemente a doença para uma legião inteira. De um modo ou de outro, o fato é que Sua misericórdia (de Deus) concede sempre a cada doente a medicina mais apropriada (idônea), fazendo-o sentir a necessidade da presença de um médico, já que essa necessidade quer dizer justamente que esse médico é quem lhe devolverá a saúde. Pois isso é o que ele quer do médico, e não que o deixe perdido na doença sob um palavreado tão cheio de agrados como vazio de eficácia. O que nos convence ainda mais da absoluta necessidade que temos de chegar a curar todas as doenças, mesmo a lepra, a cegueira e o aleijão, assim como todos os doentes que precisam de um médico ao seu lado.
Aquele que gasta os seus olhos no jogo ou fazendo trapaças e velhacarias não precisa deles. Também não precisa da língua aquele que a usa para as coisas malditas. Se Deus tivesse cegado um desses, e ele chegasse diante de um verdadeiro médico dizendo: “estou doente e preciso de assistência para os meus olhos”, deveria receber a seguinte resposta: “você precisa tanto dos seus olhos assim como o corrompido ou o perverso precisa dos pés”.
Por que essas coisas são do domínio de Deus e não do domínio dos homens. Isso desculpa o médico não somente em uma, mas em todas as doenças que sirvam para impedir um mal pior, já que, todos os que padecem desta maneira, são muito mais felizes do que os malvados que gozam de boa saúde. Pois quando Deus castiga aqueles que ama, faz isso de uma maneira tão sutil e secreta que nenhum médico pode e nem deve se aventurar explorando essas doenças.
Compreendam como é ilustre a medicina criada por Deus. Com a sua virtude é possível curar não só as doenças que até agora citamos mas também as que já acontecem com o nascimento, como a cegueira e a paralisia (resolutio) dos recém-nascidos.
Devemos reconhecer que essa medicina ainda tem diante de si um longo caminho e que ao lado de numerosas páginas ainda em branco existem também muitas outras cheias de frivolidades e coisas absurdas.
Quando observamos alguns dos surpreendentes milagres da natureza, chegamos a convir que não existe nada tão admirável como o fato de nascer e de morrer. Quando o leão nasce morto, por exemplo, e a vida lhe chega de improviso com um grande rugido3, compreendemos que estamos diante de um fenômeno muito mais importante do que a recuperação da vista de um cego.
Não só o leão possui esse privilégio mas muitos outros que nós ignoramos ou ainda não descobrimos, pois a única coisa que a natureza nos demonstra com isso é a grande guantidade de coisas que faltam ao nosso conhecimento.
Por isso é completamente injusto que somente nos orgulhemos de simples aparência porque nunca alcançaremos esses limites que tempos atrás acreditávamos em vão ter descoberto. Por isso o dia da nossa alegria se transforma no dia de grande miséria e amargura (Dies miseriae et amara valde) no qual reconheceremos que apenas atingimos o começo das coisas.
Ocorre contudo que quem fala dessas coisas somente recebe vaias. E isto não os impede de escrever e publicar besteiras carentes de qualquer doutrina.
Aconselho-os, ao contrário, que se façam donos da chave da sabedoria através da ciência e saibam que sempre existem mistérios escondidos no mais profundo das coisas (penetralia), cujo conhecimento nunca nos será permitido.
Este é o modo como devem compreender as coisas necessárias aos médicos conforme temos anunciado em todos os capítulos e conforme se deduz de sua própria natureza, mas não até ao ponto de manifestar o que deve ser mantido em segredo, ou o que muito dificilmente pode ser escondido.
Podemos saber a causa da maravilhosa variação e degeneração da espécie humana? Se todos os homens vêm de um único Adão, como podemos ser tão diferentes?
Tudo isso está nos segredos da natureza, que em outros tempos chegou a produzir homens de grande porte que atingiram idades até noventa anos. É natural que com uma vida tão dilatada esses homens chegassem a possuir um grande número dessas coisas que hoje estão escondidas e ignoradas, beneficiando-se delas com um conhecimento verdadeiramente familiar. Não foi em vão que o bem e o mal foram colocados na maçã que Adão comeu aconselhado pela serpente. Isso nos ensina e nos explica que hoje em dia existem na natureza muito mais coisas escondidas do que conhecidas, assim como grandes ciências, sabedorias e prudências. Nem tudo está na maçã original. Hoje mesmo existe um grande número de coisas maravilhosas cujo conhecimento não seria prudente revelar já que Deus o proibiu expressamente.
O certo é que no mesmo lugar da terra onde existe um veneno mortal também existe um contraveneno exato e que do mesmo modo que as doenças são geradas, a saúde também é produzida.
Lamentável é que existam poucos médicos que se interessem por essas questões e as estudem devidamente. E que a maioria fique apenas com a profissão de simples examinadores de urina.
Suas ganâncias sórdidas e gulosas bastam para enchê-los de satisfação e persuadi-los a viver em suas casas contentes, sem fazer nada, porque somente exercem a medicina para ajuntar o dinheiro que com tanta liberalidade lhes proporcionam os exames de urina. Por que então complicar suas vidas com trabalhos mais penosos?
Alimente sua alma com mais:
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